quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Elaine Tavares: Punida por mostrar a verdade

A jornalista Schirlei Alves foi condenada à prisão e pagamento de multa pelo judiciário catarinense. Ela foi acusada de “manchar a honra” de um juiz, um advogado e um promotor que atuaram num caso de estupro. Tudo isso porque ela noticiou a gravação da audiência de instrução, na qual a vítima do estupro, Mari Ferrer, é humilhada e constrangida várias vezes pelo advogado de defesa do acusado, Cláudio Gastão da Rosa Filho. A gravação mostra que ela implora ao juiz por respeito, dizendo que nem assassinos eram tratados como ela estava sendo tratada, mas o juiz ignorou seu apelo. Foram cinco horas de massacre contra a vítima e por fim, o acusado do estupro foi inocentado. Seria mais um caso “comum”, no qual o agressor sai livre, a mulher depreciada e os operadores do direito, incólumes.

Mas, ocorre que a Schirlei fez o que qualquer bom jornalista faria: descreveu as cenas, desvelou o cenário, expôs as chagas, tanto as da situação do estupro sofrido quanto as do judiciário. Uma reportagem que não encontrou abrigo nos meios comerciais catarinenses e acabou sendo veiculada na Intercept Brasil, uma agência de notícias. O texto explicita o que as imagens igualmente dizem. E o que se vê é uma garota sendo julgada por suas roupas, por ter bebido, por estar num bar. E, mais do que isso, sofrendo outra violência, praticamente sendo apontada como culpada de ter sido estuprada. Um balaio de horrores.

A reportagem da Schirlei não se limita às imagens desveladas. Ela ouve a vítima, as pessoas próximas, a OAB, o Ministério da Mulher, delegada, promotora do Núcleo de Gênero, enfim, uma série de outras vozes que corroboram a tese de que a jovem vítima do estupro foi também humilhada e negligenciada no caso. O caso repercutiu em todo país e os envolvidos se viram expostos. O juiz, Rudson Marcos, recebeu uma advertência formal do Conselho Nacional de Juízes, por ter sido negligente, o promotor e o advogado foram repudiados pela opinião pública. E, por isso, decidiram acusar Schirlei de lhes manchar a honra.

O processo foi julgado pela juíza Andrea Struder, que condenou Schirlei aplicando uma sentença leonina. Segundo texto na Agência Intercept: “A condenação de Schirlei proferida pela juíza lembra a época da ditadura e é totalmente infundada, repleta de falhas processuais e extremamente desproporcional. Studer foi a única juíza disposta a aceitar o caso apresentado por seus colegas na vara, depois que muitos outros se recusaram devido ao conflito aparente”.

A condenação da jornalista levantou a categoria que entende a decisão como uma sentença não apenas contra Schirlei, mas contra todos os jornalistas, visto que a ser mantida, significa claramente uma mordaça. É sabido que o judiciário brasileiro é uma instituição que representa a classe dominante e se configura num guardião desta minúscula fatia da sociedade. Ficar contra os trabalhadores é pão comido, coisa cotidiana. Mas, ainda assim a sentença chocou os jornalistas por representar uma obstrução ao trabalho do profissional, que é o de reportar os fatos. Importante ressaltar que a queixa se dá porque a jornalista expôs um juiz, um promotor e um advogado.

Ora, receber pena de prisão e multa de 400 mil reais por ter relatado fatos reais e comprovados tem algum sentido? Nenhum. Esta semana outro vídeo de uma audiência virtual em Santa Catarina mostra uma juíza igualmente sendo grossa e arrogante com uma testemunha. Será penalizada também a pessoa que divulgou mais essa cotidiana ação das cortes? Não se pode mostrar a realidade do mundo judiciário? Está vedado? Bom, isso tem nome. Censura.

Na Universidade Federal de Santa Catarina, foi organizado pelo Sindicato dos Jornalistas um ato de solidariedade à jornalista, que ainda está lutando na justiça, agora em segunda instância. Compareceram jornalistas, representantes de movimentos sociais, de sindicatos, estudantes, políticos e comunidade, todos dispostos a apoiar e lutar junto com Schirlei para que essa sentença seja anulada. Nenhum dia de prisão e nenhum centavo de multa. O judiciário catarinense terá de responder com justiça.

É sabido que o jornalismo brasileiro é, via e regra, um jornalismo declaratório, sem profundidade e muitas vezes cúmplice dos poderes dominantes. Mas, jornalistas há que fogem do lugar comum e cumprem a função primeira do jornalismo que é desvelar o que quer se esconder. Schirlei é uma dessas profissionais. Valente, responsável, ética. Ela está sofrendo, porque é repórter, e sabe que fez o certo. Vive uma tortura cotidiana por ter cumprido com seu compromisso profissional.

