QUESTÕES AMBIENTAIS: BELÉM ENTRE A COP E O LIXO
Sentado no
meio-fio de uma rua em Marituba, Ailson Oliveira rememora o passado. O
município, parte da Região Metropolitana de Belém, já foi muito diferente. Era
pacato e, apesar da pobreza, vivia-se bem. A natureza era abundante, como em
tantas cidades erguidas à beira da Amazônia. Mas a paisagem começou a mudar nos
últimos trinta anos, conforme Marituba se desenvolvia a reboque da capital.
Tornou-se uma típica cidade-dormitório, onde boa parte dos habitantes sai para
trabalhar todos os dias em municípios vizinhos, especialmente Belém. Aumentaram
os índices de violência, o comércio, o número de edifícios e a população. O
IBGE contou 74 mil maritubenses em 2000; hoje, segundo o último Censo, são 110
mil.
Mas, do ponto de vista de Oliveira, mototaxista de
39 anos que sempre viveu na cidade, a mudança mais importante ocorreu em 2015.
Naquele ano, depois de fechar um grande lixão na cidade vizinha de Ananindeua,
o governo paraense abriu em Marituba um aterro sanitário para dar vazão ao lixo
produzido na própria cidade, em Ananindeua e em Belém. A medida tinha respaldo
de ambientalistas: aterros sanitários são uma solução mais sustentável do que
lixões, já que neles os resíduos passam por tratamento, em vez de serem
simplesmente depositados a céu aberto.
Em pouco tempo, no entanto, os moradores notaram
que algo não estava certo. Quem vivia nas redondezas sentia ondas fortíssimas
de mau odor, às vezes acompanhado de uma sensação de ardência no nariz e na
garganta – relatos incompatíveis com o que se espera um aterro
sanitário, que deveria conter a emissão de gases tóxicos emanados pelo lixo. O
alerta acendeu de vez com a proliferação de pragas urbanas e problemas respiratórios.
“O odor é
insuportável. Quando começa, dá ânsia de vômito. Se alguém estiver fazendo uma
refeição, tem que parar e guardar na hora”, diz Oliveira. “Uma estratégia dos
moradores, quando isso acontece, é pegar álcool, molhar em um pano e colocar no
nariz para esperar passar. O cheiro costuma durar de cinco a dez minutos.” A
rotina tem sido essa há oito anos.
Oliveira vive no Conjunto Albatroz, comunidade de
Marituba criada por programas habitacionais. Fica ao lado do aterro sanitário
e, por isso, é a área mais afetada. “É preocupação com rato, com catita,
carapanã, urubu – mosca nem se fala”, enumera o mototaxista. A
população também alertou, desde o princípio, para danos causados aos igarapés
da região, que começavam a mostrar sinais de contaminação causada pelo lixo.
Segundo a prefeitura de Marituba, o aterro recebe diariamente cerca de 1.500
toneladas de resíduos sólidos.
Um ano depois da instalação do aterro, moradores
organizaram um protesto que fechou a BR-316, rodovia que cruza Marituba, e
chamou atenção da imprensa paraense. Eles pediam que o governo tomasse
providências contra a Guamá Tratamento de Resíduo (GTR), empresa responsável
pelo aterro. Novas manifestações ocorreram em 2017. Pressionado, o governo
tomou para si a operação. Seguiu-se uma novela jurídica: o Ministério Público,
depois de investigar os danos causados à população e ao meio ambiente,
denunciou a GTR e outras três empresas do grupo Solví (do qual a GTR faz parte)
por dano ambiental e poluição. Argumentou que o aterro não dava tratamento
adequado ao chorume e aos gases produzidos ali. Três diretores do grupo
empresarial foram presos e hoje recorrem em liberdade. O MP também pediu que as
prefeituras de Marituba, Belém e Ananindeua fossem multadas por negligência.
As atividades do aterro, no entanto, nunca foram
suspensas. Enquanto responde a processos judiciais, a GTR reclama de não ter
sido devidamente paga pelas prefeituras e quer encerrar o negócio. Mas, como
não há outra cidade que se disponha a sediar um novo aterro, a Justiça impediu até
aqui, por meio de decisões liminares, que a Guamá acabe com a operação.
Amarrada ao imbróglio, Marituba continua tapando o
nariz. E o poder público ainda não sabe o que fazer com o lixo dos quase 2
milhões de habitantes dos três municípios.
Segunda maior
cidade da Amazônia, Belém sediará daqui a dois anos a 30ª edição da Conferência
da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30). São esperados chefes de Estado e
lideranças de todo o mundo, incluindo o Papa Francisco. O governo brasileiro,
quando se candidatou para sediar o evento, destacou a importância simbólica de
se discutir o futuro do planeta no meio da Floresta Amazônica. Pouco se falou
do fato de que Belém enfrenta, em seu próprio quintal, um problema básico de
destinação de lixo que afeta o meio ambiente.
A questão não se restringe a Belém. O Brasil lida
mal com o próprio lixo: no ano passado, 39% dos resíduos sólidos foram
descartados de forma inadequada, segundo dados da Associação Brasileira de
Empresas de Limpeza Pública e Resíduos (Abrelpe). A Política Nacional de
Resíduos Sólidos, sancionada por Lula em 2010, estabeleceu prazo até 2024 para
que todos os lixões do país sejam fechados. As prefeituras agora correm contra
o tempo. A solução mais adotada é a criação de aterros sanitários, mas essas operações
nem sempre são rigorosas no respeito ao meio ambiente e à população, como
mostra o caso de Marituba.
