De heróis contra covid a 'abandonados': a onda de greves dos
profissionais de saúde nos EUA
No dia 23 de outubro, mais de 1,3 mil funcionários
do sistema hospitalar PeaceHealth Southwest, na fronteira entre os Estados
americanos de Oregon e Washington, entraram em greve.
Eles vinham pedindo ao seu empregador que tomasse
medidas contra a falta de funcionários e oferecesse aumentos salariais que
compensassem o custo de vida local, que é 16% mais alto que a média nacional
dos Estados Unidos.
A PeaceHealth Southwest não atendeu às
reivindicações dos funcionários, segundo a tecnóloga de ultrassom Shawna Ross,
representante dos técnicos do hospital nas negociações. E, após o anúncio da
greve, a PeaceHealth "cancelou todas as nossas rodadas de negociação e
disse que, se a greve passasse de 1° de novembro, eles suspenderiam o nosso
seguro-saúde", segundo ela.
Profissionais da saúde de todo o país estão vivendo
problemas similares, trabalhando em departamentos com poucos funcionários e
baixos salários. Eles estão esgotados, saturados e prontos para agir.
Já houve greves em farmácias de todo o país e os
funcionários das redes de varejo Walgreens e CVS organizaram uma greve
nacional, que teve início em 30 de outubro.
Funcionários de dois hospitais diferentes do
condado de Los Angeles, na Califórnia (EUA), entraram em greve e, na primeira
semana de outubro, cerca de 75 mil funcionários do sistema de saúde Kaiser
Permanente em cinco Estados americanos entraram em greve por três dias. A
paralisação foi considerada a maior greve de profissionais de saúde da história
dos Estados Unidos.
"Esta é a maior onda de greves de
profissionais de saúde que já vi na minha vida", afirma Ingrid Nembhard,
professora de gestão de saúde da Escola Wharton da Universidade da Pensilvânia,
nos Estados Unidos. "Acho que, realmente, representa um pedido de ajuda –
que o que estava represado se rompeu."
• De
heróis para vilões?
Ao contrário do que muitas pessoas podem acreditar,
os principais problemas enfrentados pelos profissionais da saúde não começaram
com a pandemia, segundo Nembhard: "mesmo antes da covid, os profissionais
enfrentavam dificuldades".
"Havia falta de pessoal, que fazia com que o
volume de trabalho fosse grande para todos. O ambiente de trabalho não era
ideal para muitas pessoas e, culturalmente, havia a sensação de que não
podíamos nos manifestar e dizer 'existe um problema nesta área, o que podemos
fazer para que melhore?'"
"Então, veio a covid e os profissionais
vivenciaram coisas que nunca haviam visto antes, em termos de assistência às
pessoas, impacto sobre os pacientes, devastação e doença", explica
Nembhard.
A questão da falta de profissionais,
particularmente, era prevista pelos trabalhadores de campo, segundo Caroline
Lucas, diretora-executiva da Coalizão de Sindicatos da Kaiser Permanente, nos
Estados Unidos. Ela afirma que "muitos dos fatores que levaram à crise de
falta de profissionais eram previsíveis, questões que vínhamos monitorando há
cinco, seis anos".
O número de formandos nas faculdades de medicina e
enfermagem não vinha acompanhando as projeções de aposentadorias do setor. Mas,
além disso, Lucas afirma que a covid-19 gerou uma "aceleração em massa da
saída de funcionários, pessoas se aposentando mais cedo ou abandonando o setor
de saúde".
Lucas acrescenta que a falta de profissionais foi
agravada pelo aumento da demanda pós-pandemia, o que só agravou a sensação de
burnout e exaustão.
"Quando a urgência da pandemia de covid meio
que diminuiu e as pessoas que haviam postergado cirurgias ou suspendido
tratamentos preventivos começaram a retornar em massa ao sistema de saúde, não
havia pessoas que ajudassem a atender aquele fluxo", segundo ela.
Os profissionais das farmácias também enfrentaram a
falta de trabalhadores e o drástico aumento da demanda, como resultado dos
programas de vacinação e testes de covid-19.
"Os funcionários das farmácias CVS ou
Walgreens ficaram sobrecarregados com essa exacerbação das tarefas
profissionais, sem o correspondente aumento de contratações", afirma a
professora de sociologia Gretchen Purser, da Escola Maxwell de Cidadania e
Questões Públicas da Universidade de Siracusa, nos Estados Unidos.
Ela destaca que esses profissionais "se sentem
muito assoberbados, muito sobrecarregados, muito exaustos. E nada disso trouxe
aumento de salários."
Para Purser, este ritmo é "selvagem",
considerando como esses mesmos profissionais foram enaltecidos durante o auge
da pandemia.
