terça-feira, 31 de outubro de 2023

Kakay: O Rio sitiado e a deriva

A que ponto chegamos naquela cidade que já foi a mais bonita do mundo pelos seus encantos naturais. Não há beleza que suporte tanta violência, medo, opressão, desigualdade e omissão por parte do Estado. É muito significativo que o Rio de Janeiro seja o berço e o estuário dos Bolsonaros.

ComO Rio 65% do território ocupado pelas milícias, o terreno para o crescimento e fortalecimento do fascismo é propício e acolhedor. Sem contar que o tráfico comanda outros 15%. Ou seja, para os brasileiros honestos e trabalhadores, restaram, talvez, as praias e alguns monumentos turísticos.

O Rio está dominado e é necessário reagir.

Como em tudo na vida, as pessoas e, por consequência, as cidades, os estados e os países têm, às vezes, oportunidades e devem fazer suas opções.

Em 2008, o então deputado estadual Marcelo Freixo presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa. Com desassombro, mas com responsabilidade e conhecimento de causa. O relatório final da investigação pediu o indiciamento de 225 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis. E, tão importante quanto, apresentou 58 propostas concretas para o combate real da máfia das milícias, ressaltando a necessidade de cortar as fontes de financiamento das quadrilhas. Era a chance de fazer um enfrentamento que colocasse o Rio de Janeiro nos trilhos da civilização, abafando a barbárie.

Mas a escolha foi outra. O então deputado teve que deixar a cidade por um tempo, por questões de segurança pessoal e de sua família, e, ainda hoje, vive sob ameaça e escolta policial. Apesar das centenas de prisões de milicianos, após a CPI, os grupos criminosos se reorganizaram e venceram a guerra contra o estado e contra a Democracia.

A política se entregou, docemente, nos braços da milícia. Nos últimos anos, seis Chefes do Executivo do Rio enfrentaram sérios problemas na Justiça; sendo que cinco foram presos e o último foi afastado do cargo. É relevante e impressionante constatar que todos os governadores eleitos que estão vivos foram presos ou afastados. Apenas Nilo Batista e Benedita Silva, que ocuparam o cargo de governador, mas foram eleitos vice-governadores, não respondem a processo judicial.

E, nesse período, a família Bolsonaro fez do estado sua peça de resistência para alçar voos nacionais. Não é possível que o Brasil assista, de braços cruzados, a ocupação bandida de um ente federativo tão importante. Agora, estamos passando por um confronto a céu aberto com ataques criminosos e terroristas dos milicianos. Em apenas um dia, foram incendiados 35 ônibus na Zona Oeste do Rio. É intrigante perceber, nos vídeos que circulam na internet, que os veículos são incendiados ao lado das vans – preservadas, pois são exploradas pela milícia. A insegurança tomou conta da população.

No meio desse caos, vem à tona que o governo do estado optou, desde a gestão do Witzel, por não ter Secretaria de Segurança Pública. Criaram-se, então, duas secretarias: a da Polícia Civil e a da Polícia Militar. Para os especialistas, não há nenhum planejamento sério de políticas públicas na área, o que faz com que, em pastas tão estratégicas, muitas decisões são tomadas sem critérios técnicos.

E como elas não interagem entre si, até o Supremo Tribunal Federal teve que intervir e estabelecer um plano de controle de letalidade policial, pois as chacinas corriam soltas na administração do atual governador, Cláudio Castro. Um filme de terror competindo com o massacre na Faixa de Gaza.

Como quase todo mineiro, sou apaixonado pelo Rio. Quem cresce protegido pelas montanhas de Minas sente falta da imensidão do mar. Quando recebi o título de cidadão carioca, pude falar da tribuna, na Câmara dos Vereadores, na qual há uma placa homenageando Marielle Franco, e disse que me sentia como um rio que desce as terras montanhosas, entre curvas, para desaguar no mar daquela Cidade Maravilhosa.

Falei que precisávamos resgatar o Rio de Janeiro do jugo miliciano e bolsonarista. Ainda é tempo, mas tem que ser agora, antes que seja tarde.

Lembrando-nos do poeta mineiro Leão de Formosa: “Aperfeiçoa-te na arte de escutar, só quem ouviu o rio pode ouvir o mar”.

 

       “Carta branca para matar empurra policiais para o crime”, diz Bruno Paes Manso

 

O domínio de territórios pelas milícias no Rio de Janeiro é um fenômeno singular, parte da complexa teia criminal que se formou no estado ao longo de décadas. No entanto, o descontrole das polícias por parte dos governos, exposta na alta letalidade policial, pode facilitar a expansão do problema. A avaliação é do sociólogo Bruno Paes Manso, autor do livro A república das milícias.

“No resto do Brasil, começa a acontecer uma maior participação das polícias na cena criminal dos estados, o que pode ser visto pela quantidade de homicídios praticados pelas forças de segurança: mais de 6 mil homicídios por ano, durante cinco anos. É um sintoma do descontrole das polícias por parte dos governos”, avalia.

