O que estamos perdendo com o avanço da última fronteira agrícola do
Brasil
Para quem vem de fora, a comunidade de Praia é uma
calmaria: um punhado de casas bem cuidadas à beira de um dos rios da região.
Mas essa aparência se desfaz sob tensas escalas de revezamento para monitorar
as terras e não permitir que grileiros lancem mão. “Foi nos anos 1970 que
começou a primeira grilagem. Até ali não existia preocupação com estranho,
porque não existia isso no nosso imaginário. A gente não conhecia esse tipo de
prática”, conta Eldo Moreira Barreto, da Associação Comunitária do Fecho
Clemente.
“Para a gente lidar com isso, tem sido muito
desafiador. São ameaças de todos os tipos. É bala, é tiro, é cadeia, é
repressão, é gente monitorando e perseguindo. Mas a gente faz isso porque aqui
é um lugar muito, muito bom de se viver. Faz isso porque a gente acredita e
quer continuar aqui.”
E é bom, mesmo. As comunidades de Fundo e Fecho de
Pasto de Correntina, no extremo Oeste da Bahia, nos impressionam pela
abundância. Ao longo de muitos quilômetros, o que vemos são famílias com uma
vida confortável. Arroz, feijão, uma salada bem variada, abóbora, mandioca,
quiabo, frango: isso é um almoço básico em tudo quanto é mesa. E nada com
veneno.
Camponeses estão no topo da escala de insegurança
alimentar e nutricional no Brasil. O diagnóstico divulgado em 2022 pela Rede
Penssan mostrou como agricultores nordestinos sem acesso à água sofrem
gravemente de fome. O que vemos em Correntina é o retrato oposto.
Mas tem um fator que, quando chega, coloca a perder
essa equação: o agronegócio. Para tristeza dos camponeses de Correntina, eles
estão dentro da “última fronteira agrícola”. O Matopiba, formado por 337
municípios de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, tem sido marcado por uma
expansão feita à base de violência e grilagem, com muito apoio estatal.
Nos últimos anos, temos investigado sobre o
atrelamento entre terras e mercado financeiro. Fazendas têm se valorizado de
maneira brutal, e já há propriedades vendidas acima de R$ 1 bilhão.
No conjunto dessa obra, algumas cidades do Oeste da
Bahia nos chamaram a atenção: estão no topo da lista de desmatamento em 2023.
Também estão entre os maiores PIBs do agronegócio.
• Campeões
em desmatamento na Bahia
No Cerrado, 24 municípios concentram metade do
desmatamento este ano. Destes, 10 estão na Bahia.
São Desidério, Jaborandi, Barreiras, Cocos,
Correntina, Santa Rita de Cássia, Riachão das Neves, Formosa do Rio Preto, Luís
Eduardo Magalhães, Baianópolis.
Por lá, uma das maiores negociadoras de terras do
Brasil, a SLC Agrícola, anunciou este ano a compra de uma fazenda por R$ 470
milhões. As terras de propriedade da companhia foram recentemente avaliadas em
R$ 10,9 bilhões – quase três vezes mais do que o patrimônio em 2020. Diante
disso, os moradores das comunidades de Fundo e Fecho de Pasto são um obstáculo
à acumulação de dinheiro.
• Há
trezentos anos
Foi com a chegada dos primeiros grileiros que os
geraizeiros deixaram de ser. Já não era possível usar livremente as Gerais.
Então, a cerca surgiu e, com ela, os fundos e os fechos de pasto. “Foi fazer a
cerca na perspectiva de que, a partir dali, pudesse estabelecer um limite”,
retoma Eldo. “Para dizer, ‘olha, aqui não desce, porque descendo aqui o
conflito está estabelecido’. Para tentar barrar o conflito.”
A estimativa de especialistas é de que essas áreas
estejam ocupadas por geraizeiros há pelo menos trezentos anos. Esse período
guarda todo um aprendizado sobre o uso das terras úmidas e secas, altas e
baixas, sobre os lugares preferidos do gado.
No caso de Correntina, a relação com os bois é algo
marcante. O rebanho costuma ser criado “na solta”, ou seja, sem cercas. Os
criadores levam os animais para o Cerrado durante algumas semanas, enquanto o
pasto se recupera. Depois, é o Cerrado que se recupera, até que chegue a hora
de levar os animais de volta para a solta. “Quando vai para os Gerais, o gado
vai achar no mínimo 50, 60, tipos de comida diferente. Não é criado só no
capim. Isso traz uma diversidade importante”, continua Eldo. Mas as fazendas
têm inviabilizado esse processo.
