Moisés Mendes: A realidade argentina que os Bolsonaros nunca entenderão
O primeiro templo da Igreja Universal na Argentina
foi inaugurado em 1989 pelo bispo Edir
Macedo. Fica na Avenida Rivadávia, em Flores, um bairro de classe média da zona
oeste de Buenos Aires.
Flores é o bairro onde o papa Francisco nasceu e
viveu a infância e a adolescência. Em 2002, no pico da crise econômica causada
pelo fim da dolarização, eu cheguei a essa igreja por acaso.
Estava numa igreja católica da Recoleta, o bairro
dos ricos, para tentar falar com religiosos e fiéis sobre o caos do país e como
isso repercutia na vida deles, e encontrei um casal de jovens. Iriam se casar.
Perguntei como poderiam pensar em casamento naquela
situação, com os dólares bloqueados nos bancos pelo que chamavam de corralito.
Essa foi a resposta do moço:
– Vá ao bairro Flores.
Na Recoleta não havia crise. E era verdade. Eu
estava no lugar errado. O que o rapaz rico me disse equivale a alguém dos
Jardins, em São Paulo, recomendar: vá à Mooca. Ou um noivo do Moinhos de Vento,
em Porto Alegre, recomendar: vá ao Passo da Areia.
Saí dali e pedi a um motorista de táxi que me
levasse a uma igreja em Flores. Fui parar nessa igreja evangélica da foto. O
taxista era evangélico. Uma igreja grande, mas vazia.
Era minha segunda tentativa, quando se sabe que o
dia de um repórter, nessas situações, não pode ser perdido. Ali, alguém me
disse: na rua tal, aqui perto, há uma igreja com culto agora.
E havia. Uma igreja na frente de uma pracinha, bem
menor, também da Universal, lotada. Foi quando assisti pela primeira vez a um
culto neopentecostal. Durante quase toda a pregação um pastor pegava uma espada
de papelão e dizia em espanhol:
– Quanto o Senhor merece?
Começava com a espada de um valor alto, se me
lembro algo como 50 pesos, e ia reduzindo. Ele perguntava se Jesus merecia 20
pesos e alguns erguiam a mão entre os fiéis.
As pessoas pegavam as espadas com o valor impresso,
que eram levadas por um auxiliar à plateia, e as carregavam até um púlpito
largo. E ali parece que deixavam o nome para uma posterior doação. Aquilo durou
mais de meia hora.
O pastor mostrava a espada, dizia o valor, fazia
uma pregação e perguntava: o Senhor merece 10 pesos?
Quanto menor ficava o valor, mais gente pegava as
espadas. No final do culto, fiquei por ali e vi um moço com um microfone
entrevistando os fiéis para a rádio da igreja. Fui um dos entrevistados. Lembro
bem do que eu disse:
– Que Deus salve a Argentina.
Sim, essa foi minha frase. Eu havia sido contagiado
pela pregação. Ele me ouviu e foi pegando frases daquela gente com roupas
simples. Gente pobre. Eram pessoas tristes.
Me lembro de tudo isso porque gravei muito a cena
das espadas. Eu nada sabia da Universal. E queria, respeitando o drama daquela
gente, saber como a fé lidava com a crise.
Conversei com algumas pessoas e o moço da rádio
informou ao pastor que eu queria falar com ele. Mandou que eu esperasse.
Esperei, mas o homem não veio e eu fui embora.
Numa época em que Jorge Mario Bergoglio era um
cardeal argentino, fui corrido da igreja católica porque lá na Recoleta não
havia crise, e fui parar na igreja de Edir Macedo cheia de pobres.
Penso naquele inverno de 2002 e o que mais enxergo
ainda hoje é a cena das espadas, a busca de solução para a falta de dinheiro.
Os evangélicos não ofereciam a prosperidade, mas
uma bóia de salvação, desde que Jesus recebesse oferendas. O que os argentinos
queriam, como desejo pessoal, era uma saída para aquela situação.
Duas décadas depois, a Universal tem 18 templos em
Buenos Aires e quase 300 em toda a Argentina. São mais de 5 mil no Brasil.
Mais de 70% dos argentinos são católicos e apenas
15% evangélicos. No Brasil, 50% são católicos e os evangélicos já representam
um terço da população.
Foi a incapacidade de compreensão da realidade
argentina que levou Eduardo Bolsonaro e uma comitiva da extrema direita a
Buenos Aires na eleição, certos de que iriam ajudar Javier Milei a vencer no
primeiro turno.
Ajudaram a disseminar mais medo, com presença
ostensiva em aparições públicas e entrevistas. Eduardo chegou a ser retirado do
ar, na TV C5N, quando começou a defender o uso de armas por cidadãos comuns.
O filho de Bolsonaro tentou levar para o contexto
argentino a conversa armamentista e moralista do bolsonarismo achando que lá
também há uma forte base evangélica.
Não funciona. Os argentinos, evangélicos ou não,
pouco querem saber de armas e de moralismos. Não querem nem pautas da área dos
costumes.
Javier Milei promete, não com espadas, mas com
motosserras, tirar os argentinos da miséria e da desconfiança com a política.
Porque a pauta antissistema é econômica, Eduardo Bolsonaro.
A urgência dos argentinos não se encaixa nas
conversas do bolsonarismo derrotado, mesmo que também lá a segurança seja (e
nunca havia sido como agora) uma das maiores preocupações.
Eduardo Bolsonaro, que ajudou a disseminar o medo
na véspera da eleição, não sabe que a vitória de Sergio Massa pode ser um sinal
da ressurreição do kirchnerismo.
