terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Distopia ‘anarcocapitalista’ já é realidade em Honduras

Nem a ficção científica foi capaz de produzir - ao menos em uma superprodução de repercussão global recente – um mundo em que corporações multinacionais e transnacionais avançam sobre territórios e impõem sua própria lei, moeda (o Bitcoin no caso), sistema de Justiça, forças de segurança, ordem fiscal e tributária, regulamentações ambientais e trabalhistas, entre outros aspectos que geralmente são regulados pelos Estados nacionais, e à revelia dos mesmos. Mas o que a imaginação de um roteirista de Hollywood não cria, um golpe de Estado na América Central tem condições de dar o pontapé inicial.

É essa a realidade, digna de uma distopia, vivida por Honduras, que em 2009 viu seus militares destituírem o presidente Manuel Zelaya, de esquerda e eleito democraticamente, para colocar o empresário Roberto Micheletti em seu lugar.

Logo depois do golpe, o novo presidente se apressou em aprovar a lei que cria as chamadas Regiões de Desenvolvimento Especial, que são basicamente territórios geridos por grandes corporações. A partir daí uma verdadeira batalha se seguiu nas instituições do país.

Em 2012 a Suprema Corte revogou a lei, que tinha apoio do Executivo e do Legislativo. Como forma de reação, o Parlamento então destituiu alguns juízes mais críticos, substituindo-os por magistrados mais afeitos à ideia. Nesse contexto, em 2013, foi aprovada a chamada Lei das Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zedes).

As principais Zedes em atividade se chamam Próspera, Orquídea e Ciudad Morazán. De acordo com artigo publicado por Jayati Ghosh, no Bangkok Post, elas “operam como cidades-Estados independentes, inspiradas nas fantasias libertárias de investidores bilionários como Peter Thiel e Marc Andreessen – que há muito sonham com paraísos fiscais baseados em criptomoedas, que desafiam as normas democráticas básicas”.

É claro que houve reação da sociedade. Muitos protestos foram registrados contras as Zedes ao longo de Honduras, realizados por movimentos comunitários e sociais. A principal crítica é de que as áreas além de não terem qualquer compromisso com garantias e direitos básicos, também não geraram os milhares de empregos prometidos. Pelo contrário, têm causado verdadeiras expulsões derivadas da gentrificação desses territórios e fomentando migrações internas e externas a Honduras.

Quando em 2022 começou o governo de esquerda liderado pela presidente Xiomara Castro e eleito em 2021, o Estado de Honduras revogou as Zedes. A medida foi uma promessa de campanha e tinha amplo apoio popular. Mas algumas das corporações conseguiram se segurar.

Uma delas foi a Próspera, que alegou que seu acordo com o governo anterior lhe garantiria 50 anos de soberania sobre o território delimitado pela Zede. Entre as alegações, afirmou também que estaria coberto pelo direito internacional de investimentos. Foi a senha para que outras empresas gestoras de Zedes iniciassem disputas internacionais com o Estado de Honduras. Ao todo, são sete disputas que estão em litígio nesses tribunais, todos localizados nos EUA, e a depender da resolução podem obrigar o país a aceitar a entrega da sua soberania sobre os territórios.

A Honduras Próspera, corporação dos EUA localizada no Estado de Delaware (famoso paraíso fiscal), processou Honduras em 10,7 bilhões de dólares pelas supostas perdas decorrente do fim de sua Zede. O montante é equivalente a dois terços do orçamento aprovado em 2023 no país.

Ghosh dá pistas sem seu artigo de como opera a correlação de forças nesses processos de arbitragem de litígio investidor-Estado (ISDS, na sigla em inglês).
Na prática, tais tribunais são, nas palavras do presidente Joe Biden, dos EUA, “tribunais especiais que não estão disponíveis para outras organizações”, conforme dito em campanha. E os EUA jogam um papel importante por terem condições de influenciar os tribunais.

Durante seu mandato, de 2022 pra cá, Biden excluiu uma série de cláusulas ISDS de acordos internacionais futuros, mas que infelizmente não se aplicam ao caso de Honduras. E mesmo pressionado por congressistas do seu próprio partido para apoiar os hondurenhos, o Governo Biden tem dado de ombros.

