Modi: a indústria de genéricos da Índia
em risco?
Desde suas origens no imediato pós-independência, a
indústria farmacêutica da Índia praticamente não parou de crescer até chegar
até seu atual posto de nona maior do mundo – segunda do Sul Global, só atrás da
China – e maior produtora de medicamentos genéricos. Por essa última
característica, ela ganhou o apelido de “farmácia do Terceiro Mundo”, já que
seus produtos são muito mais acessíveis aos países pobres que os vendidos pelas
grandes corporações do Ocidente.
Mas como vem explicando Outra Saúde em
uma série de reportagens [leia a parte 1 e parte 2], esse
setor estratégico do parque industrial indiano já passou por fases bem
distintas: a primeira, durante os governos Jawaharlal Nehru e Indira Gandhi,
foi marcada pelo papel de liderança dos laboratórios e centros de pesquisa
públicos e pela restrição quase total às patentes de produtos farmacêuticos;
posteriormente, com a onda privatizante mundial dos anos 1990, os interesses
empresariais se tornaram dominantes, ainda que por outro lado, a ênfase nos
genéricos tenha seguido de pé, mesmo com a assinatura do acordo TRIPS.
Especialistas observam que desde a chegada ao poder
do atual primeiro-ministro Narendra Modi, ligado à direita hindu, em 2014, essa
indústria passa por mais uma mudança significativa. Se em 2005, após aproveitar
os 10 anos de transição que conquistou para proteger sua indústria de
genéricos, a Índia introduziu as patentes farmacêuticas em sua legislação,
hoje, as empresas que cresceram produzindo esses medicamentos agora querem
patentear suas descobertas – usando o velho argumento da “proteção à inovação”,
há muito descredibilizado por só proteger mesmo os lucros, não a ciência.
As contradições se ampliam. É possível que a
indústria farmacêutica indiana siga sendo um importante ponto de apoio para o
acesso a medicamentos em todo o Sul Global – mas também existe a chance de que
ela se transforme em apenas mais um polo comercial contrário ao princípio do
direito à saúde. Em todo caso, como ressaltam Vitor Ido e KM
Gopakumar, pesquisadores do Brasil e da Índia que conversaram com Outra
Saúde, nos detalhes dessa história há grandes aprendizados a serem extraídos
para os planos de desenvolvimento do complexo industrial da saúde no Brasil,
aqui reunidas.
·
O que quer o atual governo da Índia…
Em 2014, novas eleições gerais na Índia levaram ao
poder o político Narendra Modi, ex-governador da província de Gurajat, sede de
diversas farmacêuticas privadas. Seu partido, conhecido pela sigla BJP, é a
expressão política de organizações da direita nacionalista e religiosa hindu
que surgiram em oposição aos governos laicos e progressistas que hegemonizaram
o Estado desde 1947. A liberalização econômica que havia se iniciado nos anos
1990, no governo de Modi, se transformou em uma “convergência da extrema-direita
com o neoliberalismo”, avalia Vitor Ido, pesquisador do South Centre.
No âmbito diplomático, Modi proclama que a Índia
deve cumprir um papel cada vez mais proeminente no mundo. Mas em comparação com
seus antecessores, o atual primeiro-ministro é mais dúbio sobre o princípio de
não-alinhamento historicamente caro à Índia: seu governo compra cada vez mais
armas do Ocidente (e de Israel), reduziu o ritmo da integração com os demais
países do Sul Global e se aproxima da OTAN para antagonizar com a China na
Ásia.
Desde sua primeira eleição, Modi insiste no
popular slogan “Atmanirbhar Bharat” (em hindi, “Índia
autossuficiente”) para defender políticas “investment-friendly e
de ease of doing business”, explica Gopakumar, especialista em direito
patentário da Third World Network (TWN). Em termos retóricos, o político hindu
alega querer estimular com essas políticas um maior papel do setor privado
nacional na economia.
Porém, sua orientação para o setor farmacêutico tem
sido menos nacionalista. A indústria local se expande vertiginosamente – hoje,
ela garante 85% da demanda interna por medicamentos e sua taxa de crescimento
se aproxima dos 10% anuais. Mas também cresceu, nos últimos anos, sua
crescente interdependência com as empresas e mercados do Norte Global. Por
isso, os últimos tempos têm sido de “confusão nas políticas públicas e
contradição nas mensagens”, resume Gopakumar.
Antes, por razões não só econômicas como também
políticas, as companhias farmacêuticas da Índia tinham como principais mercados
as nações em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina – desejosas de
remédios genéricos mais acessíveis para Estados ainda em formação e debilitados
por séculos de colonialismo.
