CARGILL QUER AMPLIAR SUA DESTRUIÇÃO NA AMAZÔNIA
A primeira vez que Clodoaldo Santos viu soja foi na
barriga de um peixe. Tucunaré, como o homem de 53 anos é conhecido, pescava na
baía do Marapatá quando se deparou com um grão já mole dentro do bucho do
mandi, um bagre comum na região. “Esse peixe está melhor do que a gente,
comendo até feijão!”, brincou. Foi seu cunhado quem explicou que aquilo era
soja, derrubada no rio por uma das balsas que levam os grãos para fora do
Brasil. O pescador nasceu em uma das 72 ilhas de Abaetetuba, no Pará, na Amazônia brasileira. Aprendeu com seu pai, ainda
criança, o ofício e o tempo das marés, a reconhecer sementes de açaí, babaçu,
cacau e seringueira. Mas a desconhecida leguminosa da costa leste da Ásia
avançava sorrateiramente em direção ao seu quintal. E ele em breve precisaria
lutar pelo território onde nasceu e cresceu.
A multinacional estadunidense Cargill construiu
dois portos no estado, nas cidades de Santarém, em 2003, e de Miritituba, em
2017. Tudo foi feito sem consultar as comunidades tradicionais impactadas e, no
caso de Santarém, violando ao menos nove leis, convenções e tratados
internacionais, de acordo com relatório da organização
Terra de Direitos. A paisagem na região norte do Pará vem mudando. A
floresta agoniza em meio às plantações. Mesmo depois de ter cometido uma série
de irregularidades nessas duas obras anteriores, o gigante transnacional
planeja construir uma terceira instalação portuária bem em frente à casa de
Tucunaré. Para isso, mais uma vez, atua sem ouvir as comunidades afetadas.
Comprou um terreno sobreposto a um assentamento da reforma agrária, em uma
operação considerada suspeita pelo Ministério Público Federal (MPF). Em junho,
o órgão entrou com um pedido na Justiça solicitando
a suspensão do projeto. Pediu também a seu Núcleo de Combate à Corrupção uma
investigação mais detalhada, já que recaem suspeitas sobre a atuação de
servidores públicos.
As ilhas de Abaetetuba estão localizadas na
confluência dos rios Tocantins e Pará, a 120 quilômetros de Belém, e abrigam
mais de 7 mil famílias ribeirinhas que vivem no pulso dos rios e das chuvas. Na época da seca, elas
coletam açaí. No inverno, quando o rio enche, a pesca domina o cotidiano. Por
essas ilhas se espalham 24 assentamentos da reforma agrária, vizinhos às casas
de outras 700 famílias quilombolas. A maré dita o
ritmo da vida. A enchente e a vazante fazem um bailado invisível para os que
não são dali. Mas Tucunaré é. E sabe a hora de entrar no igarapé. O pescador
ajeita o motor no barco e segue certeiro em meio ao caminho de rio que cruza a
vegetação fechada. Passa ao lado de seringueiras centenárias que conhece desde
que nasceu, mas que agora estão cercadas por grandes estacas de concreto,
objetos estranhos à paisagem da floresta. Essas estruturas margeiam pela
direita o igarapé São José e chegam ao quintal dos moradores da comunidade.
Formam uma cerca e delimitam o terreno comprado pela Cargill onde futuramente
poderá haver o porto se a empresa mais uma vez conseguir vencer todas as
barreiras da legislação ambiental.
As grandes estacas de concreto estão fincadas num
açaizal coletivo. Já cheias de limo e úmidas da floresta, que tenta retomar seu
espaço, não precisam de arame farpado – apesar de ostentarem buracos para a
passagem dos fios. A existência das estacas já cumpre a função de manter os
moradores longe dali. “A maior parte do povo não vai [mais tirar açaí] porque
tem medo”, lamenta um pescador da comunidade São José que teme se identificar e
sofrer represálias da empresa. O açaizal não é a única área coletiva cercada
pela Cargill. A floresta fechada desemboca em uma área ampla, ensolarada,
alagada e fecunda: são os três lagos das ilhas. Um grande berçário de peixes,
pássaros e insetos onde há gerações a população coleta madeira para suas casas
e sementes para suas hortas. O maior dos lagos, Piri Grande, fica dentro da
área comprada pelo gigante estadunidense. “Já colocaram uma divisa dentro do
lago. Se uma empresa dessa entrar ali, acabou. Nem os bichos vão ter sossego”,
lamenta Pedro de Alcântara, pescador da comunidade Igarapé Vilar, vizinha ao
Piri. Com 80 anos, Pedro teme que o lago seja destruído para a construção do
porto.
