quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Vijay Prashad: A guerra é como parece - sombria e feia

É impossível desviar o olhar do que o governo israelense está fazendo com os palestinos não apenas em Gaza, mas também na Cisjordânia. Aviões israelenses bombardeiam Gaza, destruindo suas redes de comunicação e, assim, impedindo que famílias se comuniquem entre si, que jornalistas façam reportagens sobre a destruição e que autoridades palestinas e as agências das Nações Unidas forneçam assistência humanitária. Essa violência gerou protestos em todo o mundo, com bilhões de pessoas indignadas com a destruição assimétrica do povo palestino. Se o governo israelense alega que está realizando uma forma de “politicídio”, retirando as forças palestinas organizadas de Gaza, o mundo vê as aeronaves e os tanques israelenses realizando nada mais que um genocídio, deslocando e massacrando os refugiados palestinos em Gaza, 81% dos quais foram expulsos ou são descendentes daqueles que foram expulsos do território declarado como Israel em 1948. Todas as imagens que saem de Gaza mostram que o ataque de Israel é implacável, não poupando crianças, mulheres, idosos e enfermos. O fracasso do mundo em interromper os massacres, um após o outro, nos mostra a profunda desintegração de nosso sistema internacional.

Esse sistema internacional quebrado, com base na ONU, nos trouxe o conflito na Ucrânia e agora está provocando um confronto perigoso no nordeste da Ásia, com pontos de conflito na península coreana e em Taiwan. Embora existam indicações que os EUA e a China reiniciarão as conversações militares que foram suspensas em agosto de 2022, quando a ex-presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, visitou Taiwan em um ato de aventureirismo imprudente, isso não indica uma diminuição das tensões nas águas ao redor do nordeste da Ásia. Por esse motivo, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Basta de Guerra Fria e o Centro Internacional de Estratégiafizeram uma parceria para produzir o Briefing n. 10, Os EUA e a Otan militarizam o nordeste da Ásia, que compõe o restante da carta desta semana.

·         Os EUA e a Otan militarizam o nordeste da Ásia

Em 22 de outubro, os Estados Unidos, o Japão e a Coreia do Sul realizaram seu primeiro exercício aéreo conjunto. O exercício militar ocorreu depois que o presidente dos EUA, Joe Biden, o primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, e o presidente sul-coreano, Yoon Suk Yeol, se reuniram em Camp David em agosto “para inaugurar uma nova era de parceria trilateral”. Embora a Coreia do Norte tenha sido frequentemente invocada como um bicho-papão regional para justificar a militarização, a formação de uma aliança trilateral entre os EUA, o Japão e a Coreia do Sul é um elemento fundamental dos esforços de Washington para conter a China. A militarização do nordeste asiático ameaça dividir a região em blocos antagônicos, minando décadas de cooperação econômica mutuamente benéfica, e aumenta a probabilidade de eclosão de um conflito, principalmente em relação a Taiwan, envolvendo os países vizinhos em uma rede de alianças.

·         A remilitarização do Japão

Nos últimos anos, incentivado pelos Estados Unidos, o Japão passou por sua maior militarização desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Após a derrota do Japão, uma nova constituição pós-guerra foi redigida por oficiais de ocupação dos EUA e entrou em vigor em 1947. Sob essa “constituição de paz”, o Japão se comprometeu renunciar “para sempre à guerra […] e à ameaça ou uso da força como meio de resolver disputas internacionais”. Entretanto, com a Revolução Chinesa em 1949 e o início da Guerra da Coreia em 1950, os EUA rapidamente reverteram sua conduta em relação ao Japão. De acordo com historiadores do Departamento de Estado dos EUA, a ideia de um Japão rearmado e militante já não alarmava as autoridades dos EUA; em vez disso, a verdadeira ameaça parecia ser o avanço do comunismo, principalmente na Ásia. A tarefa de alterar e contornar a “constituição de paz” do Japão foi assumida pelo Partido Liberal Democrático (PLD), nacionalista de direita, que recebeu milhões de dólares de apoio da Agência Central de Inteligência dos EUA durante a Guerra Fria e tem governado o país quase ininterruptamente (com exceção de 1993-1994 e 2009-2012) desde 1955.

