Brian Mier: Como a mídia estadunidense suprimiu o papel de seu governo
no golpe contra o Brasil
Em um novo artigo acadêmico revisado por pares na
revista Latin American Perspectives intitulado "Anticorrupção e Pontos Cegos Imperialistas: O Papel dos Estados Unidos
no Longo Golpe do Brasil", Sean T. Mitchell, Rafael Ioris, Kathy
Swart, Bryan Pitts e eu provamos, além de qualquer dúvida, que o Departamento
de Justiça dos EUA foi um ator-chave no que chamamos de "longo golpe"
no Brasil. Esse foi o período de 2013, começando com os eventos que levaram
ao impeachment ilegítimo de Dilma Rousseff em
2016, até a libertação, em novembro de 2019, do então ex-presidente e atual presidente Lula da
Silva, de sua prisão política.
"Por mais de meio século, intervir contra
governos democraticamente eleitos foi apenas metade da história",
escrevemos; "a segunda metade envolve justificar, minimizar ou negar o
envolvimento dos EUA". O artigo criticou acadêmicos estadunidenses por
ignorar as provas amplas desse envolvimento. Ele instou os latinamericanistas a
retornarem à tradição anti-imperialista que estabeleceu seu campo academico
como uma fonte líder de críticas informadas à política externa dos EUA. Neste
artigo, faço o mesmo apelo aos jornalistas dos EUA que viveram no Brasil
durante esse período e permaneceram em silêncio sobre o papel de seu governo na
remoção do candidato presidencial líder nas eleições de 2018, abrindo caminho
para o neo-fascista Jair Bolsonaro.
·
Colusão revelada
Por quase cinco anos, a enorme investigação
anticorrupção do Brasil, chamada Operação Lava Jato, recebeu cobertura elogiosa na mídia dos Estados Unidos. Os
artigos tratavam o juiz Sergio Moro, como um herói e combatente anticorrupção,
raramente questionando a narrativa oficial dos promotores públicos. A mídia
deixou de questionar a extrapolação judicial, mesmo quando os promotores
realizaram ações como grampear ilegalmente o escritório de advocacia da equipe de defesa
do ex-presidente Lula da Silva.
Essa narrativa começou a se desfazer em 2019,
graças a uma longa e gradual série de artigos no Intercept,
baseada em um extenso arquivo de conversas hackeadas no Telegram reveladas pelo Walter Delgatti. Os textos mostraram a colusão entre a
força-tarefa da Operação Lava Jato e o juiz Sergio Moro, revelando, entre
outras coisas, que eles sabiam que não tinham provas suficientes para processar Lula
em um julgamento justo.
Quatro meses após a libertação de Lula da prisão,
enquanto a pandemia de Covid-19 dominava as manchetes mundiais, o 97º matéria da série do Intercept Brasil (12/3/20)
revelou que uma equipe de 18 agentes do FBI, liderada pela agente especial
Leslie Backschies, encontrou-se regularmente com membros da força-tarefa da
Lava Jato por anos.
Durante essas reuniões, os agentes do FBI
orientaram os procuradores brasileiros sobre o uso de vazamentos na mídia para
prejudicar a reputação de figuras do alto escalão do Partido dos Trabalhadores,
incluindo Lula. Eles também deram lições sobre o uso eficaz do acordo de
delação premiada, uma tática eticamente questionável, amplamente utilizada nos EUA e
recentemente legalizada no Brasil.
O artigo do Intercept foi a
evidência final que os jornalistas brasileiros que desafiavam a narrativa
oficial da Operação Lava Jato aguardavam há anos. No entanto, já havia registros públicos suficientes do papel do Departamento de
Justiça (DoJ) na Lava Jato antes do artigo do Intercept para
que, em junho de 2019, o deputado brasileiro Paulo Pimenta apresentar um dossiê ao Parlamento Europeu e a um grupo de congressistas democratas dos
EUA, no qual ele argumentava convincentemente que o DoJ não era apenas um
parceiro, mas estava liderando a investigação.