Enquanto prepara iscas com uma mistura de babaçu e
farelo embrulhada na palha do tururi, um macete usado pelos pescadores de
Abaetetuba, Osvaldo de Sousa, seu Vadico, fala da vida que pode desaparecer.
“Aqui a gente pesca camarão, filhote, pescada, dourada, piaba, mandubé, mandi,
mapará, sarda, tucunaré, caratinga, branquinha, tainha, jacundá, ituí… É assim
que a gente sobrevive”, diz. Horas depois, já no rio, seu Vadico amarra os
matapis, que usa para capturar camarão, em estacas que se estendem pelas
margens da ilha. Quando ergue a cabeça e olha para a frente, avista a área que
a Cargill delimitou. Ali, a maré muda várias vezes ao dia, mas seu Vadico
conhece bem o movimento: sabe a hora certa de tirar os matapis sem ficar preso
nos bancos de areia quando a água desce. Um conhecimento que pode se perder com
a imposição do porto.
A Cargill admite, em um relatório de impacto ambiental, que o
empreendimento pode provocar uma “eventual alteração da dinâmica das marés” e
uma “interferência na atividade pesqueira”. Também diz que será
necessário retirar areia do fundo do rio e que os píeres de atracação de
embarcações podem afetar “de forma pontual” a velocidade, a direção e a
quantidade de sedimentos das águas. Nesse estudo, chamado de “Rima”, a empresa
não informa o que acontecerá com o lago depois da construção da estrutura
portuária. Pelo projeto, o terminal inclui um sistema de carregamento e
armazenamento de grãos em silos metálicos com capacidade de 16,8 toneladas. Os
pescadores da região sabem que os impactos do novo porto serão maiores que os
apresentados pela empresa. Nos estudos, a Cargill não menciona a existência dos
pedrais, estruturas naturais que são locais de reprodução e alimento de peixes.
“O pedral contém a comida do peixe; se eles destruírem, vai nos afetar muito.
Quem sobrevive aqui sabe a quantidade de peixes que a gente pega lá. Dá até pro
vizinho”, alerta seu Vadico.
Em cada uma das ilhas, as áreas de pesca são
contadas em dezenas. Na do Xingu, são pelo menos 56, diz Deyvson Pereira Azevedo, morador da Ilha do
Capim, próxima ao terreno comprado pela Cargill. Nessa ilha, onde há 120 áreas
de pesca, os ribeirinhos produzem açaí, mel, pólen e conhecimento acadêmico:
Deyvson é pesquisador de sustentabilidade e povos tradicionais da Universidade
de Brasília. Para ele, desconsiderar o pedral nos estudos é uma “omissão” que
visa destruir. “O que a empresa está propondo é exatamente cercar os bens
comuns, as florestas comunitárias, e destruir”, explica Hueliton Azevedo, irmão
de Deyvson. Hueliton, que também é coordenador do Movimento dos Ribeirinhos e
Ribeirinhas das Ilhas e Várzeas de Abaetetuba, vai além: “Para passar as
embarcações [com soja], é preciso destruir o pedral, mas no estudo de impacto
ambiental não está dito isso. Há uma tentativa de esconder consequências
negativas que poderiam impedir a validade ambiental do projeto”. Os moradores
dizem que a linguagem técnica dos relatórios esconde a dimensão dos impactos
que serão causados pelo terminal portuário: se instalado, a Cargill poderá
roubar o tempo das marés – o ritmo das cheias e vazantes. Sem ele, o modo de
vida ribeirinho está ameaçado.
