sábado, 30 de dezembro de 2023

'O Belo e a Fera': o casal que escreve contos de fadas e mitos gregos com gêneros trocados

Vamos fechar os olhos e pensar por um momento que o protagonista da história do Chapeuzinho Vermelho não é uma menina, mas sim um menino.

Ou que o Ciclope, aquele enorme gigante caolho da mitologia grega, é uma mulher de cabelos cacheados e cílios longos.

Há alguns anos, a ilustradora e escritora britânica Karrie Fransman trabalha com o marido, Jonathan Plackett, na adaptação de contos de fadas tradicionais e mitos gregos, trocando o gênero de seus protagonistas.

E fazem isso com talento e com a ajuda de um software criado por ele que tem papel central na troca.

Tudo para contar histórias diferentes para suas filhas.

Assim, os dois livros publicados "Contos de Fadas com Gênero Alterado" e "Mitos Gregos com Gênero Alterado" nos mostram personagens "ao contrário": um belo homem é salvo pela fera - que é uma princesa enfeitiçada -, Icara é quem voa com suas asas de cera perto do sol, Zeus é uma mulher e Rapunzel um príncipe que não tem cabelo comprido... mas sim uma barba muito comprida.

A BBC News Mundo conversou com Fransman no contexto do HAY Festival Arequipa, no Peru, um evento cultural.

·        Como surgiu o que você chama de “máquina de mudança de gênero”?

Karrie Fransman - Surgiu da leitura dos jornais, especialmente de um encontro entre Theresa May, ex-primeira-ministra do Reino Unido, e Nicola Sturgeon, então primeira-ministra da Escócia.

O que meu marido notou foi que todos os jornais faziam uma descrição do quão pequenos eram os pés de uma, ou se a outra usava salto, ou como estavam vestidas.

Por outro lado, não houve uma única referência a esse tema nas reuniões entre lideranças masculinas.

Então pensamos que seria bom fazer uma troca de personagens, para ver como seriam lidos aqueles textos se não estivéssemos falando de uma mulher, mas de um homem.

E meu marido, que é desenvolvedor digital e muito criativo, criou um programa bem simples, que muda o gênero dos protagonistas com um algoritmo: homem para mulher, mulher para homem, pai para mãe, mãe para pai, deusa para deus, rainha para rei, o ciclope para a ciclope, touro para vaca.

Algo tão simples como isso já nos dá outra linha de leitura, cria outra realidade. É como ler outra história.

Portanto, não é um exercício com inteligência artificial, mas sim um que ajuda a compreender melhor o mundo em que vivemos.

·        Parece muito simples, mas que desafios você encontrou?

Fransman - O que aprendemos com os primeiros testes é que não podíamos mudar o texto inteiro, porque era muito tendencioso, muito artificial.

Para evitar isso, tivemos que informar ao programa quais partes deveriam ser alteradas e quais não deveriam.

Também encontramos desafios linguísticos.

Aconteceu conosco, por exemplo, com a palavra “hag”, que em inglês é usada para descrever uma velha de forma pejorativa e humilhante, mas para a nossa surpresa, não existe palavra para designar um velho da mesma forma.

Tivemos que recorrer a uma palavra vitoriana, “old codger” (algo como "velho idiota" em português) , para encontrar uma semelhança.

·        O que mais descobriram?

Fransman - Presumimos que ao aplicarmos nossa máquina encontraríamos histórias de princesas que derrotaram dragões, de rainhas com poder real para tomar decisões, coisas que já vemos em muitas histórias e romances da literatura infantil britânica atual.

Mas não tínhamos pensado no outro lado, em como ficam os personagens masculinos nessas novas histórias.

E isso nos surpreendeu agradavelmente, devo dizer. Geralmente não vemos personagens masculinos fazendo coisas que as mulheres deveriam fazer.

Por exemplo, em nossa versão de “A Bela e a Fera”, que se chama “O Belo e a Fera”, encontramos um homem disposto a se sacrificar para salvar sua família, que na viagem que sua mãe faz - no lugar do pai na história original -, enquanto os outros pedem presentes caros, ele só quer uma rosa, algo simples.

Não é algo comum nos livros, porque estamos acostumados com os auto-sacrifícios que são feitos pela mulher. E as personagens femininas.

