sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Por que Coreia do Sul tem os maiores índices de suicídio entre países desenvolvidos

“Quando encontrei o corpo frio do meu irmão mais novo, há três anos, meu coração foi tomado por um inverno.”

O sul-coreano Jang Jun-ha ficou especialmente abalado ao encontrar o corpo porque seu irmão só tinha 35 anos.

Ele ligou para a polícia depois de dias sem conseguir contato com o irmão por telefone.

Quando arrombaram a porta do quarto, Jang encontrou Jun-an sem vida na cama.

“Naquela época, eu fazia um curso para ser instrutor em um centro de prevenção de suicídio”, conta Jang.

“Visitei escolas para educar as crianças sobre os sinais comuns de pessoas que pensam em suicídio e o que pode ser feito para ajudá-las", disse.

“Eu estava tentando salvar a vida de outras pessoas, mas nunca imaginei que meu irmão iria tirar a dele.”

Jang, de 45 anos, ainda acha difícil falar abertamente sobre o que sua família passou, já que este é um tema delicado na sociedade sul-coreana. No entanto, ele diz se esforçar nesse sentido para aumentar a conscientização sobre a questão do suicídio.

•        A maior taxa de suicídio entre países ricos

A Coreia do Sul é famosa pelos grupos musicais de k-pop e empresas globais como a Samsung. Mas nesta sociedade aparentemente bem-sucedida, 36 pessoas cometem suicídio a cada dia.

O país tem a maior taxa de suicídio entre as 38 nações que formam a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Estatísticas do governo da Coreia do Sul apontam que 13.352 pessoas tiraram a vida em 2021.

O suicídio é a principal causa de morte entre sul-coreanos com idades entre 10 e 39 anos. Mais de duas em cada cinco mortes (43,7%) entre adolescentes são por suicídio. Este número sobe para 56,8% entre aqueles na faixa dos 20 anos e depois cai para 40,6% entre aqueles na faixa dos 30 — geração a que o irmão de Jang pertencia.

O país tem uma taxa de 23,6 mortes por suicídio por 100 mil pessoas, mais que o dobro da média da OCDE de 11,1 mortes.

O governo anunciou recentemente um plano de cinco anos para prevenir suicídios com o objetivo de reduzir a taxa em 30%.

Este objetivo é significativo porque, se o governo for bem sucedido, deixará de ser classificado como o país com a maior taxa de suicídio na OCDE.

Mas será isso um golpe de relações públicas ou uma medida séria para resolver os problemas profundos subjacentes a esses números?

•        Uma sociedade sob alta pressão

A taxa de suicídio na Coreia do Sul tem a ver com uma combinação de fatores econômicos, sociais e culturais.

Depois de ser devastado pela Guerra da Coreia, que terminou em 1953, o país renasceu das cinzas para se tornar uma potência econômica.

Mas esse rápido crescimento econômico não levou a uma expansão dos serviços públicos, contribuindo, em vez disso, para uma desigualdade crescente.

Isto criou uma sociedade baseada em elevados níveis de competitividade, o que levou muitos dos seus cidadãos a sofrer de problemas de saúde mental.

Após a morte do irmão, Jan descobriu que ele vinha fazendo sessões de terapia semanalmente nos últimos 10 anos.

“Meu irmão se formou em teoria do cinema e se preparava para estudar no exterior. Como muitas outras famílias coreanas, ele sofria muita pressão para ter sucesso. Mas o dinheiro era curto e a vida pesava sobre ele”, diz Jang.

“Meu irmão lutou intensamente contra a depressão. Parte meu coração não ter percebido isso durante tanto tempo.”

Especialistas há muito tempo salientam os perigos de uma sociedade que se concentra demasiadamente no sucesso pessoal, geralmente manifestado em termos de dinheiro ou status social.

“Além da elevada taxa de suicídio na Coreia do Sul, há uma triste história de uma sociedade com um sistema de bem-estar social fraco, muito orientado para o sucesso, geralmente refletido na quantidade de riqueza que se acumula”, diz Soong-nang Jang, reitor da faculdade de enfermagem Chung-Ang.

“E à medida que os laços tradicionais entre familiares e vizinhos enfraquecem, todos parecem estar sozinhos nesta batalha pelo sucesso.”

•        'Falemos'

Esta cultura está mudando lentamente e ainda há muito a fazer.

“Os sul-coreanos estão muito habituados a estar à frente nesta sociedade hipercompetitiva, e a Coreia não é exatamente um lugar onde seja fácil expressar sentimentos”, diz Yeon-soo Kim, diretora da LifeLine Seul, um grupo que disponibiliza uma linha de prevenção ao suicídio disponível 24 horas por dia.

“As pessoas precisam de mais espaço para expressar livremente e com segurança suas lutas e sentimentos. “Precisamos continuar lembrando às pessoas que existem diferentes maneiras de ter sucesso e realmente reconhecer isso.”

Jang agora trabalha como psicólogo clínico em um centro de saúde mental em Seul, ajudando famílias afetadas por suicídio e pessoas com pensamentos suicidas. Ela também lidera grupos de apoio para famílias que perderam entes queridos por suicídio.