"Três anos atrás, eles eram saudados como
heróis – literalmente, heróis", relembra ela, "e eles estão
simplesmente abandonados, agora que tudo passou."
• Não
há opção?
A decisão de entrar em greve não foi tomada de
forma leviana, segundo Lucas. Mas os profissionais perceberam que a medida era
necessária para melhorar as condições de atendimento.
"As pessoas perguntam se os pacientes não
ficarão em risco enquanto você está em greve e nós respondemos que os pacientes
estão em risco todos os dias", explica ela. "Se você for ao pronto
atendimento, irá esperar por oito horas. Se você receber um encaminhamento para
mamografia hoje, irá esperar seis meses. Existe uma crise."
Esta situação, segundo Nembhard, mostra que os
profissionais da saúde em greve acreditam que seus pacientes enfrentam maior
risco devido ao burnout, exaustão e falta de profissionais das equipes de
assistência.
"São muito poucas as pessoas que trabalham no
setor de saúde e não se preocupam com as pessoas, não se preocupam com a
humanidade e não estão dispostas a se sacrificar para cumprir com a missão de
atender os pacientes", ressalta ela. "Ver essas pessoas saindo e
dizendo 'não me sinto em posição de poder fornecer bom atendimento aos
pacientes e fazer bem o meu trabalho'? Isso é um sinal de alerta."
De fato, Purser afirma que, durante as negociações
entre os profissionais de saúde e os executivos dos hospitais, a preocupação
com o atendimento aos pacientes pode ter se tornado uma prioridade maior do que
os próprios salários.
"Eles sabem que os pacientes não estão
recebendo a assistência que merecem e de que precisam. Como se eles estivessem,
na verdade, negociando em nome do atendimento aos pacientes", ela conta.
"Eles estão dizendo 'bem, se temos falta
crônica de pessoal e estamos sobrecarregados, este empregador é incapaz de
fazer o que diz que é sua função'. Por isso, o ponto mais importante da
estratégia dos sindicatos no momento é pensar no atendimento aos
pacientes."
• Ações
coletivas podem fazer a diferença
A greve na Kaiser Permanente acabou resultando em
um acordo que, segundo Lucas, foi considerado muito promissor pelo sindicato.
O acordo aguarda para ser ratificado pelos
funcionários e, se for implementado, irá elevar os salários em 21% ao longo de
quatro anos e fornecer investimentos na contratação de novos funcionários e no
treinamento dos empregados atuais.
"Existe um pacote de salários e benefícios que
realmente ajuda a acompanhar o custo de vida, atraindo e mantendo as
pessoas", afirma Caroline Lucas, "e serão formados diversos comitês
para definir como podemos contratar melhor, quais vagas devem ser preenchidas
com mais urgência e como podemos mudar o fluxo de trabalho para garantir que as
pessoas consigam consultar seus médicos de forma rápida e eficiente."
Para ela, o acordo deverá ser um modelo para outras
organizações de assistência médica. Não é uma panaceia para os problemas do
sistema, mas o sentimento dos funcionários é de orgulho e esperança.
"Estes problemas não surgiram da noite para o
dia e também não serão resolvidos da noite para o dia", explica Lucas.
"Mas, pelo menos, as pessoas agora sentem que estão sendo ouvidas."
Para Ingrid Nembhard, a parte mais empolgante do
acordo da Kaiser Permanente é o compromisso assumido pelos gestores de utilizar
o conhecimento e a visão dos funcionários sobre o que realmente é preciso no
trabalho de campo.
"Acho que os profissionais de saúde e as
pessoas da linha de frente têm muitas ideias criativas", segundo ela, mas
essas ideias, muitas vezes, não são ouvidas, nem implementadas.
"Precisamos do apoio dos gestores para poder
fazer alguns desses experimentos e descobrir quais devem ser priorizados.
Também será preciso que os profissionais tenham paciência. É o que se espera
que saia dessas greves: uma parceria para fazer a diferença. Nenhum dos lados
tem todas as respostas, mas acho que temos o potencial para um novo dia."
Gretchen Purser afirma que, em primeiro lugar, é
provável que ocorram novas greves para forçar os empregadores a ouvir e atender
às necessidades dos profissionais.
"De forma geral, existe um forte aumento da
atividade dos sindicatos e greves nos Estados Unidos, o que é realmente
empolgante", afirma ela.
"Acho que existe uma espécie de efeito de
contágio, com as pessoas vendo ganhos reais que são obtidos em diversos
setores. Elas também se sentem mal remuneradas, sobrecarregadas, não
reconhecidas, não recompensadas e decidem tomar suas próprias ações",
conclui Purser.
Fonte: BBC Worklife
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