Na vida dos geraizeiros de Correntina, a violência
vem em ondas. A primeira foi entre os anos 1970 e 80, com um projeto do governo
federal de criação de fazendas. A aprovação do Código Florestal, em 2012, em
paralelo a uma mudança na lei estadual da Bahia sobre reserva legal, foram um
novo momento de grilagem. A tsunami mais recente veio com o governo Jair Bolsonaro.
O alto valor das commodities agrícolas – soja e
milho –, o aval para o cometimento de crimes e a especulação com as terras
criaram um ambiente propício para a expulsão de camponeses. Como mostramos no
Joio, a criação ou a ampliação de certos mecanismos aprofundou o atrelamento
entre agronegócio e mercado financeiro, garantindo liquidez, ou seja,
facilidade para movimentar dinheiro ao investir em imóveis rurais. Em várias
cidades as terras mais do que dobraram de valor ao longo dos quatro anos de Bolsonaro.
Para o mercado financeiro, terras não são um meio
de vida: são um ativo. Como revelamos, um dos maiores bancos do país, o Itaú,
considera que grilagem e desmatamento não são razão para frear a concessão de
enormes empréstimos. E, nessa equação, o Matopiba é um eldorado: uma mina de
ouro por detrás do arco-íris.
Foi em 2015 que o governo federal reconheceu
oficialmente o acrônimo Matopiba. A honra coube a Dilma Rousseff, por meio de
um decreto que criou geográfica e imageticamente um território de 73 milhões de
hectares – um país do tamanho do Chile. A então presidente era uma entusiasta
do projeto, encampado por sua amiga e ministra da Agricultura, Kátia Abreu,
outrora conhecida como “Rainha da Motosserra” e líder da bancada ruralista.
Foi assim que, com o tempo, os geraizeiros de
Correntina acabaram involuntariamente aglutinados com outras comunidades
tradicionais que passaram a ser obstáculos. Destinos unidos pela caneta e pela
Faria Lima.
O surgimento dos fundos de investimento do
agronegócio (Fiagro), em 2021, e o boom de financiamento privado parece estar
escrevendo uma nova página. No Maranhão, na Bahia, no Tocantins, no Piauí: não
param de surgir denúncias de povos tradicionais sendo varridos do mapa.
Mas, para o mercado financeiro, o Matopiba é
promessa de lucro dos grandes. Em 2022, uma empresa chamada 051 Capital lançou
um Fiagro com foco exclusivo na valorização de terras na região. É uma aposta,
como se terra fosse roleta. O FZDA 11 deseja comprar propriedades e arrendá-las
para agricultores, ou seja, o arrendamento é apenas um extra enquanto se
aguarda pelo processo de valorização das fazendas.
Flávio Aragão, gestor do fundo, lembra que as
propriedades rurais têm se valorizado em 20% acima da inflação. Todo santo ano.
Porém, “atualmente a dificuldade de abrir novas terras é maior”, disse, em uma
entrevista. Em outras palavras, em algum momento a terra será um ativo mais
raro e, portanto, ainda mais valioso.
É aí que o Matopiba vira a joia da coroa: enquanto
no Mato Grosso o processo de acumulação já estaria mais perto do teto, por
essas bandas estamos apenas no começo.
“No Matopiba vale um terço, um quarto das terras de Mato Grosso”,
continua Aragão. O que explica a diferença é a infraestrutura ainda incipiente
na região – algo que o governo federal não terá problema em resolver.
“O Mato Grosso não nasceu assim. Ele se
transformou. Porque os grandes grupos foram migrando para lá, foram investindo
na região, e a região se desenvolveu.” Isso se dará no Matopiba.
• Murro
em ponta de faca
Correntina é a cidade recordista da Bahia em
conflitos agrários registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Conflitos
que se dão por terra, por água, por barragem, por agronegócio. Nos últimos
anos, os geraizeiros tentaram várias vezes, em vão, pedir socorro ao Estado
diante das tentativas de avanço dos grileiros.
# Conflitos no campo 2022: 15 casos de conflitos
por terra 3 casos de conflitos por água 6 casos de ameaça de morte
# Conflitos no campo 2021: 11 casos de conflitos
por terra 3 casos de conflitos por água
“A via institucional, ela é desgastante demais”,
analisa Samuel Brito das Chagas, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na
região, que acompanhou como os fechos foram sendo tomados pelo avanço da
grilagem. “E ela depende de agentes públicos sensíveis. Então você vai ter um
promotor sensível, você vai ter um juiz sensível, você vai ter um desembargador
sensível. É um risco muito grande.”
Em quase todos os casos, os geraizeiros sentem que
precisam agir por conta própria para não perder as terras. “Eu acho que existe
aqui um elemento anárquico muito forte em torno da autonomia desse povo, sabe?