Frente aos relatos de subdimensionamento dos
impactos em seus estudos, a empresa transnacional respondeu a SUMAÚMA que “os
documentos estão sob avaliação e continua à disposição para oferecer qualquer
informação adicional aos órgãos competentes”. Sobre a cerca, disse que “não
existe motivo algum para que a comunidade tenha receio de entrar pela área,
que, inclusive, não está cercada ou protegida fisicamente de alguma forma”. O
gigante da soja entregou, em novembro de 2018, os estudos de impacto ambiental
à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará – e aguarda
a análise do órgão para seguir adiante com o porto. Agora aguarda também uma
decisão judicial.
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‘Como foi feito, a gente não sabe’
Entre os ribeirinhos das ilhas de Abaetetuba, onde
o horizonte é feito de rio, estão as 180 famílias do Projeto de Assentamento
Agroextrativista (PAE) Santo Afonso. Um dia, em 2017, elas acordaram com a
notícia de que um pedaço de terra do assentamento havia sido “vendido” à
Cargill. “Apareceu uma área privada, uma documentação que a gente não sabe como
surgiu. Mesmo a gente sendo assentado [da reforma agrária], [servidores do
governo] autorizaram que essa área fosse cedida para a Cargill. Como isso foi
feito, a gente não sabe. Foi uma surpresa”, conta Dimaiko Marinho Freitas, da
comunidade Igarapé Vilar, vizinha à área comprada pela empresa.
SUMAÚMA teve acesso ao memorando feito pelo
Ministério Público Federal que revela indícios de que o terreno foi obtido de
forma irregular e com o aval suspeito de órgãos públicos. O documento conclui
pela “existência de indícios de possíveis atos de improbidade, crimes
funcionais e de grilagem de terra conexos”. A denúncia aponta uma aquisição
irregular de 359 hectares para a construção do terminal portuário no local
conhecido como Urubueua, na Ilha Xingu. Não é simples alterar a atribuição de
uma área destinada para um fim, como o assentamento Santo Afonso. Por isso a
apuração do MPF se debruça não apenas sobre o gigante da soja, mas também sobre
a conduta de servidores da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), “por conter
evidentes indícios de irregularidades, assim como condutas de particulares que
podem ter configurado grilagem de terras públicas da União”.
A história dos 359 hectares é, de acordo com o MPF,
composta de uma rede de atores – duas empresas, órgãos federais, servidores
suspeitos e a prefeitura de Abaetetuba – em uma atuação sincronizada que revela
a complexidade da grilagem, um dos crimes mais comuns na Amazônia. Em 2005,
antes de o assentamento ter sido criado, o governo fez um estudo da área – e
não foi identificada nenhuma matrícula em nome de terceiros. Era uma terra da
União que estava sendo destinada à criação de um assentamento da reforma
agrária. Quase duas décadas depois, em 2020, a Cargill comprou, por mais de 53
milhões de reais (10,7 milhões de dólares, na cotação atual), esse terreno de
uma empresa – a Brick Logística. Antes, ela se chamava KF de Menezes
Consultoria Logística e diz ter adquirido o terreno em 2011 – ou seja, após a
criação do assentamento pelo governo federal – de uma moradora de Abaetetuba.
Essa mulher, por sua vez, teria comprado a área de um oficial da Marinha
Mercante e de um panificador. O documento que revela essa tramitação anterior a
2011 só apareceu nos últimos anos, segundo os ribeirinhos – em 2005, quando foi
criado o assentamento, ele não constava no cartório de Abaetetuba.