Agora, no anseio de abrir para seus medicamentos os
mercados do Primeiro Mundo, o governo indiano começou a negociar com esses
países tratados que prevêem a adoção de leis patentárias mais duras que as
previstas no TRIPS, acordo dos anos 1990 que uniformizou legislações de
propriedade intelectual de todo o mundo de uma forma que favoreceu as grandes
empresas do Norte Global. Esses novos tratados são conhecidos entre os
especialistas como “TRIPS-plus”, por adicionarem mais cláusulas de
proteção às patentes dos monopólios.
Um desses tratados – e o que parece mais afetar o
setor farmacêutico – é o Acordo de Livre Comércio Índia-Reino Unido, ainda
não assinado mas atualmente em estágio avançado de negociação. Em coluna para Outra
Saúde, Susana van der Ploeg e Rajnia de Vito alertaram que
o governo britânico propõe que “o acordo se sobreponha às leis nacionais de
propriedade intelectual em relação aos critérios para que uma patente seja concedida,
tornando-as mais flexíveis – o que aumentaria o número de patentes e o tempo de
validade destas, entre outras mudanças”.
Na avaliação da dupla, a mudança “seria um grande
passo atrás para todo o Sul Global – e uma tragédia até para os sistemas
públicos de saúde dos países ricos, incluindo o próprio Reino Unido”, já que os
custos para adquirir remédios explodiriam. Para o ativista de
Uganda Kenneth Mwehonge, oriundo de um país africano que é grande
comprador dos genéricos indianos, se os britânicos forçarem a Índia a aceitar
termos muito restritivos de legislação patentária, “os danos colaterais serão
nossas vidas”, no que caracteriza como uma “traição aos pacientes do Sul
Global”.
As consequências da restrição à produção de
genéricos pela Índia, que pode ser concedida por Modi, são bastante
claras: medicamentos mais caros, que os países mais pobres deixarão de
comprar; milhares de vidas perdidas, por perda de acesso a fármacos
acessíveis de HIV, tuberculose, hepatite C e outras doenças; e
um crescimento da injustiça global, já que mesmo a até aqui autônoma
produção indiana passaria a depender de patentes das potências que
dominam a economia mundial.
·
…e o que passaram a querer as farmacêuticas indianas
Além disso, conta Vitor Ido, “nos últimos 10 a 15
anos, as empresas indianas começaram a fazer joint ventures e
parcerias com as farmacêuticas estrangeiras”. Essa mudança de estratégia,
alerta o pesquisador do South Centre, cria uma “pressão econômica para que o
governo indiano mude sua posição histórica, mais voltada à saúde pública e às
políticas industriais, e adote um caminho mais próximo ao dos países ricos, que
prioriza a proteção patentária e o interesse das empresas privadas”.
“As indústrias nacionais estão menos dispostas a
comprar brigas com as indústrias transnacionais, porque estão em acordos
contratuais cada vez mais profundos de manufatura, produção conjunta e, em
alguns casos, até de pesquisa com os grandes grupos farmacêuticos tradicionais
do Ocidente”, ele completa.
Com tudo isso, ocorre hoje um “desacoplamento das
políticas industriais de saúde e de propriedade intelectual dos grandes
objetivos de governo”, diz Ido. De forma mais clara: o crescimento do setor
farmacêutico não deixou de ser uma meta – mas esse crescimento deixou de andar
lado a lado com a busca do bem-estar dos povos da Índia e do mundo.
Um exemplo bastante ilustrativo está na situação do
mercado de imunizantes. Hoje, a Índia garante com sua produção 60% da
demanda mundial por vacinas. Na pandemia do coronavírus, apenas em 2021, 94
países compraram imunizantes contra a covid-19 produzidos pelo parque
farmacêutico do país asiático. Mas com um detalhe: a fabricação era indiana; o
desenvolvimento, não.
A maior parte dessas doses era da vacina
Covishield, fruto de um acordo da AstraZeneca – conglomerado empresarial
britânico –, com o Serum Institute of India, empresa da Índia que recebeu
autorização para produzir uma versão mais barata do imunizante desenvolvido no
Norte Global. A Covax, mecanismo internacional de distribuição de vacinas
contra a covid-19 para países pobres, comprou 200 milhões de doses da
Covishield anglo-indiana.
Outra das características dessa viragem é sua
mudança de público: hoje, as principais farmacêuticas indianas têm como
objetivo transferir o grosso de suas receitas para o comércio com os
Estados Unidos e a Europa, deixando de ter os países mais pobres como
prioridade.
Dados divulgados pela
agência governamental indiana Pharmexcil, que promove a exportação de produtos
farmacêuticos, aponta que em 2019 a soma das vendas para a América do Norte
(32,1%) e para a Europa (15,7%) já se aproximam da metade do total – sinal de
sua crescente importância para os lucros da indústria. Nesses mercados, é
possível comercializar os medicamentos – mesmo os genéricos – a preços mais
altos que nos países da África e da Ásia, antes principais destinos dos
remédios indianos.