Cabe a nós enredá-la numa rede de afeto e de luta para que ela saiba que não está sozinha. E cabe a nós também divulgar ao máximo essa infâmia.

O jornalismo de verdade carrega essa marca, a da expor à luz o que se esconde. Não é sem razão que lá na Inglaterra o também jornalista Julian Assange sofre prisão e tortura por ter revelado os crimes dos Estados Unidos. Guardadas as proporções, assim tem sido com a Schirlei, por ter exposto algumas vísceras do judiciário.

Justiça para Schirlei. Suspensão da sentença já! Nada menos do que isso!

 

Ø  Abraji: Condenação criminal da jornalista que cobriu caso Mariana Ferrer é ultrajante

 

A juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, titular da 5ª Vara Criminal de Florianópolis, condenou a jornalista Schirlei Alves a um ano de prisão e ao pagamento de R$ 400 mil em indenização pelo crime de difamação, em decorrência da publicação de reportagem sobre o caso da influenciadora digital Mariana Ferrer. Mariana foi humilhada durante o depoimento que prestou, na qualidade de vítima, no julgamento do acusado de estuprá-la em 2018. Em reportagem publicada em 2020 pelo The Intercept Brasil, Schirlei Alves revelou o constrangimento e a violência praticados contra Mariana no curso do processo. O episódio causou indignação nacional e motivou a criação da Lei 14.245, que prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos.

Os processos criminais que agora levaram à condenação de Schirlei Alves foram movidos pelo juiz Rudson Marcos e pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira envolvidos no julgamento do estupro de Mariana Ferrer. A situação de humilhação a qual foi submetida a influencer, revelada pela jornalista, é tão flagrante que, na terça-feira (14.nov.2023), o Conselho Nacional de Justiça puniu o magistrado por sua omissão na condução da audiência.

É incompreensível, portanto, que Schirlei seja condenada à prisão e a pagar uma vultosa indenização, incompatível com sua renda e patrimônio - num montante que nem mesmo grandes veículos de comunicação suportariam - ao funcionário público cuja conduta foi considerada incompatível com os deveres que permeiam a atividade jurisdicional. Mais do que isso, é inadmissível e ultrajante que uma jornalista, no exercício da sua profissão, relatando um grave assunto de interesse público, seja duramente punida e condenada criminalmente por supostamente ofender a honra de funcionários públicos.

Vale destacar a violência de gênero permeia toda a história que une Mariana Ferrer e Schirlei Alves. Uma mulher é humilhada perante à Justiça num momento em que tanto o juiz como o promotor tinham o dever de protegê-la. A jornalista que revela esse gravíssimo episódio também sofre, na sequência, uma violência do Poder Judiciário, que se soma a outras enfrentadas diariamente por mulheres jornalistas - alvos preferenciais no conjunto de ataques contra a imprensa no Brasil.  

O jornalismo é elemento essencial para garantir o escrutínio de agentes públicos. Os fatos revelados pela reportagem de Schirlei Alves não caracterizam ataques à honra do promotor e do juiz envolvidos, mas sim o direito da imprensa de informar e o dever do agente público de prestar contas. Foi a partir da reportagem de Schirlei Alves que o caso foi amplamente debatido na sociedade, culminando, como mencionado, na aprovação da Lei Mariana Ferrer.

Schirlei Alves é uma profissional conhecida nacionalmente pela relevância e seriedade de seu trabalho como repórter. Manifestamos assim nossa profunda solidariedade a ela, reafirmando a confiança em seu trabalho. E esperamos que o Poder Judiciário reconheça, nas instâncias recursais, a importância do jornalismo, das mulheres jornalistas e da liberdade de imprensa, com a integral reversão dessas absurdas decisões.

Tratam-se, neste momento, de dois dos seis processos judiciais enfrentados por Schirlei Alves, em virtude da mesma matéria jornalística. Serão muitas as oportunidades para que o Judiciário brasileiro defina se protege as liberdades de expressão e de imprensa, ou se nos leva pelo caminho sombrio que conduz jornalistas à autocensura e ao encarceramento.

>>> Assinam este documento:

Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)

Associação de Jornalismo Digital (Ajor)

Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)

Instituto Tornavoz

Instituto Vladimir Herzog

Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores

Repórteres Sem Fronteiras (RSF)

Associação Fiquem Sabendo

 

Fonte: Correio da Cidadania/Abraji

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário