domingo, 29 de outubro de 2023

José Martins: É a lei do valor, estúpido!

A origem dos preços e por que eles variam é um verdadeiro mistério para os capitalistas e seus economistas em todo o mundo. Esta dificuldade aparece sempre quando eles procuram dar uma explicação convincente do que se passa com a inflação no mercado mundial ou nas suas próprias economias.

Acontece que agora a coisa ficou mais misteriosa ainda. Uma estranha criatura estende uma nuvem escura sobre os preços das mercadorias em todo o mundo. Quando Wall Street ainda discute se o Federal Reserve Bank (Fed, banco central dos EUA) continuará elevando ou não a taxa básica de juros para “combater a inflação”, etc. o mercado mundial é atormentado pelo espectro de uma criatura muito mais letal que a inflação medida pelo popular índice de preços ao consumidor – exatamente nossa sempre esperada e querida deflação, a indecifrável e velha dama das catástrofes econômicas e das revoluções.

A economia chinesa é a primeira grande vítima da velha dama. E da pesadíssima crise da produção que ela anuncia. Vejamos a coisa mais de perto.

A figura mostra a evolução dos índices de Preço de Produção (PPI) e do Preço ao Consumidor (CPI). Refletem, grosseiramente, o Preço de Produção (PX) e o Preço de Mercado (PM) de Marx. O primeiro é o mais importante na dinâmica econômica dos ciclos, pois embute endogenamente a massa e a taxa média de lucro das empresas em diferentes ramos de produção. O PX é formado antes mesmo das mercadorias produzidas serem vendidas e realizadas na circulação. Como veremos mais abaixo, o PX depende de uma oferta e de uma demanda especificamente capitalista, o que passa longe do entendimento vulgar dos capitalistas e seus adestrados economistas de várias plumagens.

A segunda forma de preço (PM) – a única, não por acaso, que a economia vulgar leva em conta – varia em torno da primeira (PX), em função da popular oferta e da demanda da circulação simples, além de uma infinidade de outras influências exógenas à produção das mercadorias, como crédito, juros, concorrência, clima, moda, publicidade, impostos, renda territorial, aluguéis em geral, política econômica, monetária, cambial, expectativas, incertezas, guerras, desastres naturais etc.

A observação dos movimentos destas duas diferentes formas de preço é um valioso recurso na prospecção e análise da conjuntura econômica. Na dinâmica dos ciclos periódicos, a distância entre PX e PM tende a aumentar nos pontos mais elevados da fase de expansão do capital. O PM apresenta, então, forte autonomia relativa ao PX. Com prazo de validade, claro. Esta autonomia começa a enfraquecer e a diminuir a distância entre as duas formas de preços aos primeiros sinais da fase de desaceleração e, finalmente, a convergir para PX na fase mais aberta de desvalorização e crise do capital industrial. No momento da crise PX e PM caem juntos, em sincronia, como é mostrado no gráfico. Como um único preço. Este é o momento exato em que o que era apenas tendência à queda da taxa geral de lucro torna-se derrocada fatal para todo o sistema econômico.

Como ilustrado no gráfico, a China entrou em ininterrupta trajetória deflacionária a partir de outubro de 2021, quando o PX atingiu o pico exuberante (Greenspan diria “irracional”) de 13,5% ao ano. Doze meses depois já tinha caído para o território gelado das taxas negativas (deflação). Note-se que o PM desenvolve sua autonomia relativa, mantendo uma inércia de crescimento (2,8% ao ano) até final de setembro de 2022, quando é “puxado” bruscamente para baixo pelo PX.

Esses movimentos de preços acontecem devido à lei do valor envolvida no processo de produção de capital. De maneira similar à lei da gravidade da Física, a lei do valor da Economia Política determina a variação dos preços na totalidade do mercado mundial e, em seguida, no interior das principais economias nacionais.