Para o MPF, a documentação apresentada pela Brick
sobre a compra do terreno tem indícios de ser “totalmente precária e carente de
requisitos mínimos para ser considerada legal”. Apesar de ter esse documento
inicial de compra do terreno, a empresa pediu à Secretaria de Patrimônio da
União, em 2014, para “retirar” o terreno de dentro do assentamento. O pedido
foi atendido pelo órgão em 2019 – quando a empresa pagou 1,4 milhão de reais à
União pela área, em um contrato de compra e venda e de aforamento firmado por
Flávio Augusto Ferreira da Silva, então superintendente da SPU no Pará. O
próximo passo para o caminho ficar livre para o porto seria o Incra autorizar a
“desafetação” do imóvel – ou seja, alterar a finalidade daquela área da União. Procurada
por SUMAÚMA, a Brick Logística afirmou, por meio do advogado Pedro Larcher
Felix Alves, que os títulos de traspasse emitidos pela prefeitura – documento
que transfere a titularidade de um imóvel – “permitiram a esses particulares
registrar a propriedade de terrenos em seu nome” e que “o imóvel adquirido
originalmente pela Brick nunca foi ocupado ou utilizado por qualquer
comunidade”. O advogado diz ainda que o PAE Santo Afonso “nunca saiu do papel”,
porque o Incra não teria finalizado o processo de destinação do assentamento –
que inclui registro em cartório e contrato de concessão.
O assentamento foi criado por meio de uma portaria publicada no Diário Oficial. Segundo Paulo Weyl, assessor jurídico da Cáritas Brasileira, nenhuma
das duas empresas solicitou o cancelamento desse documento. A organização,
ligada à Igreja Católica, entrou na Justiça em 2021 para pedir a nulidade do
processo administrativo que concedeu a área à Cargill. A Brick pertence a
Kleber Ferreira de Menezes, que foi secretário de Estado de Transportes do Pará
entre 2015 e 2018, na gestão do então governador Simão Jatene (PSDB). Como
secretário de Estado do Pará, Menezes estava bem informado sobre o chamado
“corredor logístico de exportação do arco Norte”, projeto de interesse do
governo federal desde pelo menos os anos 1990, que prevê estruturas para o
escoamento de grãos por meio dos rios paraenses e do qual o porto de Abaetetuba
faria parte. Em 2016, um ano depois de sua empresa ter celebrado com a Cargill
um contrato de compra e venda da área do assentamento, Menezes palestrou
sobre o corredor em um seminário da Agência Nacional de Transportes Terrestres
em Brasília. Em outra apresentação de Power Point, de maio de 2017, ele não
citou nominalmente o porto de Abaetetuba, mas destacou “a atratividade e
sustentabilidade” do projeto.
Pedro Larcher Felix Alves, advogado da Brick
Logística e que também é advogado do ex-secretário Kleber Menezes, afirmou que
a temática do corredor “é uma das mais relevantes e importantes para o estado,
sendo tratada por todos os governos estaduais, antes de o Sr. Kleber ocupar o
cargo de Secretário e após ter deixado o cargo”. Além da participação da Brick
Logística, nos 15 anos que se passaram entre a criação do assentamento e a
compra do terreno pela Cargill, a prefeitura de Abaetetuba emitiu dois títulos
de transferência, em diferentes momentos, dessa mesma área do assentamento, que
é da União. O último deles foi em 2016, em favor da Brick. “Como é que a
prefeitura concede um direito sobre um bem que ela não possui?”, questiona
Paulo Weyl, da Cáritas. “É um modo de forçar a barra para ter um título que não
existe.”
Questionada, a prefeitura de Abaetetuba afirmou que
os processos de titulação “tiveram como fundamento documentos que gozam de
presunção de veracidade, emitidos pelos órgãos competentes”. Ainda assim, disse
que enviou documentos para análise da Procuradoria Jurídica do município e que,
“caso seja constatada a existência de qualquer vício na emissão do título, a
prefeitura agirá de imediato”.
Diante da notícia da “compra” da área pela Cargill,
a associação do assentamento e a federação dos trabalhadores rurais de
Abaetetuba pediram, em 2021, ao Incra e à Secretaria de Patrimônio da União a
suspensão do processo de desafetação dos 359 hectares. Após três meses, o Incra
concedeu a suspensão, afirmando ser necessário analisar a denúncia relacionada
com a compra do terreno da União. Só que, menos de um ano depois, sem nenhuma
explicação anexada ao processo, o então superintendente do Incra, Neil Duarte
de Souza, autorizou a desafetação da área do imóvel.