Se você for pegar as ideias da teoria anarquista, tem muito disso. É um povo que sabe fazer de tudo e são muito
independentes, são muito autônomos.”
Isolados durante tantos anos, os geraizeiros
aprenderam tudo o que era necessário para viver. E viver bem. É comum ver casas
de farinha de mandioca, teares e algodão, rapadura, cachaça, polvilho. Um
camponês nos mostra, com orgulho, o açúcar de produção própria, que ele garante
ser único desse lugar.
As histórias sobre sucuri embalam a roda de
descascagem de mandioca na comunidade de Pedra Branca. Piadas internas que não
conseguimos entender, mas que divertem, causam tanta gargalhada e animam tanto,
que talvez possamos desapegar de entender. Os geraizeiros gostam de história.
Comida, viagem, gado, roça, festa (muita festa): tudo é história. Mas nada
chega aos pés da sucuri, o topo das atenções, o assunto mais falado e que rende
os maiores exageros. Na véspera nos mostraram o riacho onde supostamente um
caminhoneiro havia sido engolido.
A roda se ajeita ordeira, sem precisar combinar
muito as regras porque, depois de tantos anos, cada um já sabe bem aquilo que
faz bem. Hoje os vizinhos se ajudam aqui nessa casa. Amanhã será em outra. E,
assim, por algumas semanas, até que acabe a temporada de fazer farinha. Alguns
fazem uma primeira descascagem, outros dão sequência, até chegar a quem corte
no tamanho certo de lavar para depois moer.
Seu Valdir José Sodré começa a listar de cabeça os
tipos de mandioca, numa tarefa que leva vários minutos: menininha, coco, rio
verde, pão da china, vassourinha, serrana, galha baixa, cacau, jacobina, mata
rato. O plantio varia de acordo com o ano, com o rendimento, com a finalidade,
com a época, com o gosto de cada um. A roda acaba sendo também um momento de
“lembramento”. Lembramento de quem se foi, das terras que foram tomadas, de
auges e declínios normais da vida.
Várias comunidades falam com orgulho sobre os
sistemas de canais de irrigação – e também com certo pesar, porque muitos
canais deixaram de funcionar devido à redução da vazão dos rios. “Os próprios
moradores fizeram os canais sem engenharia nenhuma. Na verdade, com muita
engenharia, mas sem nenhuma engenharia especializada ou nenhuma formação desse
tipo”, continua Eldo.
Em qualquer lado que se vá, as pessoas de
Correntina evocam uma relação muito especial com a água, de entender como esse
bem é precioso e, ao mesmo tempo, pode se tornar terrivelmente escasso dado o
uso massivo pelas fazendas. Em 2017, metade da cidade protestou contra o
rebaixamento do rio, em uma mobilização que ficou conhecida como “revolta da
água”.
Nas estimativas do IBGE, a agricultura e a pecuária
precisam de quase 700 litros de água para gerar R$ 1 – é, de longe, o setor da
economia com maior demanda.
“Mudou muito”, acrescenta seu Valdir. “As nascentes
que eu conhecia, mais de 40 nascentes, secaram tudo. A chuva agora tá de pouco.
E se a própria Justiça não tomar conta disso, não é só a gente que morre de
sede, não. A Justiça também morre de sede porque sem água ninguém vive. Aqui,
sem água, vira um sertão do mais esquisito.”
A prosa chega a assuntos mais espinhosos: a
pistolagem recente e as pessoas que, por pouco, escaparam da morte. “Estão
tomando as Gerais tudo. Se levar o gado pra lá, acontece que nem aconteceu no
fecho do Cupim, que o menino tomou um tiro”, continua seu Valdir. Foi em abril de 2023 que pistoleiros
dispararam contra geraizeiros que tentavam tomar conta da terra. “Lá naquele fecho [do Cupim]
já tinha mais de cem anos. Se for fazer as contas, deve fazer uns 200 anos. Tem
gente que morreu com quase cem anos e já conheceu a família trabalhando lá. Foi
de descendente a descendente.”
• Não
pode deixar tomar
Nos últimos anos, os geraizeiros não aprenderam
sobre mandioca, nem sobre gado. Eles agora são letrados em injustiça. Já sabem
bem direitinho que não podem deixar o pistoleiro se instalar na terra. Porque,
se isso acontece, o grileiro vem, e tirá-lo é uma tarefa quase impossível
diante de uma Justiça lenta, ou corrupta, ou conivente.