Na última década, o PLD transformou a política de defesa do Japão. Em 2014, incapaz de alterar a constituição, o governo do PLD liderado por Shinzo Abe a “reinterpretou” para permitir o “pacifismo proativo” e retirou a proibição do envolvimento de tropas japonesas em combates no exterior, permitindo que o país participasse de intervenções militares para ajudar aliados como os EUA. Em 2022, o governo Kishida rotulou a China como “o maior desafio estratégico de todos os tempos para garantir a paz e a estabilidade do Japão” e anunciou planos para dobrar os gastos militares para 2% do Produto Interno Bruto (no mesmo nível dos países da Otan) até 2027, derrubando o teto do Japão do pós-guerra que limitava os gastos militares a 1% do PIB. A administração também encerrou uma políticaque datava de 1956 e que limitava a capacidade de defesa do Japão contra mísseis e adotou uma política que dá permissão à capacidade de contra-ataque. Essa medida abriu caminho para que o Japão comprasse 400 mísseis Tomahawk dos EUA a partir de 2025, com a capacidade de atacar bases navais chinesas e russas localizadas na costa leste dos países.

·         Absolvendo o colonialismo japonês

Historicamente, os esforços de Washington para criar alianças multilaterais na região da Ásia-Pacífico fracassaram devido ao legado do colonialismo japonês. Durante a Guerra Fria, os EUA recorreram a uma rede de alianças bilaterais com países da região, conhecida como Sistema São Francisco. O passo inicial para a criação desse sistema foi o Tratado de Paz de São Francisco (1951), que estabeleceu relações pacíficas entre as potências aliadas e o Japão. Para acelerar a integração do Japão como aliado, os EUA excluíram as vítimas do colonialismo japonês (incluindo a China, a administração liderada pelo Kuomintang em Taiwan e as duas Coreias) da conferência de paz de São Francisco e isentaram Tóquio de assumir a responsabilidade por seus crimes coloniais e de guerra (incluindo massacres, escravidão sexual, experimentos humanos e trabalho forçado).

A nova aliança trilateral entre EUA, Japão e Coreia do Sul conseguiu superar os impedimentos anteriores porque o governo Yoon, na Coreia do Sul, renunciou à responsabilidade do Japão pelos crimes cometidos durante seu domínio colonial sobre a Coreia (1910-1945). Mais especificamente, a administração Yoon abandonou uma decisão de 2018 da Suprema Corte da Coreia do Sul que responsabilizava empresas japonesas, como a Mitsubishi, pelo trabalho forçado de coreanos. Em vez de ser finalmente responsabilizado, o Japão foi mais uma vez deixado de lado.

·         Rumo a uma Otan asiática?

Em 2022, a Otan considerou a China como um desafio de segurança pela primeira vez. A cúpula daquele ano também foi a primeira com a presença de líderes da região da Ásia-Pacífico, incluindo Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia (esses quatro países participaram novamente em 2023). Enquanto isso, em maio, foi noticiado que a Otan estava planejando abrir um “escritório de relações” no Japão, embora a proposta pareça ter sido arquivada – por enquanto.

A aliança trilateral entre os EUA, o Japão e a Coreia do Sul é um passo importante para alcançar níveis de atuação da OTAN na Ásia, ou seja, a interoperabilidade com relação a forças armadas, infraestrutura e informações. O acordo alcançado na reunião de Camp David em agosto compromete cada país a realizar reuniões e exercícios militares anuais. Esses exercícios de guerra permitem que as três forças armadas pratiquem o compartilhamento de dados e a coordenação de suas atividades em tempo real. Além disso, o Acordo de Segurança Geral de Informações Militares (GSOMIA) entre o Japão e a Coreia do Sul – muito almejado pelos EUA – amplia o compartilhamento de informações militares entre os dois países para não se limitar apenas aos mísseis e programas nucleares da RPDC, mas também incluir as ameaças da China e da Rússia. Isso permite que os EUA, o Japão e a Coreia do Sul desenvolvam um quadro operacional comum, a base da interoperabilidade no teatro militar do nordeste asiático.