O coronel Neil, como é conhecido, foi nomeado
superintendente do órgão responsável pela reforma agrária em 2019, em portaria
assinada pelo então ministro-chefe da Casa Civil de Jair
Bolsonaro, Onyx Lorenzoni. Foi, à época, alvo de críticas
por não ter experiência na área, já que havia atuado por décadas na Polícia
Militar paraense e tinha sido eleito deputado estadual em 2014. Depois dessa
passagem pelo Incra, voltou a ser eleito deputado do Pará, em 2022, pelo PL. “O
Incra não investiga o caso e lava as mãos. Incide em omissão grave com o fim de
facilitar o procedimento. É uma violação aos direitos dos extrativistas”,
afirma o assessor jurídico da Cáritas. Questionado sobre os motivos que o
levaram a autorizar a desafetação do terreno, o coronel Neil respondeu que
“foram adotadas todas as ações cabíveis e pertinentes ao caso em comento,
pautadas em estritas e responsáveis análises técnicas, embasadas em robusto
acervo documental, decorrentes tanto da Superintendência do Patrimônio da
União, Brick Logística Ltda. e Cartório do 1º Ofício de Abaetetuba/PA”.
O Incra disse em nota que está acompanhando a ação
movida pelo MPF e que “vai instaurar comissão para reabertura, análise e
parecer sobre o processo de desafetação”. A SPU não respondeu às perguntas de
SUMAÚMA. O ex-superintendente Flávio Augusto Ferreira da Silva e seus advogados
não foram encontrados. Diante da fragilidade documental relacionada aos 359
hectares, o Ministério Público chegou a questionar a “boa-fé” da Cargill.
“Alegar que agiu de boa-fé ao adquirir um imóvel com a cadeia dominial
[titulação] apresentada é, no mínimo, demonstração de uma ingenuidade que não
se aplica a pessoas jurídicas com a estrutura empresarial das investigadas”,
diz a denúncia.
A Cargill afirmou em nota que “não encontrou
qualquer irregularidade na matrícula do imóvel” ao analisar a documentação para
a compra do terreno da Brick Logística. A empresa também reforçou que não
tolera “que os direitos humanos sejam violados em quaisquer etapas da sua
operação, tanto no Brasil quanto no mundo”. Caso seja construído, o terminal de
Abaetetuba terá investimento de 900 milhões de reais (180
milhões de dólares), segundo a Cargill, e movimentará cerca de 2 milhões de
toneladas de grãos por ano. Essa capacidade pode chegar a 9 milhões de toneladas
anuais – o que exigirá 11 navios por mês para transportar essa carga.
Os cifrões apresentados pela empresa não
impressionam quem vive da floresta. “Essa terra tem dono”, assegura Edwiges
Bravo, da comunidade Igarapé Açu, próxima à Ilha Xingu. Com 80 anos, a mulher
pequena, de olhos firmes, criou seus 13 filhos trabalhando na coleta de açaí e
na pesca de peixes e camarão, “do jeito que os ribeirinhos vivem”. Edwiges teme
ser expulsa da ilha onde nasceu com a construção do porto. Ela não gosta da
cidade. Certa vez teve que acompanhar uma filha em uma emergência e, depois de
três dias, já não via a hora de voltar para casa. É categórica: quer continuar
morando em seu território. “Pra quem se criou aqui, não tem outra vida”,
explica. De riso solto e cercada pela família na cozinha de sua casa, Edwiges
diz que só é “brava” no sobrenome. Sua neta Kátia, que a escuta do fundo da
casa, intervém, categórica: “É brava com a Cargill!”.
·
‘Nem os mortos têm paz’
Os moradores das ilhas de Abaetetuba sabem que a
construção do novo porto será a destruição do modo de vida que conhecem. Já
viram isso acontecer não muito longe dali. Santarém, município no oeste do
estado, é o futuro de Abaetetuba. Ali funciona há 20 anos o primeiro porto da
empresa. Com a facilidade do transporte, os latifúndios de soja e milho
avançaram rapidamente sobre a floresta, cobrindo, inclusive, locais sagrados. O
cemitério na estrada que dá acesso à cidade de Belterra, vizinha ao município,
está cercado por plantações de milho – lavoura plantada na entressafra da soja.