O pesquisador afirma que as milícias do Rio são um desdobramento dos grupos de extermínio, criados durante a ditadura militar sob o pretexto de “eliminar criminosos”.

“O passo seguinte dessa carta branca para matar é empurrar esses policiais descontrolados para o crime. Eles passam a ganhar dinheiro com o poder que têm na cena criminal e a gerir negócios, tanto o tráfico de drogas como a extorsão, venda de segurança privada. Isso se observa em vários estados do Brasil”, afirma.

Em nova obra, Fé e Fuzil, Manso se debruçou sobre os encontros entre os discursos da fé e da violência. Além de analisar fenômenos como os “traficrentes” do Rio de Janeiro, ele se aprofundou em questões que aproximam mundos gestados nas periferias urbanas do Brasil.

“Com o bolsonarismo, isso ganhou uma outra dimensão”, diz. “Tinha uma nova cena, da religiosidade e do discurso pentecostal sendo usados para produção de poder, obediência e organização de apoio eleitoral e político, em defesa do discurso de uma guerra do bem contra o mal.”

Em entrevista à DW Brasil, o pesquisador reflete sobre a demonstração de poder das milícias no Rio de Janeiro e traz detalhes do trabalho de pesquisa por trás do livro recém-lançado.

LEIA A ENTREVISTA:

•        Qual é o nível de ameaça representado pelas milícias do Rio à segurança pública no Brasil?

Bruno Paes Manso: A dimensão do Rio de Janeiro é muito peculiar, com o domínio de território pelo tráfico de drogas, depois as milícias, o armamento pesado. A dimensão do desafio do Rio é histórica e profunda. Desde 2014, há uma fragilização da institucionalidade no Rio, uma crise política, com a prisão de Sérgio Cabral e as eleições municipais fortalecendo esses grupos milicianos, que ganhavam dinheiro nas prefeituras e passaram a eleger parlamentares. Eles foram ficando cada vez mais fortes, ao mesmo tempo que os governos eram muito frágeis. Após a intervenção federal, houve a eleição do Witzel, impichado dois anos depois. E assumiu no lugar dele um governador muito frágil, um outsider da política. Ele tinha sido eleito vereador com poucos votos. Essa fragilidade política era fundamental para o fortalecimento dos grupos e políticos locais nos territórios. Não à toa, eles apoiam a reeleição do Cláudio Castro, porque continua um governador sem capacidade de lidar com o problema.

No resto do Brasil, começa a acontecer uma maior participação das polícias na cena criminal dos estados, o que pode ser visto pela quantidade de homicídios praticados pelas forças de segurança: mais de 6 mil homicídios por ano, durante cinco anos. É um sintoma do descontrole das polícias por parte dos governos. O passo seguinte dessa carta branca para matar é empurrar esses policiais descontrolados para o crime. Eles passam a ganhar dinheiro com o poder que têm na cena criminal e a gerir negócios, tanto o tráfico de drogas como a extorsão, venda de segurança privada. Isso se observa em vários estados do Brasil. E os grupos de extermínio no Rio foram a semente das milícias. Os governos têm maior dificuldade de exercer controle sobre as polícias, enquanto as polícias têm maior capacidade de agir e ganhar dinheiro na cena criminal.

•        Como se dá o encontro entre crime e religião no Rio?

Essa confusão dos traficantes religiosos acontece no Rio de Janeiro, que tem um contexto muito específico no Brasil. Eu cito no República das Milícias uma metáfora muito interessante que vi alguns cariocas usarem, sobre o Rio ser uma espécie de Game of Thrones. Não tem mais um Estado moderno, que garante leis iguais para todos no seu território. A região metropolitana do Rio é dividida em vários reinados, com os donos de morro. São reis que exercem controle armado nesses territórios, impõem suas leis para ganhar dinheiro no mercado da droga, de extorsão, venda de gás e um monte de coisas. E disputam entre eles o controle desses territórios.

Todo mundo que exerce tiranias armadas tem o mesmo objetivo: ficar rico, tiranizar as pessoas desses territórios e ganhar dinheiro. Se alguém é contra seus interesses, eles matam, muitas vezes. Então, é tudo a mesma “tranqueira”: são vários grupos tirânicos impondo o silêncio ou a obediência para ficarem ricos. Aí você vê um traficante querendo justificar a legitimidade do seu poder pelo carisma, pelo discurso religioso: “Eu sou melhor do que eles”; “eu sonhei com Deus, e Deus falou que eu represento o bem”; “no meu território, ninguém vende crack, só maconha hidropônica”; “eu uso o dinheiro para construir pontes”. Começaram a surgir novos discursos e signos para justificar a autoridade e ampliar a legitimidade desses grupos, num processo quase medieval. Isso é muito próprio da crise institucional vigente no Rio, que é muito específica.

•        Como você teve contato com essa realidade?