Espera-se uma atitude do EUA em favor do Estado de Honduras na resolução desses litígios, sobretudo dadas as pretensões daquele país em se colocar como um líder global defensor da liberdade e dos direitos humanos. Mas se as coisas continuarem como estão, teremos mais um laboratório na América Latina. Não mais do neoliberalismo, como o Chile de Pinochet décadas atrás, mas da distopia “anarcocapitalista”, ou “CEOcracia”, em plena Honduras pós-democrática de 2023.

 

Ø  Os de cima vêm com tudo. Por Raul Zibechi

 

A cúpula do poder e da riqueza do capitalismo, composta por cerca de 70 a 80 milhões de pessoas, há muito tempo já perdeu qualquer escrúpulo, colocando de lado qualquer tentação humanitária. Estão dispostos a massacrar meio mundo para seguirem bem no topo.

As guerras das últimas décadas foram todas contra os povos. Da “guerra contra as drogas” na América Latina às guerras no Iêmen, Líbia, Síria, Afeganistão e as diversas registradas na África, com pouca cobertura e menor interesse midiático.

Alguns analistas sustentam que, neste momento, registram-se “cinco genocídios simultâneos no mundo”: na região de Darfur, no Sudão, desde 2003; em Tigray, Etiópia; no noroeste da República Democrática do Congo, e o perpetrado pelo Azerbaijão contra o povo armênio, em Nagorno-Karabakh.

A agressão contra a população da Faixa de Gaza é o último episódio de uma série quase ininterrupta de violências contra os povos, com o descarado propósito de deslocar à força milhões de pessoas.

A acumulação por desapropriação/quarta guerra mundial contra os povos começou ocupando territórios e expulsando a população que os habitava para transformar a vida em mercadoria. Isso foi analisado e denunciado em diversas ocasiões. Agora, fica evidente que investem, inclusive, sobre as populações.

Não se conformam mais em deslocá-las. Agora, trata-se de eliminar os povos que incomodam, que não se deixam, que se apegam às suas terras e territórios, que querem continuar vivendo como sempre viveram: com a terra e seus cultivos, na simplicidade da vida camponesa.

De fato, as pessoas habitam territórios que o capital busca capturar, seja pela biodiversidade que contêm, pela existência de riquezas minerais e petróleo no subsolo, pela simples abundância de água ou por qualquer circunstância que torne esses espaços possíveis fontes de lucros.

Aquela velha frase que costumava ser colocada na boca dos assaltantes de carruagens, em lugares remotos: “sua bolsa ou sua vida”, não vale mais. Eles vêm por ambas. Não tanto porque a vida é mais ou menos importante para eles como a bolsa, mas porque a simples existência da vida humana está criando problemas para os mais poderosos, para esse 1% mais rico.

Alberto Morlachetti foi o criador do coletivo Pelota de Trapo, na zona sul do subúrbio de Buenos Aires. Em 2009, sob um governo progressista, escreveu um artigo intitulado “Mãe, cuide do seu filho: eles vêm pegá-lo”. “Esses meninos que lutam por suas vidas ameaçadas pelos dias que terminam e não se alimentam, conhecem a resistência”, escreveu, indignado com a violência sistemática sofrida por eles, com a indiferença da sociedade e das autoridades. Hoje, as coisas pioraram exponencialmente.

Vivemos uma guerra civil contra crianças pobres e de cor da terra. Porque são os resistentes do amanhã, aqueles que podem colocar o sistema em dificuldades. As crianças não são apenas o futuro, a existência delas também nos dá esperança. Sem crianças, o futuro está cancelado. Por isso, o Banco Mundial tem se empenhado em combater (e até criminalizar) a mal chamada “gravidez na adolescência” e em reduzir as taxas de natalidade dos setores populares.

As linguagens começam a revelar as intenções profundas. Com poucos dias de diferença, o ex-presidente argentino Mauricio Macri, homem forte do futuro governo de Javier Milei, referiu-se aos piqueteiros como “orcs”, enquanto um ministro israelense considera os palestinos “animais humanos”.

Para poder eliminar um setor da sociedade, primeiro é preciso despojá-lo de sua humanidade, então, pode ser assassinado sem cometer crime, como destacou Giorgio Agamben.