·        Como tudo isso que está nas palavras, nas histórias, é transferido para os desenhos? Qual foi o seu principal objetivo ao ilustrar as novas versões?

Fransman - Foi um processo um pouco mais difícil, pois enquanto com os textos tivemos a ajuda do algoritmo, com os desenhos começamos do zero.

A minha primeira intenção foi usar cores fortemente contrastantes, porque penso que é isso que queremos transmitir: uma mudança radical de ideias.

Mais tarde, como tínhamos a intenção de mostrar uma nova perspectiva, comecei a estudar como cada um desses personagens foi desenhado na história da arte, como foram representados.

Ou seja, como o Chapeuzinho Vermelho foi ilustrado, por exemplo, ao longo dos anos.

Então o que fiz foi aplicar uma mudança de gênero nessas representações tradicionais e reparei quase na mesma coisa que tínhamos notado no texto: as ilustrações tradicionais deram uma característica particular às princesas e às mulheres dos contos de fadas.

A intenção de mostrar uma mulher passiva, nem sempre atraente, era muito perceptível, e talvez não tivéssemos tanta consciência disso, e só percebemos quando começamos a desenhar homens naqueles ternos modestos e com poses calmas.

·        Acho que é a primeira vez que vemos uma ciclope fêmea, com cabelos e cílios longos...

Fransman - Acho que na hora de desenhar os contos de fadas sabíamos um pouco do que iríamos encontrar e fizemos as ilustrações com o intuito de gerar uma reflexão nesse sentido.

Mas com os mitos gregos encontramos essa experiência fascinante de pintar monstros femininos, que para mim foi muito divertido: desenhar um minotauro, ou como você diz, o desafio de desenhar, talvez pela primeira vez, uma ciclope.

E acho que aqui conseguimos questionar mais uma vez qual é a ideia que temos do que é uma mulher. E uma mulher também pode ser isso.

Não é que a gente queira mostrá-las como monstros, mas sim questionar os padrões que nos estabeleceram como quase intocáveis.

Se as meninas que lerem essas histórias compreenderem que podem ser fortes, corajosas e arriscadas, também poderemos ajudar os rapazes a se verem como delicados e a adotarem papéis femininos sem problemas.

Um dos grandes aprendizados que tirei de todo esse trabalho é que podemos ver um bom número de homens que sonham em ser pais. E eles também querem ser bons pais.

·        É também uma descoberta ver mulheres transformadas em assassinas, manipuladoras, golpistas...

Fransman - É que heróis como Teseu e Odisseu, se você os ler com atenção, são terríveis: assassinaram só por diversão, abandonaram mulheres que os ajudaram, e a lista continua.

Fazer essa mudança nas personagens femininas foi bastante revelador, porque você vê mulheres fazendo a mesma coisa, sem remorso.

E você imediatamente percebe a diferença em como as ações dos homens são julgadas e como as mesmas ações das mulheres são julgadas.

Que fique claro que não estamos promovendo um mundo onde as mulheres possam roubar homens bonitos e torná-los seus maridos da maneira mais difícil, não, de forma alguma.

Mas é muito interessante que, para percebermos o quão psicopatas eram os heróis masculinos da mitologia grega, tivemos que transformá-los em mulheres.

·        Você disse em entrevista que essa mudança de gênero vai além de uma divisão do masculino e do feminino, mas que, ao fazer essa troca, se abre também um espaço para outras identidades de gênero, o não-binário, o queer...

Fransman - Para mim é uma das coisas mais importantes do exercício que fizemos com os dois livros, principalmente com os contos de fadas, que são livros escritos no século 18, muito heteronormativos, onde todas as relações são entre homens e mulheres.

Mesmo nos mitos gregos, onde há mais relações homossexuais, o que chegou até nós são histórias de homens e mulheres.

O que queríamos era desestabilizar isso, queríamos mostrar que o gênero dos personagens pode ser adaptado a qualquer papel dentro das histórias.

E fizemos isso com base nesse princípio muito atual dos pronomes, que se tornou tão proeminente.

Era a isso que me referia quando disse que esse exercício nos permite romper com esta dicotomia dentro das histórias tradicionais, que também marcaram a nossa posição em relação a muitas coisas na vida.

Queríamos que fosse algo mais fluido. Mais flexível, não tão fixado em duas pedras imutáveis.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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