"É um trabalho duro. Os parentes geralmente são os primeiros a descobrir o corpo. Eles se lembram da cena vividamente e também descrevem o que aconteceu de forma muito explícita.”

Jang está ciente da carga emocional dessas conversas.

“Mas vale a pena quando você vê que eles estão melhorando.”

E sua família também alcançou um sentimento de aceitação e compreensão.

Jang diz que o irmão deixou um bilhete pedindo perdão a ele e aos pais por abandoná-los.

Um dia, durante visita da família ao túmulo, Jang disse a seu irmão mais novo que “está tudo bem”.

“Você não precisa se desculpar. Estamos bem, cuidando uns dos outros”, diz Jang.

“Não há necessidade de se desculpar, logo voltaremos.”

 

       O suicídio de professora vítima de 'bullying de pais' na Coreia do Sul

 

Em 5 de junho deste ano, a professora sul-coreana Lee Min-so*, de 23 anos, descreveu em seu diário o medo que tomava conta de seu corpo quando entrava em sala de aula.

"Meu peito está muito apertado. Sinto que vou cair em algum lugar. Nem sequer sei onde estou."

Em 3 de julho, Lee escreveu que estava tão sobrecarregada com as demandas do trabalho que "queria abandonar tudo".

Duas semanas depois, ela foi encontrada morta no armário da sala de aula por seus colegas. Lee havia tirado a própria vida.

O episódio desencadeou uma onda de protestos por parte dos professores do Ensino Fundamental em toda a Coreia do Sul.

Dezenas de milhares deles entraram em greve nesta segunda-feira (4/9) para exigir melhor proteção no trabalho.

Os professores alegam ser frequentemente vítimas de assédio por pais autoritários, que ligam para eles a qualquer hora do dia e nos finais de semana, com queixas injustas e incessantes.

O primo de Lee, Park Du-yong, luta contra as lágrimas enquanto arruma o pequeno apartamento vazio dela, que agora abriga apenas seu peixinho dourado.

A cama está desfeita e ao lado dela há uma pilha de desenhos de seus alunos da primeira série, dizendo o quanto eles a amavam. E, logo abaixo, outra pilha, esta de livros da biblioteca, sobre como lidar com a depressão.

Park diz que sua prima lecionava há pouco mais de um ano, realizando seu sonho de infância ao seguir a profissão de sua mãe. Ela adorava as crianças, diz ele.

Por isso, nos dias seguintes à morte de Lee, que a polícia rapidamente atribuiu ao término recente de um relacionamento, Park assumiu o papel de detetive.

Ele leu centenas de anotações de diário de sua prima, assim como relatórios de trabalho e mensagens de texto.

Esse conteúdo revelou que nos meses que antecederam seu suicídio, Lee foi bombardeada por reclamações dos pais.

Mais recentemente, um de seus alunos havia ferido a cabeça de outra criança com um lápis, e ela estava envolvida em discussões acaloradas com pais, que ligavam ou mandavam mensagens para ela tarde da noite.

Nas últimas seis semanas, dezenas de milhares de professores realizaram protestos na capital Seul, alegando que estão agora com tanto medo de serem acusados de maus-tratos contra crianças que são incapazes de impor autoridade em sala de aula ou intervir quando elas brigam entre si.

Eles acusam os pais de se aproveitarem de uma lei de bem-estar infantil, aprovada em 2014, que determina que docentes acusados de abuso infantil sejam automaticamente suspensos.

Por essa legislação, os professores podem ser indiciados por abuso infantil ao tentarem conter uma criança violenta, enquanto uma repreensão é frequentemente rotulada como abuso emocional.

Tais acusações podem fazer com que os professores sejam imediatamente afastados dos seus empregos.

Um professor recebeu uma queixa formal após negar o pedido de um pai para acordar o filho com um telefonema todas as manhãs.

Outro foi denunciado por abuso emocional depois repreender um menino que havia ferido seu colega de classe com uma tesoura.

•        Pressão e agressividade

Em um dos protestos acompanhados pela reportagem da BBC, a professora Kim Jin-seo, de 28 anos, disse que tinha tido pensamentos suicidas e precisou tirar três meses de licença após duas queixas particularmente agressivas de pais.

Ela conta que certa vez pediu a um aluno indisciplinado que dedicasse cinco minutos para se acalmar no banheiro, enquanto no outro denunciou uma criança aos pais por brigar. Em ambos os casos, a escola a forçou a pedir desculpas.

Kim diz que chegou a um ponto em que sentiu que não poderia dar aulas com segurança.

"Nós, professores, nos sentimos extremamente impotentes. Aqueles que experimentaram isso em primeira mão mudaram fundamentalmente, e aqueles que não o fizeram, viram isso acontecer com outros, então de qualquer forma é debilitante", diz.

Para especialistas, essa cultura de reclamação está sendo alimentada pela sociedade hipercompetitiva da Coreia do Sul, na qual quase tudo depende do sucesso acadêmico.