E não deve saber que em 2003, um ano depois da
crise que me levou àquele templo da Igreja universal, Nestor Kirchner seria
eleito presidente. E que ali surgia o fenômeno político que agora havia sido
dado como morto pela direita.
O kirchnerismo, levado adiante depois por Cristina
Kirchner, após a morte do marido, e desmoralizado pelo governo frouxo de
Alberto Fernández, está vivo.
Talvez mais vivo do que o peronismo, porque Sergio
Massa é muito mais um filho do kirchnerismo do que um peronista. O peronismo
não é a sua origem.
Massa é um kirchnerista de centro. Parece simples,
mas é apenas levemente complicado. Se fosse mais esforçado do que arrogante,
Eduardo Bolsonaro entenderia.
Argentina
rumo ao segundo turno. Por Elaine Tavares
Enquanto a mídia argentina falava de uma vitória do
candidato de ultradireita Javier Milei, por quatro ou até seis pontos de
vantagem sobre Sérgio Massa, e alguns mais afoitos falavam em vitória já no
primeiro turno, o que se viu ao contarem os votos foi o contrário. Sérgio
Massa, candidato do peronismo e da situação – chegou na frente e por sete
pontos percentuais, uma subida inesperada.
É certo que o discurso violento de Milei, lançando
torpedos até contra o Papa, chegando a negar a terrível herança deixada pela
ditadura com seus 30 mil mortos, foi decisivo para que mais de três milhões de
pessoas que não haviam participado das primárias fossem votar, e isso acabou
dando fôlego ao peronista. Declarações como o apoio à liberação das armas de
fogo – a exemplo do Brasil – igualmente ajudaram a mobilizar uma boa parcela
dos argentinos que abominam essa ideia. Assim, Milei teve de amargar o segundo
lugar e agora vai precisa articular alianças com os demais derrotados que
caminham pela direita.
A campanha presidencial certamente será intensa e
mobilizará os argentinos até o dia 19 de novembro, quando acontece o segundo
turno. Massa é candidato de um governo que não cumpriu o que prometeu quando
sucedeu Maurício Macri. A inflação está altíssima, registrando em setembro
138%, a economia está paralisada, o desemprego é alto, o país voltou ao FMI,
enfim, o cenário é ruim. Mas, ao que parece, com Milei, a vida pode piorar
ainda mais. Sua plataforma ultraliberal prevê privatizações em todos os campos,
o que significa o fim ou a redução de serviços públicos que são fundamentais
para a população.
É fato que o histrionismo do candidato juntou muita
gente, afinal, 30% de votos não podem subestimados, e levanta um alerta: as
tendências ultraconservadoras – que emergiram desde Donald Trump, passando por
Jair Bolsonaro e Nayb Bukele – estão vivas e arrastam multidões.
Sergio Massa não pode ser considerado um candidato
de esquerda. Está mais para liberal. Esteve às turras com o kirchnerismo e
chegou a se lançar candidato à presidente em 2017 pelo partido de oposição.
Voltou para as fileiras do peronismo em 2019 e atualmente estava ministro da
Economia do governo de Fernández. Ainda assim foi considerado o candidato
possível que iria dar fôlego ao peronismo. Surpreendeu neste primeiro turno ao
chegar em primeiro lugar.
Agora, a direita argentina já se organiza em torno
de Milei. Patrícia Bullrich, que abocanhou 24% dos votos declarou voto no
ultraliberal, assim como as forças ligadas a Maurício Macri. A Massa restará
buscar os 6% de votos de Juan Schiaretti e os 2,5% da socialista Myriam
Bregman. Também terá de batalhar o voto dos que anunciam voto nulo e torcer
para que mais gente acorra às urnas em novembro. Será um segundo turno bastante
apertado.
A mídia argentina tem sido majoritariamente contra
Massa. Falam de sua vitória, mas insistem em destacar seus pontos fracos;
assim, ajudam a candidatura de Milei. E não se poderia esperar outra coisa. Até
o dia 19 de novembro, a fábrica de ideologia vai funcionar a todo vapor e Milei
contará com uma juventude ativa e apaixonada que grita por mudança, sem se
preocupar com o terrível passado da ditadura. Borram a história e acenam com o
sonho do mundo liberal, no qual o mercado conduzirá a vida.
Se por um lado isso encanta uma parcela grande da
população, há outros milhares de argentinos que ainda têm bem vivo na memória o
que é estar sob as botas dos milicos e o que foi o governo de Macri, que deixou
a Argentina bem mais quebrada do que quando chegou ao governo. Por isso, as
propostas rocambolescas de Milei sobre privatizações e sobre não negociar com
parceiros importantes do mundo internacional deixam muita gente de cabelo em
pé. E aí funciona o discurso que também funcionou aqui no Brasil: para evitar
um mal maior, um mal menor, que seria Massa.
Há que ver agora como vão se comportar os partidos
menores, o povo da esquerda, os que não votaram no primeiro turno. Há muito
voto a disputar. Serão dias quentes. O certo mesmo é que a população, em sua
grande parte, quer mudanças, porque, afinal, Fernández e Cristina não cumpriram
com suas promessas de construir uma Argentina melhor. E se um governo não
cumpre o que prometeu, dança. O tal “mal maior”, do histriônico Milei, pode
alavancar Massa, mas isso vai depender muito de como a campanha vai caminhar a
partir de agora e de quais novas promessas serão feitas.
Fonte: Blog do Moisés Mendes/Correio da Cidadania
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