O aterro criado pelo governo do Pará foi tema de
duas teses de doutorado e uma de mestrado no Instituto Evandro Chagas (IEC),
instituição científica vinculada ao Ministério da Saúde e sediada em Belém. As
três pesquisas indicaram a presença de metais tóxicos e resíduos orgânicos
no corpo das pessoas que vivem perto do aterro, assim como nos riachos da
região, entre eles o igarapé Pau Grande. Para Rosivaldo Mendes,
pesquisador e especialista em Saúde Pública da Seção de Meio
Ambiente do IEC, “os resultados revelam que as alterações nos parâmetros
das águas superficiais estão em desacordo com a Resolução do Conselho
Nacional do Meio Ambiente (Conama) 357/2005”, que estabelece um limite
tolerável para a presença de elementos tóxicos em cursos d’água.
A pedido do Ministério Público, o professor da
Faculdade de Meteorologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) Breno Imbiriba
está analisando indícios de contaminação do ar nas redondezas do aterro
sanitário. O estudo, ainda não concluído, investiga se os picos de gases
tóxicos registrados na região estão relacionados ao lixo. Os gases são dois:
metano (CH4) e sulfídrico (H2S). Imbiriba diz que, além de produzirem mau odor,
eles podem acarretar problemas de saúde – “principalmente em pessoas sensíveis,
como os asmáticos”.
Procurada pela piauí, a GTR negou os
problemas apontados pelos pesquisadores. A empresa afirmou, por nota, que a
cada dois meses faz testes para medir a possível contaminação dos rios e lagos
da região. Os laudos, diz a GTR, “atestam que o aterro sanitário se mantém
operando sem alteração da qualidade ambiental dos recursos hídricos”. A empresa
também diz que vem atuando para conter o mau cheiro – mas diz que essa é uma
“consequência inevitável das operações que envolvem a manipulação e a
eliminação de resíduos”.
Yao Makini, de 42
anos, mora em Ananindeua, cidade de 479 mil habitantes que faz divisa com
Marituba. Na infância, ela adorava brincar na chuva e tomar banho de rio. De
uns anos para cá, no entanto, tornou-se pouco aconselhável fazer isso. Makini
vive no quilombo do Abacatal, que, embora seja distante 5 km do aterro
sanitário, sente os impactos do lixo acumulado ali. “Essa contaminação nos
privou de viver como trinta anos atrás”, ela lamenta. “Eu tinha uma liberdade,
quando criança, que hoje as crianças do território não têm mais.”
O igarapé ‘Pau Grande’, que nos estudos do IEC
mostrou sinais de estar contaminado com metais tóxicos e outros resíduos,
é um afluente do igarapé Uriboquinha, que banha o quilombo do Abacatal. Os
moradores dali sempre consumiram água do riacho, além de usá-lo para tomar
banho e em outras necessidades cotidianas. Já não podem mais fazê-lo.
O dano à população não foi o único argumento usado
pelo Ministério Público contra o aterro sanitário. Os promotores acusam o
consórcio de empresas de uma série de crimes ambientais, como desmatamento sem
autorização e abertura irregular de lagoas para armazenar chorume. A denúncia
foi apresentada em 2017. No ano seguinte, o consórcio anunciou que, por não
estar recebendo pagamento das prefeituras, fecharia o aterro em 2019. Mas o
Tribunal de Justiça do Pará não permitiu. Depois de uma audiência de
conciliação entre as empresas e os municípios, ficou acordado que o aterro
sanitário continuaria funcionando até, no mínimo, junho de 2021.
Em média, aterros têm vida útil de dez anos,
período que pode ser ainda menor a depender das características do local. Os
fatores que garantem a longevidade de um empreendimento assim
são: adequada impermeabilidade do solo, captura e tratamento de chorume,
clima de baixa umidade e, principalmente, acompanhamento da coleta seletiva. O
aterro de Marituba não apenas acumula indícios de negligência no trato do lixo
como foi construído numa cidade com índices elevados de umidade, traço
compartilhado por quase todas as cidades amazônicas.
Apesar disso tudo, o aterro está a pleno vapor.
Quando o prazo de 2021 chegou ao fim, a Justiça o estendeu por três meses. E
assim tem sido desde então: em agosto deste ano, o desembargador Luiz
Gonzaga da Costa Neto esticou por mais noventa dias o funcionamento do aterro,
argumentando que não há outro local onde possa ser despejado o lixo da Grande
Belém. O prazo, desta vez, se encerra em 30 de novembro. A piauí perguntou
ao governo do Pará, à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade e
à prefeitura de Belém, por e-mail, se a prorrogação das atividades do aterro
não agrava a situação em Marituba e se há uma alternativa sendo estudada. Não
houve resposta até a publicação desta reportagem.
A julgar pelas repetidas decisões judiciais, não
será surpreendente se o aterro ainda estiver funcionando quando as delegações
estrangeiras desembarcarem em Belém, em 2025.
Fonte: Revista Piauí
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