Portanto, não se deve pensar como a economia política vulgar (e a teoria do subconsumo das massas, do marxismo burocrático) que é o baixo consumo de bens de consumo individual, ou mesmo capitalista, que leva à queda dos preços das mercadorias e do lucro dos capitalistas.

Acontece que os capitalistas não vendem mercadorias-simples, como se imagina, mas, ao contrário, realizam mercadorias-capital que materializam uma massa de valor e de mais-valia (lucro). E isso é o determinante da dinâmica de inflação e deflação na esfera da circulação do capital.

Em outros termos: os capitalistas não vendem um bem ou utilidade de consumo ou de capital, para satisfazer o desejo ou necessidade de quem quer que seja, mas vendem uma determinada taxa média de lucro para acumularem capital. Ininterruptamente.

O momento da crise é quando esta taxa cai abruptamente. É quando os capitalistas não conseguem mais produzir a taxa média de lucro no nível adequado à acumulação em determinado ciclo econômico. Com a queda da taxa de lucro e a consequente deflação dos preços os capitalistas não se interessam mais em continuar produzindo suas depreciadas mercadorias. E muito menos “vender com prejuízo”.

Importante repetir para não esquecer na hora de analisar a conjuntura econômica: a taxa geral de lucro não é criada no ato de venda da mercadoria, na esfera da circulação. Ela é criada na esfera da produção e é apenas realizada neste ato da venda dos bens de consumo individuais ou de consumo produtivo de capital. Esta é uma diferença básica da economia política dos trabalhadores (Marx e Engels) com a economia política dos capitalistas. Isso torna as duas teorias e a ideia de demanda absolutamente inconciliáveis.

Em termos mais visíveis no dia a dia da economia: os empresários precisam realizar ininterruptamente na esfera da circulação do capital uma determinada receita de valor agregado e uma massa de mais-valor (lucro) gerada na esfera da produção. Veja no gráfico abaixo da economia chinesa as vicissitudes atuais destes bens tão valiosos.

Temos aqui uma visão bastante aproximada dos determinantes mais profundos dos preços no modo de produção capitalista. Este gráfico, copiado diretamente do mais recente relatório “O lucro das empresas industriais acima do tamanho designado de janeiro a junho de 2023” do Bureau Nacional de Estatísticas da China, mostra na linha amarela a taxa de crescimento mensal (%) das receitas operacionais (valor e mais-valia) e na linha azul a taxa de crescimento mensal (%) da totalidade dos lucros (mais-valia) das empresas na economia chinesa.

Embora grosseiramente, como toda medição estatística, a relação entre as receitas e os lucros apresentados indica a trajetória recente da queda da taxa geral de lucro na economia chinesa. É quando o capitalista procura vender suas mercadorias e não consegue mais receber (realizar) essa taxa média de lucro que mantenha o seu capital e sua propriedade de pé. Não consegue produzir com deflação. Com seu desejo de acumular não atendido, ele paralisa a produção e joga a sociedade no inferno do desemprego, fome e morte da classe trabalhadora.

Observa-se também que a forte queda dos lucros durante 2022 já pressionava para a queda das receitas. O desabamento decisivo dos lucros acontece exatamente no mês de fevereiro de 2023 (- 22.9%), mantendo essa trajetória de catastrófico desabamento até agora.

Assim, a evolução das receitas também só é puxada para as taxas negativas no período janeiro-junho de 2023. Mas, no mesmo período a distância entre receitas e lucros se amplia significativamente (o lucro cai mais rapidamente que a receita) indicando forte queda da taxa geral de lucro na economia. Isso, como vimos a pouco, é insustentável para o capitalista.

Para concluir, vejamos outra coisa muito importante: como essa abrupta deflação de receitas e lucros se apresentam em diferentes tipos de empresas industriais chinesas, de acordo com sua propriedade jurídica? O gráfico abaixo, do mesmo relatório acima do Bureau Nacional de Estatísticas da China, pode responder nossa pergunta.