Os estudantes competem arduamente pelas melhores notas desde muito jovens, para um dia entrar nas melhores universidades.

Fora da escola, os pais enviam os filhos para estudar em escolas extracurriculares caras, conhecidas como hagwons, que funcionam das 5h às 22h.

Enquanto as famílias na Coreia costumavam ter cinco ou seis filhos, agora a maioria tem apenas um, o que, para muitas, significa que têm uma única oportunidade de sucesso.

O professor Kim Bong-je, que forma futuros professores na Universidade Nacional de Educação de Seul, também culpa o aumento da desigualdade.

Tradicionalmente, a Coreia do Sul tinha uma cultura muito forte de respeito pelos professores, explica ele, mas devido ao rápido crescimento econômico do país, muitos pais são agora altamente qualificados.

"Isso significa que muitas vezes menosprezam os professores", diz ele. "Eles pensam que, por 'bancar' o salário dos professores com seus impostos, podem fazer o que quiserem. Ou seja, sentem-se superiores."

Outro professor, Kwon, diz à BBC que nos 10 anos em que trabalha como docente, tirou dois períodos de licença médica para lidar com depressão e ataques de pânico, ambos desencadeados pelo estresse causado por pais e alunos.

Até quatro anos atrás, um professor podia expulsar um aluno de sala de aula, conta, mas então os pais começaram a processar docentes por abuso infantil.

Kwon se mudou recentemente para uma escola numa comunidade mais pobre e confirmou que o comportamento dos pais em áreas ricas era muito pior.

"A mentalidade deles é 'só meu filho importa', e quando tudo que você consegue pensar é mandar seu próprio filho para uma boa faculdade, você se torna muito egoísta", diz.

Ele não tem dúvidas de que essa pressão atinge as crianças, afetando também o seu comportamento.

"Os alunos não sabem como aliviar essa pressão, então agem agredindo uns aos outros."

O bullying e a violência entre alunos são problemas bastante conhecidos nas escolas sul-coreanas.

A popular série The Glory, por exemplo, gira em torno de uma mulher em busca de vingança contra ex-colegas que faziam bullying contra ela.

Baseada em fatos reais, a série retrata alguns episódios chocantes de violência.

Em uma reviravolta na história, o próprio diretor da série foi acusado de ter cometido bullying quando era aluno de escola e se viu forçado a se desculpar.

Em fevereiro, o governo, sob pressão para resolver a questão, anunciou que os registros de bullying dos alunos seriam incluídos nas suas candidaturas a universidades.

Introduzida para tentar coibir o bullying e a intimidação de alunos, a medida, entretanto, acabou alimentando ainda mais a ansiedade dos pais, levado muitos a pressionar professores para que apagassem os erros dos seus filhos.

Shin Min-hyang, que dirige a organização Solidariedade para a Proteção dos Direitos Humanos de Estudantes e Pais, diz que esse comportamento é inaceitável, mas argumenta que casos assim são atípicos.

"A grande maioria dos pais se comporta bem e estamos preocupados de que os canais que utilizamos para comunicar as nossas preocupações sejam agora cortados. Os pais estão sendo considerados culpados e isso não está certo", diz ela.

Shin admite que já fez queixa contra professores no passado e que gostaria de ter obtido mais informações sobre a educação de seu filho e como ele foi disciplinado.

Um dos pais, que não quis ser identificado, diz temer que as reclamações tenham saído do controle.

Ele mostrou à BBC o conteúdo de um bate-papo entre pais num aplicativo de mensagem, no qual eles encorajavam uns aos outros a assediar uma professora por causa de uma decisão que ela havia tomado.

"Se o seu número for bloqueado, use os telefones de sua família e amigos para ligar", instruiu um dos pais no bate-papo.

"Se os professores não tiverem o poder de intervir com alunos problemáticos, outros serão afetados negativamente", diz o pai que não quis se identificar.

Segundo uma sondagem recente, menos de um quarto dos professores (24%) estava satisfeito com o seu trabalho, abaixo dos 68% em 2006, quando o levantamento começou a ser feito.

A grande maioria diz ter pensado em deixar a profissão no ano passado.

O governo admite o problema e, por isso, emitiu novas diretrizes para professores.

Pelas novas normas, eles poderão expulsar alunos desordeiros da sala de aula e discipliná-los, se necessário.

As regras determinam que as datas e horários de encontros de pais com professores devem ser combinados com antecedência, e os docentes podem se recusar a realizá-las depois do trabalho.

O ministro da Educação da Coreia do Sul, Lee Ju-ho, disse esperar que tais medidas "façam as escolas voltar a ser como antes".

Mas há muitos aqui que argumentam que o problema é muito mais abrangente e defendem que todo o sistema educacional da Coreia do Sul precisa ser reformado. E isso tem que acontecer com uma mudança em como a sociedade do país encara o sucesso acadêmico.

*Alteramos o nome da professora a pedido de sua família.

 

Fonte: Serviço Mundial da BBC

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário