Professor negro é condenado a pagar R$ 7 mil por apontar preconceito em
gestão: ‘racismo reverso’
Leonardo Sacramento, 41 anos, professor de educação
básica de Ribeirão Preto (SP), vê como assédio judicial o processo por danos
morais movido contra ele pelo atual secretário de Educação de Ribeirão Preto,
Felipe Elias Miguel. O motivo foram duas postagens feitas pelo educador em 2019
criticando a escolha da prefeitura de três escolas que poderiam integrar o
programa federal de ensino cívico-militar. Sacramento chamou de racista a
preferência por unidades localizadas em bairros periféricos e de maioria negra.
Dois anos após o fato, sem sequer que a publicação existisse mais, o gestor
público entrou com pedido de indenização no valor de R$ 15 mil por considerar o
texto uma calúnia.
Felipe Elias Miguel obteve vitória parcial na
primeira instância. Em abril deste ano, o juiz Ronan Severo de Araújo, da 1ª
Vara Cível do Foro de Ribeirão Preto, condenou o educador a pagar R$ 7 mil por
entender que houve dano moral. A decisão é passível de recurso. Na análise do
magistrado, o educador fez ataques pessoais ao secretário. Ele destacou os
trechos abaixo para justificar a decisão:
“O racismo do prefeito, secretário e comissionados
da SME [Secretaria Municipal de Educação]. A classe média branca que adora
descer a porrada em negros e pobre […]
Logo, são preconceituosos e racistas. […]
O prefeito e o secretário, racistas e
preconceituosos, colocarão um policial para falar com a comunidade para
defender a militarização das três escolas”.
“São palavras graves e que maculam a honra contra
quem são dirigidas, e não podem ser manifestadas de forma leviana. E, pelos
elementos constantes dos autos, não há nenhuma informação de condenação do
requerente por crime de racismo, de modo que inexiste lastro jurídico para as
palavras proferidas”, escreveu o juiz na sentença.
O magistrado argumentou ainda que, a partir da
Constituição de 1988, a sociedade passou a combater condutas como o preconceito
e racismo. “Desse modo, noutra ótica, ao denominar uma pessoa como
preconceituosa e racista, lhe é dirigida alta carga negativa, moral e socialmente”,
completou.
A visão do juiz é rebatida por Wellton da Silva de
Fatima, doutorando na área de Análise do Discurso da Unicamp e professor do
Instituto Federal de Alagoas (IFAL). Ele diz ser grave e perigosa a forma como
o judiciário brasileiro compreende o que é o racismo e as formas de existência.
“Não precisa ninguém ter tido uma sentença para que
nós reconheçamos que houve racismo institucional. O que a gente tem aí é o
típico funcionamento do ordenamento jurídico brasileiro, que diante da
criminalização do racismo, o que nós vemos consolidado é que acusar de racismo
é uma conduta mais reprovável e mais condenável do que o próprio racismo em
si”, fala Welton.
Wellton tem pesquisado sobre o falso inverso
simétrico e também sobre o modo como o racismo é significado, percebido e as
transformações após a criminalização. Para o terceiro volume da coletânea
Mulheres em Discurso: lugares de enunciação e corpos em disputa, ele escreveu o
artigo “A produção discursiva do falso inverso simétrico: ‘racismo inverso’,
‘heterofobia’ e ‘femismo’”, onde abordou em parte essa temática.
No caso de Ribeirão Preto, ele enxerga o emprego de
um aparato ideológico por uma contra-acusação na tentativa de calar o professor
da rede municipal. Wellton diz que isso é percebido na petição inicial feita
pelos advogados do secretário que, para ele, tentaram desqualificar a atuação
do educador como representante de uma comunidade e da deslegitimação da
acusação de racismo.
“O que tenho observado nas pesquisas que tenho
feito é que quando alguém é acusado de racismo a pessoa tem algumas opções.
Algumas das mais recorrentes são a pessoa ficar em silêncio, isso quando
estamos falando de acusações no debate público, ou a pessoa vem a público se
defender e explicar porque não é racista e, nesse caso, a atitude do agente
público é justamente de procurar a norma jurídica com uma contra-acusação”,
explica o pesquisador.
Na petição inicial, citada por Wellton, a defesa do
secretário Felipe argumenta que as falas contrárias foram feitas em um grupo do
Facebook denominado “Educação Ribeirão Preto” com quase 13 mil membros, o que
permitiria que o texto fosse acessado, comentado e curtido por dezenas de
pessoas.
