sexta-feira, 27 de outubro de 2023

'Escravos de ganho': dependentes entregavam mais da metade do salário a pastor evangélico no Rio

Dependentes químicos acolhidos em uma casa de reabilitação ligada a uma igreja evangélica foram obrigados a trabalhar em diferentes estabelecimentos de bairros da Zona Oeste do Rio, diz uma investigação envolvendo vários órgãos.

Segundo informações colhidas durante uma fiscalização da Superintendência do Trabalho no Rio, Polícia Federal e Ministério Público do Trabalho, mais da metade do valor que as vítimas recebiam pelo trabalho era dividido com o pastor da igreja Alcance Vitória ou ofertado em dízimo à instituição religiosa, que fica em Paciência.

Segundo um documento da superintendência, os sete resgatados eram "escravos de ganho": quando as vítimas são obrigadas a realizar serviços fora da casa onde moram e entregar o dinheiro que ganham, ficando apenas com uma pequena parte.

Muitas vezes, em vez de um dinheiro, os trabalhadores recebiam tinta para pintura das casas onde moravam, ou carne e salsicha para comer. Eles ainda eram obrigados a frequentar os cultos da igreja.

Os trabalhadores foram resgatados em agosto deste ano do sítio que pertence ao Ministério, em Cosmos, bairro vizinho. O g1 acompanha o caso desde então.

A região é dominada por milicianos, que foram até o local, segundo denúncias, para saber mais a respeito da fiscalização. No momento do trabalho dos auditores fiscais, havia escolta da Polícia Federal, o que inibiu a ação dos criminosos. Homens armados já foram vistos no sítio.

Jackson de Sobral Almeida, pastor responsável pela igreja Alcance Vitória, em Paciência, foi autuado por trabalho análogo à escravidão. O g1 procurou o pastor, mas não obteve resposta até o momento.

O resgate foi realizado por auditores-fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, uma procuradora do Ministério Público do Trabalho e policiais federais da Delegacia de Defesa Institucional.

A igreja Alcance Vitória é ligada à Victory Outreach Church, que tem igrejas em várias cidades do mundo. No site da igreja, aparecem tanto o endereço em Paciência quanto o endereço do sítio da casa de reabilitação, na rua das Amoreiras, em Cosmos. Em destaque, está o nome do pastor Jackson Sobral.

•        Mão de obra a preço irrisório

De acordo com a fiscalização e os depoimentos dos trabalhadores, o pastor mantinha a casa de apoio com o nome da igreja e era fornecedor de mão de obra a estabelecimentos da região.

Os sete resgatados trabalhavam sem registro formal e dividiam metade do valor do salário com o pastor. Além disso, ainda eram obrigados a ofertar um dízimo de 10% no valor que teriam direito.

Os locais de trabalho eram três mercados em diferentes partes da Zona Oeste, além de um Sacolão em Paciência e uma fábrica de suco de laranja.

Em depoimento, um trabalhador contou aos auditores fiscais que recebia R$50 por dia de trabalho, mas que o dinheiro era liberado por um monitor apenas no dia designado para fazer compras de itens básicos.

Ele conta que um dos serviços que realizava era de lixar treliças, sem nenhum tipo de equipamento de proteção e que inalava os resíduos do processo.

O mesmo trabalhador afirmou que foi orientado, por pessoas do abrigo, a dizer que usufruía de duas horas de almoço e 15 minutos de lanche. Na realidade, ele trabalhava das 6h às 18h e tinha direito a a apenas uma hora de almoço.

•        Regras rígidas

Uma cartilha que precisava ser seguida pelos trabalhadores “recuperar homens do vício das drogas, álcool e devolver dignidade, respeito e confiança na sociedade através de um encontro com Jesus”.

Entre as regras, além da proibição de celulares e obrigatoriedade de presença nos cultos da igreja Alcance Vitória, estavam:

•        todo interno que for ao trabalho terá direto de receber a metade do dinheiro que foi pago pelo trabalho, desde que não fume, não use celular, não brigue, entre outros itens, bem como desde que não abandone a casa

•        o dinheiro ficará guardado com a direção da Casa, podendo ser usado a cada 15 dias para fazer compras ou para envio às esposas, caso haja

•        Se o interno decidir ir embora por conta própria, e caso tenha dinheiro na Casa, ele não terá direito de levar o dinheiro

Um dos internos, por exemplo, perdeu todo o dinheiro que tinha guardado por fumar dentro da casa de acolhimento, o que é proibido pelas regras da "cartilha" do pastor Jackson.

Os internos contaram em depoimento que eram proibidos de falar com o pastor, e que só poderiam enviar dinheiro para a família se tivessem filhos.

De acordo com os depoimentos, não havia água encanada no sítio e vários dos alimentos doados que usavam para se alimentar eram vencidos.

Um dos depoimentos é de um trabalhador que relata que, caso alguém recuse fazer trabalhos externos, é obrigado "a capinar um terreno sob um sol de 40 graus".