·
Longe de ser um segredo
O papel dos Estados Unidos na Operação Lava Jato
dificilmente era um segredo que precisava ser descoberto por uma reportagem
investigativa rigorosa. Entre dezembro de 2016 e junho de 2019, o Departamento
de Justiça (DoJ) reconheceu publicamente sua relação com a força-tarefa da Lava
Jato em vários comunicados à imprensa e em um discurso (19/7/17) feito pelo Procurador-Geral Adjunto Kenneth Blanco no
Atlantic Council.
Por exemplo, o DoJ divulgou um comunicado à imprensa (21/12/16) sobre o maior caso de
suborno estrangeiro já resolvido em um tribunal dos EUA, que impôs multas de
US$ 3,5 bilhões à Odebrecht Construction Company do Brasil e à Braskem
Petrochemicals. O comunicado vangloriava-se da colaboração do escritório do FBI
em Nova York, do Escritório de Assuntos Internacionais do Departamento de
Justiça e da SEC dos EUA com o Ministério Público Federal e a Polícia Federal
do Brasil.
Um artigo da Reuters (21/12/16) sobre o mesmo assunto descreveu a
Operação Lava Jato como uma investigação brasileira que envolveu colaboração
com autoridades dos EUA, que esperavam "perseguir mais casos criminais sob
sua jurisdição".
O artigo do New York Times (21/12/16) sobre a decisão descreveu a
Operação Lava Jato e citou Sung-Hee Suh, subprocuradora-geral adjunta da
Divisão Criminal do Departamento de Justiça: "Uma conduta tão descarada
exige uma resposta firme por parte das autoridades policiais, e através
de um esforço conjunto com nossos colegas no Brasil e na Suíça, vimos
exatamente isso."
Em 2016, a colaboração dos EUA na Operação Lava
Jato também foi amplamente coberta pela mídia corporativa do Brasil. Por
exemplo, um dos maiores jornais diários do Brasil, o Estado de S. Paulo,
publicou uma matéria chamada, Justiça dos EUA amplia investigações de corrupção para empresas da Lava
Jato. A reportagem informava:
Funcionários do DoJ têm tido contato permanente com
autoridades judiciais brasileiras em busca de informações sobre corrupção
e também para colaborar com as investigações brasileiras, afirmam as
fontes. Recentemente, o chefe da unidade de FCPA do Departamento de
Justiça, Patrick Stokes, foi a Curitiba, onde ficou quatro dias e conversou com
o juiz Sergio Moro e membros da força-tarefa da Lava Jato. Outros
técnicos foram ao Rio em busca de informações sobre a Petrobrás e construtoras
envolvidas em denúncias de corrupção.
Em 21 de dezembro de 2016, foi a última vez que o
envolvimento dos EUA na Operação Lava Jato foi mencionado no New York
Times até 26 de fevereiro de 2021, em um artigo de opinião de Gaspard Estrada.
·
Desaparecimento da Conexão
Qualquer pessoa que estivesse acompanhando as
notícias sobre o Brasil de perto deveria ter sabido até o final de 2016 que o
Departamento de Justiça dos EUA era um parceiro na Operação Lava Jato. Além
disso, mesmo que um jornalista tenha perdido todos os artigos na mídia dos EUA
e do Brasil sobre o papel do DoJ na investigação em 2016, a longa história de
interferência dos EUA em governos progressistas na América Latina não
provocaria qualquer repórter interessado em descobrir a verdade a investigar a
questão?
Pelo contrário, durante aquele terrível ano de
2017, quando o governo do golpe retrocedeu os direitos trabalhistas em 80 anos,
privatizou setores-chave da economia brasileira, empurrou milhões abaixo da
linha da fome e preparou o líder político mais popular da história do Brasil
para a prisão sem apresentar qualquer evidência matérial, a questão do
envolvimento dos EUA no processo praticamente desapareceu na mídia dos
EUA.
