A história de um crime brutal que tirou a vida de uma adolescente
karipuna de 15 anos, no Oiapoque
Maria Clara
Batista Vieira acordou numa quarta-feira e foi à padaria comprar pão. Era uma
atividade rotineira para a jovem indígena Karipuna, de 15 anos, moradora de
Oiapoque (AP), município com menos de 30 mil habitantes no extremo Norte do
Brasil. Ela saiu de sua casa por volta das sete da manhã. Morava com o pai e a
madrasta numa casa simples na Aldeia do Manga, às margens do Rio Curupi. Não se
sabe se no trajeto de ida ou de volta, foi agarrada por um homem quando passava
pela BR-156, rodovia que cruza a cidade. Voltou para casa vinte minutos depois
de ter saído. Mal conseguia falar. Tinha marcas de agressão pelo corpo e estava
suja de lama da cabeça aos pés. Contou para a madrasta que tinha sido
estuprada.
A madrasta levou Maria Clara para o hospital e
acionou a mãe da menina, Clarinda Batista, que correu até a delegacia da cidade
para registrar o crime. Segundo o boletim de ocorrência, registrado às nove da
manhã, ela relatou que “a adolescente retornou [para casa] quase se
arrastando, extremamente machucada, falando com dificuldade que havia sido
abordada por um homem na ponte para pegar informações. Que foi violentada
sexualmente e estava bastante machucada […]. Que o Autor chegou a enterrar a
vítima no lamaçal, acreditando que ela estaria morta. Que a vítima conseguiu se
arrastar e chegar até sua residência.”
O crime ocorreu há duas semanas, em 13 de setembro.
O delegado Charles Corrêa relatou que foi difícil estabelecer comunicação com
Maria Clara. Ela vomitava lama e não estava plenamente consciente. Ele desistiu
do primeiro interrogatório e foi atrás das imagens de câmeras de segurança que
ficavam próximas ao local do crime. Não teve dificuldade em obtê-las, e,
naquele mesmo dia, à tarde, tinha em mãos o nome e a foto do suspeito.
As imagens, obtidas de diferentes ângulos, mostram
o momento em que Maria Clara escapa do pântano onde havia sido sufocada. Ela
anda a passos trôpegos por uma rua de terra batida, onde há algumas casas
simples, de tijolo aparente. Não parecia haver ninguém ali perto que pudesse
socorrê-la. Outra câmera registrou o momento em que Claúdio Roberto da Silva
Ferreira, apontado pela polícia como autor do crime, lava pés e mãos numa
torneira de rua.
O delegado, ao assistir às gravações, retornou ao
hospital onde Maria Clara estava internada, levando dessa vez uma imagem do
suspeito para que ela o identificasse. “Quando mostrei a foto, ela confirmou
que era ele. Ao mesmo tempo se apavorou e disse: ‘Ele vai me matar, ele vai me
matar.’ Ou seja, a vítima estava num estado de choque tremendo”, relembra
Corrêa.
Às 13h40, a Polícia Militar prendeu Ferreira a
bordo de um barco, enquanto ele tentava fugir em direção ao Pará. O suspeito,
que ganhava a vida como pescador, resistiu à abordagem dos policiais. Foi
levado à força para a delegacia e, mais tarde, transferido para um presídio em
Macapá, onde permanece até hoje, acusado pelos crimes de estupro e tentativa de
homicídio. Segundo a Polícia Civil, Ferreira tinha antecedentes. Chegou a ser
preso no ano passado por tentativa de estupro contra uma adolescente não
indígena. Dessa vez, depois de ser detido, ele negou à polícia ter estuprado
Maria Clara. Disse que a agarrou para roubar seu celular.
Maria Clara tecia roupas e as vendia para ajudar a
família. “O maior sonho da minha filha era ser alguém na vida. Ela dizia pra
mim: ‘Eu quero terminar meus estudos pra ser alguma coisa na vida, ser uma
pessoa importante e reconhecida no mundo todo’”, relembra o pai, Neo Vieira,
com a voz embargada de choro.
Em março deste
ano, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) publicou o Relatório de Violência
Contra Povos Indígenas. A entidade, vinculada à CNBB (Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil), registrou vinte casos de violência sexual contra
indígenas em 2022. O número restrito diante da população de 1,7 milhão de
indígenas no país indica ampla subnotificação, por uma série de fatores – entre
eles, o fato de muitas etnias viverem em áreas onde não há presença do Estado
e, portanto, sem acesso a delegacias.
Ainda assim, esse foi o maior número de casos já
registrado pelo relatório, feito anualmente desde 2008. O auge, até então,
tinha ocorrido em 2014, quando foram listados dezoito casos de violência sexual
contra indígenas. Entre 2017 e 2021, a média vinha sendo de doze casos por ano.