Este quadro também descreve receitas operacionais e lucros no período janeiro-junho (1º semestre) deste ano. Surpreendentemente, além de uma queda de 1,2% em suas receitas, as empresas estatais sofreram a maior queda (- 21%) na massa de lucro. As empresas privadas de capital externo, que representam aproximadamente 60% da produção e investimentos industriais na economia chinesa, sofreram as maiores quedas (-3.2%) nas receitas, acompanhadas de quedas também altamente impactantes (-12.6%) na massa de lucro.

Essa forte deflação sobre a produção e os investimentos industriais externos na economia chinesa também já aparece com mais clareza para a opinião pública. Um indicador de novos investimentos estrangeiros na China caiu para o nível mais baixo em 25 anos, no segundo trimestre, segundo dados divulgados em agosto pela Administração Estatal de Câmbio, do governo chinês. Dados oficiais, como todos os demais deste artigo.

O passivo de investimento direto – indicador do investimento estrangeiro direto na China – caiu para US$ 4,9 bilhões no período de abril a junho. Uma merreca para quem recebia US$ 100 bilhões ou mais no ano passado. Quase nem aparece no gráfico acima. Caiu 87% em relação ao mesmo período do ano passado e foi o menor valor em qualquer trimestre desde 1998.

Esses dados, que medem os fluxos líquidos, refletem aquelas tendências nos lucros de empresas estrangeiras, assim como diminuição no tamanho de suas operações na China. “A queda no índice de Investimento Estrangeiro Direto (IED) é alarmante”, declara à Bloomberg Michele Lam, economista chefe da Grande China do Société Générale AS. “Isso pode significar que ainda há novos investimentos chegando, mas algumas empresas estão reinvestindo menos de seus lucros existentes”, à medida que as empresas falam mais sobre “diversificação da cadeia de suprimentos”, acrescentou ela.

Tudo cai. A desglobalização e agora a deflação chegam com toda a força. Ameaçam concretamente a própria sobrevivência do governo chinês. Os capitalistas chineses, internos e externos, aumentam as pressões políticas sobre seu presidente Xi Jinping. Este último é cada vez mais inoperante. Só faz besteira.

Nas primeiras horas desta segunda-feira (21), por exemplo, a Bloomberg, grande porta-voz e consciência dos capitalistas no mercado mundial, estampa na principal manchete de seu portal toda a angústia do sistema global com a situação da economia chinesa e, particularmente, com o irritante imobilismo do governo de Pequim frente à situação: “A busca de Xi Jinping para reescrever o manual que conduziu o milagre econômico da China por uma geração está enfrentando seu teste mais severo até agora. A economia de US$ 18 trilhões está desacelerando, os consumidores estão pessimistas, as exportações estão lutando, os preços estão caindo e mais de um em cada cinco jovens está desempregado. A Country Garden Holdings, com 3.000 projetos imobiliários pendentes em todo o país, está à beira da inadimplência e os manifestantes se reuniram no Zhongzhi Enterprise Group Co., um dos maiores bancos paralelos, exigindo seu dinheiro quando os pagamentos foram interrompidos”.

E se desespera: “Xi Jinping está evitando grandes estímulos, mesmo diante dos riscos de deflação. Está com o freio de mão puxado. Por que Xi Jinping está deixando a economia da China se contorcer?”

Alguém poderia lhe responder com uma adaptação da frase-mantra do neoliberalismo: não é vosso serviçal Xi Jinping o culpado, é a lei do valor, estúpido!

 

Ø  Ynae Lopes dos Santos: Taxar grandes fortunas pode ser uma medida antirracista

 

Nesse mês de outubro, comemoramos o 35º aniversário da nossa Constituição que segue em vigor. Promulgada em 1988, a nova Constituição foi festejada de maneira ansiosa por uma parcela expressiva da população brasileira, pois marcava o fim de mais de duas décadas de ditadura militar no Brasil – período no qual uma série de direitos foram sistematicamente violados, e a democracia ficou suspensa.

