É possível resgatar a utopia no governo Lula?
Os problemas sociais e políticos percorrem todas as épocas. As ideias se
destacam em períodos de acontecimentos rápidos e confusos, quando encarnam um
mobilismo redentor. Nenhuma época alterou tanto os seres humanos, com fanatismo
e sangue nos olhos, do que a década de incubação do nazifascismo. Quase um
século depois, o cenário se assemelha, revalidando o estoque de conceitos que
fundou a modernidade. República x tirania, democracia x autoritarismo, esquerda
x direita, cidadão x servo, tolerância x arbítrio são categorias que servem
ainda de leme para os países.
As questões de antanho enlaçam as que, no presente, agitam e polarizam
as nações com as cores do ódio, do ressentimento e da ignorância. A indagação
que fica é se o indispensável enfrentamento da boa política com a necropolítica
implica, sempre, uma escolha entre a “liberdade” e a “obediência”?
• Rumo ao autogoverno
Para Étienne de La Boétie, no Discurso sobre a servidão voluntária, de
1549, o fato de um homem aceitar de espontânea vontade o jugo de déspotas é
expressão torta do desejo de também dominar. O espírito renascentista salienta
a condição autônoma das individualidades que, pela primeira vez, assumem as
consequências de intervir para emoldurar o futuro como sujeitos ou objetos da
história, para o bem e o mal. Em nosso tempo e espaço, com a carga de 350 anos
de escravidão, o argumento da subserviência “consciente” e “consentida” soa
esquisito. Não capta a dinâmica da dominação nas sociedades coloniais, a
cultura da mercantilização das gentes qual coisas e as técnicas de martírio.
Hoje indivíduos adaptam-se a uma realidade que substitui o “ser ou não
ser”, em face da autoridade, pelo totalitarismo da mercadoria. Almas e corpos
se persignam ao mercado. Experiências pessoais relativizam os paradigmas
impessoais da sociedade (preservação do meio ambiente, sinalização das
estradas, vacinação). Os pós-modernos fazem da necessidade uma virtude, ao
acatar a nova forma do capitalismo. A autonomização caricata confronta o Estado
de direito democrático que protege, a privacidade, da vigilância invasiva da
Big Tech. Pior: coroa a “infocracia” que, com algoritmos da inteligência
artificial, controla o consumo e o voto para converter a autonomia em um
“destino”.
A liberdade negativa dá a tônica no ataque da extrema direita à
ingerência estatal para regular o fluxo mercadológico, sob a alegação dos
“direitos individuais” para legitimar um laissez-faire. Por outro lado, a
liberdade positiva inspira-se na filosofia moral kantiana (regras da própria
conduta) para prospectar um autogoverno, onde aquiescer traduz o comportamento
livre na medida em que cada um participa na elaboração da legislação da
coletividade. É o que, em parte, sucede à multidão de adeptos do Plano Plurianual
Participativo criado pelo governo Lula, no corrente. Quem respeita as
deliberações que ajudou a aprovar, supera a falsa contraposição entre a
liberdade e a obediência.
• Concepção de socialismo
No mapa da rebeldia, a metáfora da “margem” e do “centro” irrompe em uma
conferência de Isaac Deutscher, acolhida sob desconfiança pelos estudantes
estadunidenses na febril agitação sessentista. “Vocês estão em atividade
efervescente às margens da vida social, e os trabalhadores estão passivos no
centro dela. É esta a tragédia de nossa sociedade. Se não enfrentarem esse
contraste, vocês serão derrotados”. Apesar de promissores, os insurgentes nas
ruas não agiam no coração das engrenagens; tangenciavam a dialética da
majestosa máquina sistêmica. O alerta prossegue em plena vigência.
A Parada do Orgulho LGBT, de São Paulo, em 28 de junho de 2023, segundo
os organizadores do grandioso evento, mobilizou um elenco formidável: quatro
milhões de entusiastas anti-homofobia. Nem por isso ruiu a muralha que separa
suas causas específicas das demais lutas em curso e, em especial, a dos
trabalhadores formais sindicalizados e a dos batalhadores de aplicativos sem
vínculo empregatício. Urge desenvolver, com a práxis de camaradas, a síntese
superior das contestações ao status quo parapôr abaixo as barreiras
existentes,eis aí o desafio posto para todas, todos e todes.
Nada a censurar na audiência contra os preconceitos sexistas. Mas achar
que “o movimento é tudo” não eleva, ao nível socialista, a conscientização
política dos lutadores. Politizar é romper com os nichos. A democratização
setorial incentiva a consecução de muitos bens imateriais, é certo; em
contrapartida, reduz a concepção de socialismo dos partidos de esquerda à
extensão dos direitos do cidadão. O discurso moderado coloca em ato uma
interpretação reformista das mudanças e joga na lixeira a perspectiva de modificações
profundas nas estruturas sociais. Parafraseando o título de uma obra de Emir
Sader, O poder, cadê o poder?, é de se perguntar – a utopia, cadê a utopia?