·         Promovendo a paz

No início deste ano, em referência à Ásia-Pacífico, o embaixador dos EUA na China, Nicholas Burns, declarou que seu país é “o líder nessa região”. Enquanto a China propôs um conceito de “segurança indivisível”, o que significa que a segurança de um país depende da segurança de todos, os EUA estão adotando uma abordagem hostil que busca formar blocos exclusivos. A atitude hegemônica de Washington em relação à Ásia está alimentando as tensões e empurrando a região para o conflito e a guerra – principalmente em relação a Taiwan, que Pequim chamou de uma questão de “linha vermelha”. Para resolver a situação no nordeste da Ásia, será necessário se afastar de uma estratégia centrada na manutenção do domínio dos EUA. As pessoas posicionadas para liderar esse movimento são aquelas que já estão lutando na linha de frente, desde moradores de Gangjeong, que se opõem a uma base naval para navios de guerra dos EUA desde 2007, e habitantes de Okinawa, que lutam para não ser mais o porta-aviões inafundável dos EUA, até o povo de Taiwan que, em última análise, é quem mais tem a perder com a guerra na região.

O nordeste da Ásia tem uma longa tradição de batalhas que lutam para estabelecer o lado bom da história contra o lado feio e sombrio. Kim Nam-ju (1946-1994) foi um guerreiro de uma dessas batalhas, poeta e militante do movimento minjung [do povo] contra as ditaduras da Coreia do Sul que prenderam ele e muitas outras pessoas, de 1980 a 1988. Aqui está seu poema sobre o Massacre de Gwangju em 1980:

Foi em um dia de maio.

Foi em um dia de maio de 1980.

Foi em uma noite de maio de 1980, em Gwangju. À meia-noite, vi

a polícia ser substituída pela polícia de combate.

À meia-noite, vi

a polícia de combate ser substituída pelo exército.

À meia-noite, vi

Civis americanos deixando a cidade.

À meia-noite, vi

todos os veículos bloqueados, tentando entrar na cidade. Oh, que meia-noite sombria foi essa!

Oh, que meia-noite deliberada foi essa! Foi em um dia de maio.

Foi em um dia de maio de 1980.

Foi em um dia de maio de 1980, em Gwangju. Ao meio-dia, vi

uma tropa de soldados armados com baionetas.

Ao meio-dia, vi

uma tropa de soldados como uma invasão de uma nação estrangeira.

Ao meio-dia, vi

uma tropa de soldados como um saqueador de pessoas.

Ao meio-dia, vi

uma tropa de soldados como uma encarnação do demônio.   Oh, que meio-dia terrível foi esse!

Oh, que meio-dia malicioso foi esse! Foi em um dia de maio.

Foi em um dia de maio de 1980.

Foi em uma noite de maio de 1980, em Gwangju. À meia-noite

a cidade era um coração em forma de colmeia.

À meia-noite

A rua era um rio de sangue que corria como lava. À 1 hora

o vento agitava os cabelos manchados de sangue de uma jovem mulher assassinada.

À meia-noite

a noite se empanturrou com os olhos de uma criança, que saltaram como balas.

À meia-noite

Os matadores continuaram a se mover ao longo da montanha de cadáveres. Oh, que meia-noite horrível foi essa!

Oh, que massacre calculado foi esse! Foi em um dia de maio.

Foi em um dia de maio de 1980. Ao meio-dia

O céu era um tecido de sangue carmesim.

Ao meio-dia

Nas ruas, todas as casas estavam chorando.

A Montanha Mudeung enrolou seu vestido e escondeu o rosto.

Ao meio-dia

o rio Youngsan prendeu a respiração e morreu. Ah, nem mesmo o massacre de Guernica foi tão horrível quanto esse!

Ah, nem mesmo a trama do demônio foi tão calculada quanto essa! Troque a palavra “Gwangju” por “Gaza” hoje e o poema continuará sendo vital. Nossa análise da realidade que se desenrola no nordeste da Ásia deve aguçar nossa compreensão do que está acontecendo no sudoeste da Ásia – em Gaza, uma linha de frente de uma luta mundial que sangra sem fim à vista.

Cordialmente,

Vijay.

 

Fonte: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social/Brasil de Fato

 

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