Quando eu pesquisei as milícias no Rio de Janeiro, vi que o caso dos “traficrentes” estava ganhando espaço. Isso me acendeu um sinal de alerta: pastores que comandavam quadrilhas no Rio de Janeiro. No caso específico, eu escrevo mais sobre Vigário Geral e Parada de Lucas, região comandada pelo Peixão. Os caras que eu entrevistava usavam a fé para transformações pessoais, privadas. Eles se transformavam, mudavam sua vida, suas relações.

No caso do Peixão, ele usava a religião para legitimar o poder dele e produzir obediência e autoridade nos bairros que comandava. Ele dizia que sonhou com Deus como se fosse um ungido do Antigo Testamento, que foi escolhido e lutava em nome do bem e tudo mais. Esse uso público da religiosidade, no Rio de Janeiro, foi muito surpreendente para mim. Isso não era usado só pelo Peixão, do Terceiro Comando puro, mas nas milícias também.

Com o bolsonarismo, isso ganhou uma outra dimensão. Discursos muito truculentos, em defesa de ações violentas, começaram a se misturar com o discurso evangélico do cidadão de bem. Tinha uma nova cena, da religiosidade e do discurso pentecostal sendo usados para produção de poder, obediência e organização de apoio eleitoral e político, em defesa do discurso de uma guerra do bem contra o mal. Eu comecei a pesquisar e ver que isso estava muito presente no discurso da batalha espiritual, que se fortalece nos anos 1980, o qual vê o mundo na iminência do fim e enxerga o trabalho evangélico como o desafio de converter o máximo de pessoas para a segunda vinda de Jesus na Terra, que estaria próxima de acontecer.

•        Por que os evangélicos são tão eficazes em resgatar pessoas da criminalidade?

Eu entrevistava matadores quando comecei a pesquisar. É muito delicado perguntar para o criminoso sobre os próprios crimes. Você sempre precisa ter uma relação de muita confiança, e nem sempre você consegue. Eu fiquei muito impactado com os matadores que faziam chacinas. Na época, São Paulo tinha cem chacinas por ano. Os autores de chacinas falavam de uma forma supernatural dos homicídios que praticavam, às vezes 30, 40. Eles diziam que todos mereciam morrer, pois nunca mataram nenhum inocente. Essa convicção de que alguns mereciam morrer produzia ciclos de vingança. Eu achava que isso não ia ter fim. Mas os evangélicos iam no âmago da história.

A partir do momento que você ingressa nessa cena do crime, começa a romper seus laços sociais. Você passa a viver numa solidão tremenda, porque abandona os seus familiares, amigos, e passa a ter só seus aliados, com quem terá conflitos e sentirá medo, paranoia, pois eles podem lhe matar. É uma solidão absurda. E há um vazio imenso, porque é uma vida que não faz sentido. Você entra nela achando que vai responder ao sistema que estava lhe humilhando, desacreditando de você, da sua masculinidade. Vai mostrar que é homem, não vai baixar a cabeça para o sistema. Quando você começa a entrar nesse buraco e viver sozinho, com todo mundo querendo lhe matar, percebe que sua vida não faz sentido, que está sofrendo à toa e por nada. Era muito evidente para mim esse fundo de poço que as pessoas entram no mundo do crime.

E sempre me tocou muito essa capacidade de reformatação das mentes, de resgatar as pessoas e criar uma nova identidade, uma nova autoestima. A pessoa começa a se perdoar pelos erros do passado, perdoar as pessoas que brigaram com ela e a admitir que se arrependeu, não quer aquela vida nunca mais e vai se dedicar a uma nova vida de amor ao próximo, com novas crenças, a partir da Bíblia. Era a única saída que os caras tinham, e eles abraçavam. Tinha toda uma tecnologia de discurso, signos e símbolos que permitiam esse resgate. Eu sempre vi a igreja com muito respeito, porque eu testemunhava essa capacidade de transformar. Pelo diálogo, vão no âmago da coisa e oferecem uma oportunidade, uma boia de salvação que as pessoas abraçam e se transformam.

•        Como você avalia o papel social desempenhado pelas igrejas nas periferias?

Nós imaginávamos que iríamos educar os pobres de cima para baixo, quando estávamos discutindo a Nova República e a criação de um Estado social-democrata, para alcançar uma sociedade mais justa e civilizada – transformar o Brasil numa Coreia do Sul, com boas escolas, ou numa Dinamarca. Ou seja, mudar de cima para baixo, por uma organização estatal. Não foi isso que aconteceu. Os pobres começaram a inventar essas soluções para se integrar e mudar as vidas deles próprios. Na verdade, eram soluções para a miséria que eles vivenciavam. A linguagem era deles, os instrumentos eram deles. Essas soluções, tanto nas igrejas quanto nas facções, atingiram uma profissionalização. Essa integração foi um ajuste de vida para uma sociedade em que ter dinheiro é importante.

 

Fonte: O Cafezinho/Deutsche Welle

 

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