Sem cerca nem muro a definir os limites, a plantação avança sobre as lápides.
“Nem os mortos têm paz. Se continuar assim, os ossos vão servir de adubo para a
lavoura”, lamenta Joycene Nogueira Henrique, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores
e Trabalhadoras Rurais de Belterra.
A monocultura da soja também explodiu em Belterra,
cidade de 18 mil habitantes às margens da BR 163, rodovia que leva os grãos
produzidos em Mato Grosso até o porto do Pará. Em 2000, antes de o terminal
portuário entrar em operação, havia 8 hectares de soja plantados – o
equivalente a oito campos de futebol. Em 2021, a área saltou para 24,7 mil hectares – tornando os terrenos
de cultivo maiores do que a área de uma capital como Recife. “Várias
comunidades foram extintas”, lamenta a presidenta do sindicato.
As plantações de grãos pintam a paisagem de uma cor
avermelhada – em julho, quando SUMAÚMA esteve na região, o milho plantado na
entressafra da soja dominava o território. Sem floresta, o sol castiga quem
passa a pé ou de bicicleta pela estrada. O calor é sufocante. Os moradores
apontam para as lavouras e lamentam: “Antes era uma plantação de mandioca,
tinha uma comunidade aqui”.
Com a chegada da Cargill, o Planalto Santareno,
região entre os municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, tornou-se
palco de uma corrida por terras para a produção de grãos. Essa arremetida vem
acompanhada do uso de agrotóxicos e da especulação imobiliária. Em 2000,
o preço médio do hectare em
Santarém e Belterra era de 50 reais, esse valor chegou a 2,5 mil reais em 2004
e pulou para mais de 4 mil reais em 2008. A monotonia da paisagem só é quebrada
pelas placas de “Vende-se” ao longo das estradas.
O fenômeno mostra como a ração de animais vem
invadindo áreas da agricultura familiar, verdadeira responsável pela produção
de alimentos no país. Dos 72,5 milhões de toneladas de soja exportados de
janeiro a julho deste ano – o Brasil é o maior produtor do planeta –, 70%
tiveram a China e seus rebanhos suínos como destino. “Um colega meu vendeu seu
terreno no início dos anos 2000 e logo passaram o ‘correntão’. A floresta foi
pro chão. Quatro anos depois, ele não comprava nem metade do seu antigo terreno
pelo valor que vendeu”, lembra um agricultor, que pediu para não ser
identificado. Ele já sofreu assédio para vender sua área, mas decidiu ficar.
As plantações de soja também avançam em direção à
aldeia Açaizal, do povo Munduruku. “É muito agressivo. Não temos mais o direito
de viver como antigamente, libertos. Derrubaram a nossa floresta, acabaram com
nosso igarapé”, conta Paulo da Silva Bezerra, liderança da Açaizal, enquanto
monta a roçadeira para limpar seu terreno, onde produz manga, abacaxi, castanha
e banana. O caminho entre sua casa e a escola da aldeia é tomado pela
monocultura. A comunidade está dentro da Terra
Indígena Munduruku e Apiaká, uma área ainda não oficialmente
demarcada, que está em estudo desde 2018 – uma das etapas antes da decisão
oficial do governo federal. Mas não há prazo para a demarcação acontecer,
segundo a Funai, o que deixa o povo Munduruku ainda mais vulnerável diante do
avanço do agronegócio predatório na região.
O desmatamento entre 2000 e 2022 nos municípios de
Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos foi de 208,9 mil hectares – quase duas
vezes a área do município do Rio de Janeiro –, segundo dados do Mapbiomas
elaborados a pedido de SUMAÚMA. Nesse período, o aumento da área dedicada à
soja foi de 111,4 mil hectares, sendo 59% pela abertura de novas plantações e
41% com a intensificação de terrenos já desmatados. A invasão da soja na região
de Santarém está ligada principalmente aos fornecedores do gigante
estadunidense. A organização internacional ClientEarth entrou com uma queixa na
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pelo
envolvimento da empresa com desmatamento e violação de direitos humanos no
Brasil. De acordo com a ClientEarth (clique aqui para ver o documento), a Cargill não
respondeu aos questionamentos sobre esses assuntos feitos pela organização de
direitos humanos Global Witness.