“Então a gente não sabe exatamente quem é [o
suposto] dono e às vezes o dono nunca aparece. Manda o pistoleiro para tentar
amedrontar os posseiros. E aí, aos poucos, quando consegue consolidar, o dono
aparece”, conta Eldo. Muitas vezes, as Gerais usadas para a solta ficam
distantes do lugar de moradia: 50, 60, 70 quilômetros. Então, estabelecer
rotinas de revezamento para fiscalizar a própria terra não é trivial.
No caso de Praia, até aqui tem funcionado, mas o
custo financeiro e psicológico é alto. “Nas áreas que foram estabelecidas como
fecho, no concreto nós não perdemos nenhum fecho. Só que, na prática, você tem
um avanço muito grande de criminalização, de tentativa de entrar, de
pistolagem, de fraude de documento”, resume Eldo. Na visão dele, o que sobrou
das Gerais é coisa pouca, quase nada, mas, ainda assim, é o último quinhão de
terra, então, não há como seguir dando passos atrás – uma versão que ouvimos de
moradores de outras áreas.
“Eu não saio
daqui. Só saio daqui quando Deus me chamar. Eu quero ficar agasalhada nessa
tira das Gerais. Eu mais minha filha”, conta dona Galdina, o corpo franzino, um
lenço na cabeça, as mãos cruzadas, sentada numa sombra em um fim de tarde de
domingo. O quintal está forrado de crianças. Nos fundos da casa, o polvilho
feito pela família seca debaixo de lona, e no dia seguinte será a vez de fazer
farinha no moinho próprio.
Enquanto a turma degusta a cachaça produzida ali
mesmo, dona Galdina, 82 anos – pertinho de completar 83 – relembra como chegou
até essa comunidade, relativamente próxima de Praia. “Meu pai morreu, deixou eu
menina pequena. Minha mãe morreu, deixou eu moça nova.” E ela se acostumou a
correr atrás da vida.
Quando era jovem, veio a conversa de que agora era
preciso comprar as Gerais. “Eu saí, fui caçar o dinheiro, e arranjei. Sempre
tomando dinheiro para pagar imposto de 36 hectares. Graças a Deus, meu filho,
até hoje eu não me arrependo de ter comprado essas Gerais. Ainda estou
sossegada. Agora, se este povo anda querendo tomar, eu vou morrendo aos poucos.
Eu ando morrendo um tiquinho.”
Logo a família toda vai se achegando, cada um com
um pedaço da história. “Vamos dizer que três anos atrás era sossegado”, conta o
neto Donizete de Souza Diamantino, mais conhecido como Chico das Risadas. “E
agora, de seis meses pra cá, rapaz, tamo passando apertado. É carro estranho na
porta da gente direto. É leão em forma de cordeiro. É drone, é avião.”
Nos últimos meses, segundo os moradores, começou a
circular a história de que 15 mil hectares da região pertencem a uma empresa e,
portanto, todos devem ir embora com uma mão na frente e outra atrás.
“E partem pra cima da gente dizendo que é tudo
deles. O cara que vem lá de São Paulo. Vai saber que aqui era deles? Falam que
nós construímos em cima do direito deles. Eles nunca vieram aqui na vida. Nós
nascemos e criamos aqui. A vó da minha vó tem quase duzentos anos que morreu.
Nasceu e criou aqui.”
Chico orientou a mãe e a avó a não darem conversa
pra desconhecidos e, acima de tudo, a não assinarem nenhum papel. “Será que vai
conseguir tirar esse tanto de família que tem aqui? Eu acredito que não vai ter
esse poder de fazer isso. Esse dinheiro aí, eles podem ter dinheiro, a gente tem
garra e força e coragem. Não aceita entrar, não. E os cabra é guerreiro. Os
cabra é guerreiro. Rapaz, que é guerreiro.”
É quando entendemos pela enésima vez em poucos anos
que esse lugar, a exemplo de vários outros ameaçados pelo agro, é único, que essas
pessoas são únicas, que esse momento é único. E somos gratos. Pela enésima vez,
rodando por comunidades afetadas pelo agronegócio, somos gratos a isso. Mas
também nos desesperançamos de saber que falaremos e muitas pessoas não
entenderão que esse lugar é único, que essas pessoas são únicas, que esse
momento é único.
Porque a novela da Globo dirá que o agro é tudo. E
nós bem sabemos que é. Uma máquina de atropelar fazeres e saberes e quereres.
Que esses saberes não estão em livro algum. Não há Google que dê conta. Não há
podcast que registre essa cena. Reportagem jornalística que alcance contar. Uma
vez removidas essas pessoas, atropelados esses saberes e fazeres, devastados os
quereres, acabou-se. Não há volta.
Fonte: Por Tatiana Merlino, para O Joio e O Trigo
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