Antes dos cultos, todos contaram que eram obrigados a ficar de joelhos por duas horas e andar 40 para ir e voltar da igreja, três vezes por semana.

Auditores fiscais, uma procuradora do Trabalho e policiais federais participaram do resgate aos trabalhadores. — Foto: Reprodução

•        Punições

O Pastor Jackson firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para devolver os valores que devia aos trabalhadores (de um total de mais de R$ 17 mil), além de pagar R$ 500 para todos os resgatados por 1 ano e 8 meses a partir de novembro.

Duas empresas que pagaram remuneração aos trabalhadores também firmaram um TAC para fazer o pagamento das rescisões e FGTS.

Todos os trabalhadores terão direito ao seguro-desemprego e tiveram devolvidos os valores retidos pela igreja. Alguns deles receberam direito a 20 parcelas mensais de R$ 500 a partir de novembro de 2023.

 

       O que é trabalho análogo à escravidão, segundo a lei brasileira

 

Relatos dos trabalhadores da colheita da uva resgatados em Bento Gonçalves (RS) na última semana descreveram um cenário de violência cotidiana, condições degradantes de vida e violações a direitos humanos básicos.

O caso é o registro mais recente de trabalho análogo à escravidão no Brasil. Mas, afinal de contas, o que a lei brasileira reconhece como trabalho escravo?

O artigo 149 do Código Penal Brasileiro traz a definição jurídica do que é trabalho análogo à escravidão:

"É caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto."

A lei determina que é crime submeter alguém à condição de trabalho análogo à escravidão e que também é punível por lei qualquer pessoa que atue para impedir o direito de ir e vir do trabalhador que esteja nessa condição. Veja o que diz o texto:

"Também é punido com as mesmas penas aquele que, com o fim de reter o trabalhador: a) cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador; b) mantém vigilância ostensiva no local de trabalho; ou c) retém documentos ou objetos pessoais do trabalhador".

•        Portaria

O Código Penal, no entanto, não é o único texto sobre o tema. A Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência 1.293, de 2017, define os termos utilizados pelo Código Penal e ajuda a entender melhor os traços que caracterizam o trabalho análogo à escravidão, como trabalho forçado, jornada exaustiva e condição degradante. Veja a seguir.

•        Trabalho forçado é qualquer tipo de atividade imposta ao trabalhador sob ameaça, seja ela física ou psicológica. No caso recente de Bento Gonçalves, os trabalhadores relataram que eram espancados e agredidos com choques elétricos e spray de pimenta.

•        Jornada exaustiva é qualquer período de trabalho que viole os direitos do trabalhador à segurança, saúde, descanso e convívio familiar ou social. Uma jornada exaustiva pode se caracterizar tanto pelo tempo de duração quanto pela intensidade das atividades desenvolvidas. Os trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves contaram que eram obrigados a trabalhar seis dias por semana, das 5h às 20h, sem permissão para pausas.

•        Condição degradante é qualquer prática que negue dignidade ao trabalhador e viole sua segurança, higiene e saúde. Em Bento Gonçalves, relatos ouvidos pelas autoridades apontaram que os trabalhadores recebiam comida estragada e só podiam comprar produtos em um pequeno comércio próximo ao alojamento, onde os preços eram superfaturados e o valor consumido era descontado de seu salário.

•        Restrição de locomoção é a violação ao direito de ir e vir livremente, sob o argumento de que o trabalhador deve dinheiro ao empregador ou a seu representante. A restrição pode tanto manter o trabalhador preso no local de trabalho como impedir que ele peça demissão. No caso recentemente descoberto no Rio Grande do Sul, os trabalhadores afirmaram que eram impedidos de sair do local sem antes pagar uma suposta "dívida" e que os empregadores ameaçavam seus familiares.

•        Cerceamento do uso de meios de transporte é toda ação que impeça o trabalhador de utilizar meios de transporte, sejam públicos ou particulares, para deixar o local de trabalho ou de alojamento.

•        Vigilância ostensiva é qualquer forma de fiscalização direta ou indireta praticada pelo empregador que impeça a saída do trabalhador do local de trabalho ou alojamento.

•        Apoderamento de documentos ou objetos pessoais é quando o empregador mantém sob sua posse, ilegalmente, documentos ou objetos pessoais do trabalhador, como forma de impedi-lo a sair do local de trabalho ou de pedir demissão.

>>>> Como denunciar?

Existe um canal específico para denúncias de trabalho análogo à escravidão: é o Sistema Ipê, disponível pela internet. O denunciante não precisa se identificar, basta acessar o sistema e inserir o maior número possível de informações.

A ideia é que a fiscalização possa, a partir dessas informações do denunciante, analisar se o caso de fato configura trabalho análogo à escravidão e realizar as verificações in loco.

 

Fonte: g1

 

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