“Não há evidências de que a Cargill tenha um
processo sistemático para fazer valer um mecanismo ativo de monitoramento do
risco de violações provenientes de sua atividade”, afirma relatório da
organização, que denuncia também o chamado “desmatamento transferido”. Ou seja,
a conversão de antigos pastos em plantações de soja impulsiona a abertura de
novas pastagens em áreas conservadas, causando novos desmatamentos e
pressionando comunidades tradicionais. O documento mostra que a
multinacional comprou de fornecedores que desmatam a Amazônia e plantam soja em áreas sobrepostas a terras indígenas no Pará – isso sem contar as violações cometidas no Cerrado, onde está
grande parte dos aquíferos no Brasil.
·
Santarém: o passado se
repete
Se Clodoaldo descobriu a invasão da soja pela
barriga do peixe, os pescadores de Santarém já estão acostumados com a cena. A
cidade abriga há 20 anos um terminal graneleiro da Cargill que funciona dia e
noite, levando o grão armazenado em três silos até os navios atracados na orla
do rio Tapajós. Com capacidade
de 5 milhões de toneladas de grãos por ano, o
porto recebe, em fila, as embarcações para serem abastecidas.
A Cargill diz, em seu site, que o objetivo do
projeto é “contribuir com o agronegócio brasileiro e com o desenvolvimento
sustentável da região de Santarém”, afirmação que contrasta com a série de
denúncias e questionamentos judiciais desde que o complexo começou a ser
construído, em 1999. O empreendimento soterrou a praia Vera Paz, uma das
principais áreas de lazer dos santarenos. Além disso, o terminal foi instalado
em cima de um sítio arqueológico que guarda vestígios de ocupação pré-colombiana
de cerca de 10 mil anos, área que também era um cemitério indígena.
Levantamento feito pela organização
Terra de Direitos afirma que o gigante norte-americano feriu ao
menos nove leis, convenções e tratados internacionais com a construção do porto
de Santarém. Entre as irregularidades, estão a ausência de consulta prévia às
comunidades tradicionais afetadas, o início das operações (em 2003) sem um
estudo de impacto ambiental e o desrespeito a quatro artigos da Constituição
Federal que garantem direitos aos povos originários, meio ambiente e saúde.
Até hoje, 20 anos depois da instalação do terminal,
a Cargill não fez um estudo sobre os impactos da construção para as populações
indígenas e quilombolas nem realizou qualquer processo de consulta prévia,
livre e informada, conforme determina a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho, segundo a Terra de Direitos.
Margareth Pedroso, secretária do Conselho Indígena
Tapajós Arapiuns, resume: “Quando eu chego na sua casa, eu não vou entrando de
qualquer jeito, tenho que pedir autorização”. Localizado no centro da cidade de
Santarém, o conselho luta pelo direito à consulta e o reconhecimento dos
impactos do porto sobre os povos
indígenas afetados. “A empresa deveria fazer o estudo
das comunidades tradicionais, que são estudos específicos para cada grupo
étnico, além do diagnóstico climático”, reforça Pedro Martins, assessor
jurídico da Terra de Direitos. Ele se refere à Lei Estadual nº 9.048/2020, que instituiu
a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas. A medida determina que é dever
da Secretaria de Meio Ambiente do Pará “incorporar no licenciamento ambiental
de empreendimentos e em suas bases de dados a finalidade climática”. Em agosto,
o MPF abriu um inquérito para apurar a ausência
de diagnóstico climático no licenciamento do empreendimento da Cargill.