Se no século XX, quando foram dados os primeiros
passos para a criação da indústria farmacêutica da Índia, a orientação
predominante tanto no setor público quanto no privado era de buscar um
desenvolvimento autônomo – a “burguesia nacional” tão buscada pelos movimentos
do Terceiro Mundo? –, hoje percebe-se nos círculos empresariais do país a
intenção de constituir uma associação dependente e subordinada aos monopólios
do Ocidente.
Enquanto os embates políticos não saem da
indefinição, os remédios a preços ainda acessíveis que vem da Índia seguem
sendo cruciais para bilhões de cidadãos do Sul Global, indianos ou não, que têm
seu acesso a medicamentos – e seu direito à Saúde – garantido pelos genéricos.
·
As lições para o Brasil
Nesse cenário, a indústria farmacêutica indiana
vive hoje uma encruzilhada que definirá seu lugar econômico e político no mundo
no próximo período histórico. Não é a primeira, já que, como mostrou Outra
Saúde na série de reportagens que
se encerra com este texto, ela passou por pelo menos duas importantes
transformações desde seu surgimento no pós-Independência.
A despeito das mudanças, algumas características do
setor se mantiveram ao longo das décadas. Uma delas, pelo menos até aqui, é
o dissenso em relação à política de patentes excludente promovida pelos
países ricos, mesmo depois das concessões dos anos 90 em diante. Outra, também
decisiva, é seu papel na garantia de autonomia estratégica para a Saúde do
país, indispensável para uma nação soberana – em especial no Sul Global.
A pandemia da covid-19 deixou isso ainda mais
claro: quando precisou dar prioridade à imunização de sua população, a
Índia suspendeu a
exportação de vacinas e só a retomou quase seis meses
depois, quando a situação interna estava mais controlada – e a capacidade
produtiva havia se expandido para 1 bilhão de doses por mês, cobrindo as
necessidades internas e de exportação.
Tal medida seria impensável sem um robusto parque
farmacêutico nacional. E por isso mesmo, caso queira dar consequência aos
planos de desenvolver o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), o Brasil
tem o que aprender com a história da Índia enquanto um exemplo no Sul do mundo,
ressaltam Ido e Gopakumar.
Na visão do pesquisador brasileiro, “a experiência
indiana nos ensina pelo menos duas grandes coisas”. “Uma é a importância
da continuidade de uma visão que sempre associou a política industrial às
necessidades de saúde, uma perspectiva pós-colonial mantida desde os
primórdios. A outra é o uso estratégico das flexibilidades do TRIPS, ou
seja, garantir que as indústrias nacionais consigam competir de maneira
real com as empresas estrangeiras, porque as patentes impedem a competitividade
por definição”, ele aponta.
“Isso traz indícios importantes de que o Brasil
precisa pensar esse problema em termos de política industrial de longo prazo.
Necessariamente envolve convencer os atores brasileiros de que essa é uma
questão de Estado, não de governo, ainda mais em um país que tem um sistema
universal de saúde e um mandato constitucional muito forte para o direito à
saúde”, completa Ido.
Quanto às patentes, ele alerta que “as opções
legislativas e políticas hoje estão indo no sentido de superproteger a
propriedade intelectual muito além do que o Brasil é obrigado pelo direito
internacional, e isso é deletério para a formulação do novo complexo industrial
da saúde.”
Já para Gopakumar, é preciso também dar atenção à
ênfase que a Índia deu à produção autônoma de Insumos Farmacêuticos
Ativos (IFAs), que são as substâncias que fazem os remédios terem efeito.
A Índia é hoje a 3ª maior produtora de IFAs do mundo. Essa etapa é muito
mais crucial de ser absorvida do que o envasamento e o controle de qualidade.
“O Butantan e a Fiocruz podem ser mais atuantes nesse sentido”, comenta o
indiano.
Além disso, ele acredita que é preciso coordenar
melhor a atuação dos órgãos de governo que podem contribuir com o CEIS. “Com o
INPI, a Anvisa, o BNDES, o Ministério da Indústria e o Ministério da Saúde
agindo juntos, o trabalho pode ser feito”, vaticina o especialista indiano.
Ambos ressaltam que a ousadia política vai ser um
ingrediente chave para que as ideias saiam do papel. “O caminho para a
autossuficiência é político”, frisa Gopakumar. E “o plano [para o CEIS] pode
ser muito mais ambicioso” do que já é, completa Ido.
Fonte: Por Guilherme Arruda, em Outra Saúde
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