• Democracia e economia
A contradição entre o capital e o trabalho, núcleo primordial da luta de
classes, trocou de endereço. De acordo com Ellen Wood, em Democracia contra
capitalismo: A renovação do materialismo histórico, a ênfase transferiu-se ao
“extra-econômico”: afirmação de gênero, igualdade racial, saúde ecológica.
Trata-se de um salto da emancipação de classe à emancipação humana. A transição
não surgiu de reflexões no Fórum Social Mundial (FSM), no Foro de São Paulo ou
no Grupo de Puebla. Aconteceu no vácuo das “grandes narrativas”. Com efeito,
não é evidente o vetor antissistêmico dos movimentos identitários. As
identidades extra-econômicas aumentam a representação parlamentar (negros,
mulheres, gays). Não obstante, as identidades do trabalho diminuem, eleição
após eleição.
O que singulariza o teatro capitalista é a separação, agravada na fase
neoliberal, entre o circuito da produção econômica e o da política. A economia
foi feudalizada por “sábios competentes”. A política confinou-se em salões de
brancos héteros, graças ao custo das campanhas eleitorais que consolidam o
perfil ultraconservador do Legislativo. A proposta de democracia, que o
socialismo oferece às comunidades, baseia-se na reintegração da economia ao rol
da política, o que começa com sua subordinação à autodeterminação dos
produtores. A interpelação do povo tem de acenar para os ideais da
solidariedade. A unificação de uma frente plural, com palavras de ordem sobre a
vida, o trabalho e a dignidade, potencializaria as vitórias, e aprofundaria o
ânimo transformador.
Desde o decênio de 1980, usa-se o poder do choque para impor
sofrimentos. O fantasma da crise visa afugentar a “grande recusa” marcuseana.
Compõe o programa das finanças o arrocho salarial, a precarização do labor, a
extração da mais-valia, os ajustes fiscais da austeridade e o desemprego de
longo prazo – o melhor indicador do colapso estrutural. Para avançar há que
designar um porto utópico aos anseios das massas. Ou prevalece no imaginário
popular que a democracia pode e deve orientar a economia, na sociedade
autorregulada; ou afundaremos em um retrocesso civilizacional.
• O ocaso do capitalismo
Eleutério Prado, em Capitalismo no século XXI: Ocaso por meio de eventos
catastróficos, conta que o livro mencionado “nasceu para sacudir uma bandeira:
atenção, há grande turbulência a frente, a nave capitalismo se desgovernou por
si mesma. Agora somos verdadeiramente muitos e estamos na mesma viagem,
precisamos nos unir para mudar o rumo da história. Há motivos para pensar que a
humanidade entrou em uma nova era de catástrofes (aquecimento global, desastres
ecológicos)”. O fenômeno atingia lugares isolados. No exato minuto, ameaça a
totalidade do homo demens. Não basta acusar prefeituras, e calar sobre o
culpado pelo caos – o capitalismo. Falta a crítica radical do sistema. O
“antropogênico” (ações das criaturas adâmicas) é um eufemismo para absolver o
réu.
O capitalismo é incapaz de garantir o bem-estar no mundo. Vide as
rebeliões na África, o conflito bélico entre OTAN-Ucrânia e Rússia, a
disposição colonialista e racista de Israel no Oriente Médio e a desigualdade
esgaçada com as leis de terceirização, no Ocidente. O relatório SOFI 2023, da
ONU, sobre a urbanização e as evoluções agroalimentares informa que,
diariamente, 735 milhões de excluídos passam fome no planeta. A crise climática
bateu na irreversibilidade, conquanto o cuidado ambiental tenha virado um
produto rentável; tipo os carros elétricos ou as placas de energia solar. A
“destruição criativa” já não consegue restaurar o que destrói. A “ceifadora”
ronda a nossa casa (Gaia).
O PPA Participativo, ensaio embrionário de autogoverno fora de uma
conjuntura revolucionária, tem um caráter pedagógico para o bloco histórico das
classes laboriosas. O aproveitamento dos flancos institucionais abertos
contribui na organização da sociedade civil. Hora dos movimentos sociais e dos
partidos progressistas sacudirem a tentação da “estatolatria”, que consiste em
esperar conquistas vindas do alto. As iniciativas coletivas, de baixo para
cima, é que sedimentam a unidade política, cultural e moral para ir além dos
direitos negados.
O governo federal é um aliado, que fará mais com uma retaguarda forte e
mobilizada. Se fosse fácil como ir ao parque, domingo, não se estaria falando
de uma revolução. “Esforçai-vos / Por criar uma situação que a todos liberte /
E também o amor da liberdade / Faça supérfluo!”, anuncia o profético poema de
Bertolt Brecht.
Fonte: Por Luiz Marques em A Terra é Redonda
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