Enquanto a empresa se recusa a avaliar o impacto de
sua atuação na emergência climática, a população sente os efeitos na pele. “A
gente sabia a hora de plantar, de colher, se ia chover. Agora não, mudou
radicalmente todo o comportamento da natureza, nunca se viu tanto desmatamento
na região”, conta Maria Ivete Bastos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores
e Trabalhadoras Rurais de Santarém. Em agosto de 2020, a Cargill pediu a renovação
da Licença de Operação do porto em Santarém, que foi concedida pela Secretaria
Estadual em maio do ano passado. Martins, advogado da Terra de Direitos, afirma
que isso ocorreu à revelia da legislação que determina a realização de estudos
sobre povos tradicionais. “A Semas tem deixado a Cargill operar sem lhe impor
expressamente as obrigações devidas. O que não retira a responsabilidade da
própria empresa.”
Em maio, uma comitiva do Conselho Nacional de
Direitos Humanos (CNDH) esteve em algumas regiões do Pará e constatou, em relatório, o aumento do desmatamento, dos casos de
contaminação por agrotóxicos, da grilagem e da especulação imobiliária. Entre
as recomendações feitas a órgãos públicos, está o pedido para que a Semas
fiscalize e cancele licenças ambientais expedidas a ocupantes ilegais no
território Munduruku e Apiaká do Planalto Santareno e que todo empreendimento
seja precedido da consulta prévia, livre e informada.
A SUMAÚMA, a Semas afirmou que a renovação da
licença do porto em Santarém “seguiu os trâmites administrativos regulares no
âmbito da secretaria, nos termos da legislação vigente”.
A Cargill reforçou que “como toda licença
ambiental, essa traz condicionantes esperadas e que são rigorosamente
cumpridas”. Questionada se houve algum ajuste em seus estudos de impacto que
incluíssem populações tradicionais, a empresa disse que “não há qualquer
solicitação adicional ao que foi apresentado à época do licenciamento”. A
história, no entanto, se repete em círculos. Quase uma década depois do
terminal portuário de Santarém, a Cargill começou a construir outro porto – em
Miritituba – repetindo o padrão de violações. O novo empreendimento foi feito,
outra vez, sem consultar os Munduruku que viviam na região. A Cargill afirmou a
SUMAÚMA que seu estudo de impacto do porto em Miritituba já apontava a presença
de aldeias Munduruku na área de influência do projeto. Segundo a empresa, em
abril de 2022 a Associação dos Terminais Portuários e Estações de Transbordo de
Cargas da Bacia Amazônica, que representa os terminais portuários de
Miritituba, protocolou um plano de trabalho preliminar do componente indígena e
aguarda um parecer da Funai para dar seguimento ao estudo específico sobre
povos tradicionais e à consulta livre, prévia e informada.
·
‘A pior empresa do mundo’
A comunidade resiste. Em março, a ribeirinha
Eliziane Ferreira largou a comida no fogão quando soube que uma lancha da
Cargill se aproximava da comunidade de Caripetuba, em Abaetetuba. Ela subiu em
um pequeno barco e, junto com outras pessoas – a maioria mulheres –, fez uma
barreira para impedir a entrada da empresa.
Sob o sol quente, com remos em riste e gritos de
“Fora, Cargill”, a lancha do gigante estadunidense foi obrigada a dar
meia-volta. O almoço queimou, mas Eliziane conseguiu uma pequena vitória. As
populações em risco sabem, porém, que estão lidando com um gigante com influência
em todas as esferas. As violações cometidas no Brasil, somadas a outros
problemas da Cargill nos Estados Unidos, Costa do Marfim e Paraguai, fizeram
com que a organização internacional Mighty Earth nomeasse a multinacional como “a
pior empresa do mundo”. A receita da Cargill, que é dona das marcas Pomarola,
Pomodoro e Elefante, bateu recorde no ano passado no Brasil e no mundo,
chegando a 126 bilhões de reais por aqui e a 165 bilhões de dólares em números
globais, medidos no ano fiscal que teve início em outubro de 2021 e foi até
outubro de 2022.
Esse é o tamanho da sombra que avança sobre o
quintal de Tucunaré, que tem na floresta seu sustento. Se, mais uma vez, o
projeto da multinacional não for barrado e o porto for construído em
Abaetetuba, a soja poderá ocupar não apenas o estômago dos peixes que alimentam
sua família – mas sua casa e o território onde nasceu e cresceu.
Fonte: Sumaúma
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