O estupro de indígenas é um crime cometido há
séculos no Brasil. Tende a se tornar mais frequente à medida que grupos
econômicos, como garimpeiros e grileiros, avançam sobre a Amazônia. Um estudo
preliminar publicado pelo Ipea este ano aponta que, no Amapá, a ocorrência de
crimes de gênero e contra indígenas está diretamente ligada à dinâmica do
garimpo. Numa região onde há pouca oferta de emprego, os jovens, tanto homens
quanto mulheres, são atraídos pelo trabalho nos acampamentos ilegais de
garimpeiros. Muitas mulheres acabam sendo abusadas ou levadas a se prostituir
para ter o mínimo de renda.
Mas os crimes não ficam restritos aos acampamentos.
O que o estudo do Ipea mostra é que a presença de garimpos ilegais tende a
aumentar os índices de violência por toda a região, tornando mais provável a
ocorrência de crimes como o cometido contra Maria Clara. O pescador acusado de
tê-la estuprado não tem, até onde se sabe, relação com o garimpo. Segundo os
dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Amapá registrou 21,1 estupros
por 100 mil habitantes em 2022, uma das maiores taxas do país, atrás apenas de
Acre e Roraima. Quando se considera estupros de vulneráveis, o Amapá também tem
a terceira maior taxa: 64,5 casos por 100 mil habitantes. A média nacional é 28
por 100 mil.
“É um número que assusta, principalmente porque a
maioria das vítimas são crianças e adolescentes abusadas sexualmente”, lamenta
Nice Tupinambá, fundadora do Instituto Nossa Voz, ONG que atua em causas
ligadas ao meio ambiente e à questão indígena. Ela argumenta que a
subnotificação de crimes como esses não se deve apenas à dificuldade de se
chegar a uma delegacia: também se dá porque os indígenas temem sofrer
retaliações caso denunciem seus algozes à polícia. “Muitos órgãos não têm
interesse em registrar ou perguntar se o crime se trata de uma questão
indígena”, diz Nice. “Além disso, falta confiança na própria polícia, que às
vezes é responsável por fazer guarda armada para invasores e fazendeiros.”
O município de Oiapoque abriga três terras
indígenas contíguas, demarcadas e homologadas em 2002. São elas: Galibi, Uaçá e
Juminá. Estima-se que vivem ali 8 mil indígenas de quatro etnias: Karipuna,
Galibi Marworno, Palikur e Galibi Kali’nã. É uma região que faz fronteira
com a Guiana Francesa e que historicamente atrai garimpeiros em busca de ouro.
Uma investigação da Polícia Federal apontou, em 2021, que esse grupos vinham
lucrando com o uso de mão de obra indígena. Em novembro do ano passado, o
Exército brasileiro fez uma operação em Oiapoque e detonou túneis de extração
ilegal de ouro. Ninguém foi preso.
No último dia 18 de setembro, indígenas karipuna,
mesma etnia de Maria Clara, fizeram um protesto pelas ruas de Oiapoque.
Caminharam carregando faixas com dizeres como “Vidas indígenas importam!
Justiça por Maria Clara”. A Articulação dos Povos e Organizações Indígenas
do Amapá e Norte do Pará (Apoainp), uma das entidades que organizaram a
manifestação, publicou uma nota afirmando que “cobrará da Justiça e dos órgãos
competentes as ações necessárias para que o culpado seja devidamente punido”. A
Funai afirmou que o crime “bárbaro” cometido contra a jovem indígena não ficará
impune. “A violência que Maria Clara sofreu não é apenas uma tragédia
individual, mas também uma triste realidade enfrentada por muitas mulheres
indígenas em nosso país”, diz a nota.
Oiapoque fica a
sete horas de carro de Macapá, capital do estado. É mais fácil, portanto,
chegar a Caiena, capital da Guiana Francesa, que fica a menos de três horas de
distância. Por se tratar de um local remoto, afastado dos principais centros
urbanos, Oiapoque sofre com uma dificuldade crônica em oferecer bons serviços
de policiamento, educação e saúde.
O pai de Maria Clara diz que o hospital estadual
onde a filha foi atendida não estava equipado para lidar com um caso tão grave.
Dois dias depois de ser internada, em 13 de setembro, a jovem de 15 anos
foi transferida para Caiena, onde pôde ser levada para a UTI de um hospital de
grande porte. Segundo os médicos brasileiros, Maria Clara estava com um quadro
sério de infecção pulmonar. Os pais acompanharam a filha o tempo todo. Estavam
com ela no momento em que ela morreu, em Caiena, no domingo, 17 de setembro.
Neo Vieira conta, emocionado: “O médico falou na
minha cara: ‘Paizinho, se a sua filha tivesse vindo no mesmo dia talvez ela não
tivesse morrido. Infelizmente você chegou tarde’.”
Fonte: Revista Piauí
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