Em julho de 2017, o Procurador-Geral Adjunto
Interino Kenneth Blanco fez um discurso no Atlantic Council que foi
transcrito e publicado no site do DoJ e disponibilizado para visualização no
YouTube. Nele, ele se vangloriou da condenação de Lula e elogiou as
comunicações constantes e informais entre os oficiais do DoJ e a força-tarefa
da Lava Jato.
Naquele setembro, o jornalista vencedor do Prêmio
Pulitzer e ex-colaborador frequente da Fox News, Glenn Greenwald, fez um discurso em um
evento hospedado pelo bilionário canadense Peter Allard, no qual ele enalteceu
a força-tarefa da Lava Jato. No entanto, no início de 2019, ele aceitaria uma
parte das conversas vazadas no Telegram entre os membros da força-tarefa,
levando à série de artigos do Intercept que demonstrou a
colaboração deles com o juiz Sergio Moro.
Foi um ato corajoso de jornalismo que rendeu a
Greenwald inúmeras ameaças de morte. Mas, em abril de 2022, conforme
documentado em um artigo da FAIR, ele ainda não havia mencionado o envolvimento dos
EUA na investigação.
Nas páginas da New Yorker em julho
de 2017, Alex Cuadros, que havia construído uma imagem progressista, rotulou o
procedimento de tribunal de exceção que retirou Lula das eleições de 2018,
abrindo caminho para a presidência do neo-fascista Bolsonaro, como "a
Condenação Criminal Mais Importante da História do Brasil". Ele não
mencionou o papel do DoJ nesta condenação "mais importante".
Olhando para a frente, uma série de artigos de 2019
sobre "o que deu errado", lançados após a prisão de Lula, a ascensão
de Bolsonaro à presidência e sua nomeação do juiz Sergio Moro, da Lava Jato,
como Ministro da Justiça, incluindo o artigo de Vincent Bevins na Atlantic "Os
Problemas Sujos da Operação Lava Jato", deixaram de mencionar a mão suja
dos EUA.
Mesmo a revista progressista estadunidense Jacobin,
que publicou 38 artigos
com uma visão negativa sobre o Partido dos Trabalhadores entre
2014 e o final de 2017, parece ter publicado seu primeiro artigo mencionando o envolvimento dos EUA na
Operação Lava Jato apenas em agosto de 2020, cinco meses depois que o Intercept finalmente publicou os chats vazados no Telegram
documentando a colusão com o DoJ e FBI e nove meses após a libertação de Lula
da prisão.
·
Um custo de carreira muito alto?
Por que tantos especialistas em Brasil, mesmo
aqueles como Greenwald e Bevins, que têm reputações como críticos ferrenhos do
envolvimento dos EUA em golpes em outros países, permaneceriam em silêncio
sobre o papel do Departamento de Justiça dos EUA no longo golpe no Brasil?
Será que eles simplesmente não viram os artigos
do New York Times e da Reuters de 2016, os
comunicados de imprensa do DoJ e a cobertura da imprensa brasileira sobre o
assunto? Se for o caso, mostra que eles não são tão conhecedores da política
brasileira como se apresentam ao público leitor.
Mas, mais provavelmente, a omissão do papel do DoJ
sugere que há um custo percebido muito maior, em termos de carreira, em dizer
"os EUA corromperam este governo" do que "este governo é
corrupto".
Se, por qualquer motivo, jornalistas sabiam sobre o
envolvimento de Washington e escolheram não escrever sobre isso - como um
jornalista do The Guardian deixou claro em uma conversa
pessoal comigo em abril de 2018, na véspera da prisão de Lula - eles são
cúmplices no que Gaspard Estrada chama de "o maior escândalo
judicial na história do Brasil".
# Este artigo foi originalmente
publicado no FAIR, traduzido para o português e editado para uma audiência
brasileira pelo autor.
Fonte: Brasil 247

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