Traçada a passos largos, a história do capitalismo tem sido, desde o cercamento dos campos na Inglaterra, a partir de 1600 aproximadamente, a da destruição das pradarias, florestas e terras comuns para criar parcelas individuais, expropriando os camponeses para forçá-los a trabalhar nas fábricas. O deslocamento das populações foi acelerado com a Conquista da América e, mais recentemente, com o extrativismo.

O sistema aprendeu de suas dificuldades e de nossas resistências. Sua aposta é que dentro de algumas décadas já não existam os povos originários e os camponeses que colocam tantos obstáculos à sua acumulação. Sabem que após cinco séculos, os povos permanecem aí. E esse “problema” não podem extirpar matando em massa, somente.

Por isso, o ataque às crianças em todas as partes. Não são por acaso a imensa maioria dos pobres do mundo? Isso não é um acaso qualquer. Se o alvo são povos e setores inteiros da sociedade, a melhor forma de esmagá-los é fazendo as crianças desaparecerem de diferentes modos, como vem acontecendo em Gaza.

Devemos defendê-los como uma forma de sobrevivência.

 

Ø  EUA: dificuldade de trunfo de Biden na política externa

 

Governantes de grandes potências costumam valer-se com mais vigor da política externa para fortalecer a popularidade interna, ainda que o prestigio global momentâneo não signifique auferir ganhos eleitorais imediatos.

O Partido Democrata estava à frente da Casa Branca na vitória da I Guerra Mundial; no pleito presidencial de 1920, a agremiação republicana, no entanto, o substituiria em Washington; em 1946, a situação seria distinta: os democratas obteriam o quinto êxito sucessivo, algo inédito na história do país, ao ter eliminado o eixo nazifascista no ano anterior.

Em 1992, o Partido Republicano, embora tivesse encerrado a rivalidade bipolar, ao derrotar a União Soviética, perderia a disputa. Por outro, o fracasso ultramar prolongado auxilia a derrocada interna. A Guerra do Vietnã havia consumido os democratas em 1968 e a do Afeganistão e a do Iraque no começo do século corroeu os republicanos em 2008.

Joe Biden chega ao final de 2023 com obstáculos à vista para estender a permanência na Casa Branca por novo quatriênio, apesar de as estatísticas econômicas não lhe serem desfavoráveis ao cabo do terceiro ano de mandato: a inflação anual deve ser a mais baixa de sua administração, apesar de situar-se acima da do período de Donald Trump.

A taxa de desemprego reduz-se também: é a menor desde que o dirigente assumiu o posto, ao estar abaixo dos 4%. A cifra avizinha-se dos números da época do seu predecessor até, saliente-se, as vésperas do alvorecer da pandemia do vírus corona, momento no qual o índice alcançaria quase 15%.

Na arena internacional, os entraves são consideráveis: os dois conflitos mais chamativos da atualidade, localizados no leste da Europa e no Oriente Médio, desenvolvem-se em turbilhões. A despeito do manifesto interesse, os Estados Unidos não conseguem influenciar os contendores a interromper os embates.

No caso da confrontação russo-ucraniana, a duração dos choques aproxima-se do biênio e já não se descortina a possibilidade de Kiev barrar os avanços de Moscou, malgrado o intenso auxílio financeiro e bélico. Além disso, o projeto de expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte encontra-se ameaçado enquanto continuar a invasão.

De modo involuntário, ocasional trunfo na política exterior de Washington poderia advir da América do Sul a partir do posicionamento temerário da Venezuela, ao desejar absorver três quartos do território da Guiana, o que na prática significaria o fim da existência da diminuta nação.

Conquanto haja embasamento histórico na reivindicação de Caracas, a forma de atuação de Nicolas Maduro é bastante inadequada. Embora a movimentação se dirija à abalada sociedade interna, haja vista a eleição em 2024, a repercussão da medida abrange Washington, Pequim, Moscou e Brasília, em função do entrelaçamento de interesses energéticos, econômicos, ideológicos e militares.

Com a fanfarronice de incorporar o indefeso vizinho, a Venezuela pode proporcionar aos Estados Unidos em 2024 a perspectiva de defender pequeno país em nome da autodeterminação e do repúdio ao caudilhismo e, ao mesmo tempo, de erodir o poderio do regime bolivariano. É hora de ingresso da diplomacia multilateral.

 

Fonte: Fórum/Correio da Cidadania

 

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