O desejo pela democracia cidadã organiza diversos pontos da Constituição, numa proposta abertamente progressista (mesmo que a la brasileira). E ali no item sete do artigo 153 que versa sobre os impostos que compete à União instituir está: “grandes fortunas, nos termos de lei complementar”.

É isso mesmo, o maior e mais importante contrato social e político do Brasil previa a cobrança de imposto sobre grandes fortunas, por meio da formulação de leis complementares e futuras. Acontece que esse futuro nunca chegou.

Mais de três décadas se passaram e a possível cobrança de impostos sobre grandes fortunas – que existe em diversos países tidos como primeiro mundo, vale dizer – gera uma série de debates acalorados, mas não se efetiva em termos legais e práticos.

O debate recente sobre a reforma tributária trouxe uma vez mais a possibilidade de taxação das grandes fortunas do país – uma grandeza que sequer foi dimensionada, tendo em vista que a compreensão sobre o que seria o recorte inicial dessas grandes fortunas pode variar de um patrimônio de 2 milhões, segundo um Projeto de Lei Complementar (PLP) apresentado em 2008, até mais de 50 milhões, como o previsto em um PLP de 2020.

Mas o fato é que esse imposto incidiria sobre uma parcela ínfima da população, menos de 1%. Existem diferentes propostas de taxação, porém, nas versões que defendem alíquotas progressivas, os cálculos apontam que a arrecadação poderia alcançar até R$ 40 bilhões por ano.

40 bilhões representa quase 25% do orçamento do Ministério da Educação que, segundo o Portal da Transparência, terá em 2023 despesas previstas girando na casa dos 180 bilhões. Imaginem a diferença que esse dinheiro faria se bem aplicado na educação ou na saúde pública brasileira?

Taxação antirracista

Para aqueles que defendem a criação e aplicação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) existe uma argumentação importante de ser pontuada: a frequente improdutividade dessas fortunas. E, aqui vale lembrar: estamos tratando de fortunas de pessoas físicas, não de empresas ou indústrias – uma dimensão que também precisa ser levada em conta frente a argumentos tendenciosos que defendem que, se implementado, o imposto gerará uma “fuga de capitais”.

Mas há outra faceta fundamental na defesa da taxação de grandes fortunas: a possibilidade dela ser elaborada e aplicada dentro de uma perspectiva antirracista. Afinal, quem são os multimilionários brasileiros? Salvo raríssimas exceções, são homens brancos que, apesar dos possíveis esforços pessoais e familiares, surfaram nas muitas camadas de privilégio que a população branca usufruiu e segue usufruindo.

É preciso lembrar que durante muito tempo as maiores fortunas do país estiveram diretamente ligadas ao tráfico de africanos escravizados e à escravização dessas pessoas e seus descendentes. A relação é de tal intensidade que dificilmente uma família rica do século 19 não era proprietária de escravizados (geralmente donos de centenas deles). Só que desde meados da década de 1830, grande parte dos africanos escravizados no Brasil estava nessa condição de maneira ilegal, segundo as leis do próprio Brasil. Ou seja, uma parte significativa das fortunas construídas no século 19 foi feita na ilegalidade. E isso parece não ser um problema moral para ninguém, pois quem pagou por essa ilegalidade é quem segue pagando o pato (e também impostos muitas vezes desproporcionais à sua renda): a população negra.

Mesmo que a engrenagem da economia brasileira tenha mudado com a abolição da escravidão (1888) e a proclamação de República (1889), não podemos fugir ao fato de que ser rico segue sendo um privilégio quase que exclusivamente de brancos. E aqui, prefiro me poupar dos discursos meritocráticos que não têm nenhuma densidade analítica.

Não há um país menos desigual sem redistribuição de renda. Não há aplicação de políticas públicas antirracistas efetivas que não pressuponha redistribuição de renda. Que isso não seja perdido de vista.

 

Fonte: Correio da Cidadania/Deutsche Welle

 

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