Os advogados argumentam ainda que o professor
estava à frente da Associação dos Profissionais da Educação de Ribeirão Preto
(Aproferp) e é militante da Organização Comunista Arma da Crítica (Ocac), para
dizer que Leonardo é “bastante atuante nos assuntos relacionados à educação,
com participação ativa nas redes sociais”.
O texto vem acompanhado de pedido para que o
educador também fosse enquadrado no como stalker e não pudesse publicar textos
com menção ao secretário. O pedido não foi atendido pelo juiz, que considerou a
solicitação como censura prévia.
·
Racismo reverso
Recorrendo da sentença, Leonardo defende que a
crítica que fez foi dirigida à gestão pública. Ele lembra que na época dos
fatos, 2019, a discussão sobre a implantação das escolas cívico-militares era
pauta alinhada ao governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL).
Instituído por decreto, o Programa Nacional das
Escolas Cívico-Militares (Pecim) foi desenhado pelo governo Bolsonaro para
aumentar a presença de militares na gestão dos processos educacionais.
A Pecim previa apoio financeiro às unidades que
aderissem ao modelo tendo como contrapartida a difusão de “valores cívicos”
para estimular “bons comportamentos e atitudes dos alunos”. Conforme descrevia
o projeto, militares inativos das Forças Armadas eram deslocados para essas
unidades para atuar na gestão administrativa e pedagógica.
A proposta, à época, foi criticada por
especialistas em educação. “Lugar de PM não é na escola. Nem ensinando, a menos
que seja um policial com licenciatura, nem agindo de forma violenta na
resolução de conflitos”, disse a professora e pesquisadora da Faculdade de
Educação da Universidade de Brasília (UnB), e coordenadora do Comitê-DF da
Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), Catarina de Almeida Santos em
entrevista à Ponte.
Em março, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) anunciou que iria descontinuar o Pecim com argumento de que a manutenção
do projeto não era prioridade da gestão e que outras políticas educacionais
seriam mais urgentes.
Foi no contexto do ápice do Pecim que Leonardo
criticou a movimentação do governo de Ribeirão Preto para aderir ao programa.
Em um texto que não está mais disponível no Facebook, porque a conta vinculada
a ele já não existe, o professor ponderou que a escolha das escolas Nelson
Machado, Prof. Dr. Jaime Monteiro de Barros e Prof. Honorato de Lucca era problemática.
As unidades foram escolhidas, segundo a prefeitura,
por terem menor avaliação no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(Ideb) e no Saber 2019 — sistema de avaliação da rede municipal de ensino.
Leonardo pontuou que o índice, assim como qualquer
outro, reproduz relações de desigualdade. “A desigualdade para o prefeito e o
secretário deve ser tratada com disciplina militar”, escreveu. No processo, a
defesa do educador mostrou que as três unidades ficam na Zona Norte de Ribeirão
Preto, onde mais faltam recursos municipais e políticas públicas, conforme
mostrou reportagem feito pela Farolete em março deste ano.
Além de professor da rede municipal, Leonardo é
pedagogo do IFSP (campus Sertãozinho) e pesquisador sobre movimentos
conservadores e liberalismo. Ele é autor de livros acadêmicos como Discurso
sobre o branco: notas sobre o racismo e o Apocalipse do liberalismo (Editora
Alameda).
Sobre a decisão do juiz, o educador fala em censura
prévia e protetiva para “todas as pessoas que são brancas, da classe média, da
elite, da burguesia brasileira sobre qualquer acusação sobre racismo”.
“O que isso significa, na prática, é que nenhum
negro, nenhum trabalhador negro, nenhum movimento negro, nenhuma entidade do
movimento negro pode acusar uma pessoa ou um agente público, uma política
pública de racista porque isso dependeria, obviamente, de uma condição prévia
dada pelo próprio judiciário”, diz Leonardo em entrevista à Ponte.
Ele defende que a crítica foi dirigida à atitude do
governante e ao racismo institucional presente, em sua visão.
“Isso acaba se transformando numa espécie de
racismo reverso em que a análise e a crítica depende inexoravelmente de uma
prova irrefutável sobre a sua prática individual. É protetivo. É como se eu
tivesse sido sancionado porque eu acusei uma política de racismo. Eu estou
sendo proibido de analisar e de criticar qualquer política pública de racista.
Então, na prática, eu sou o culpado”, afirma.
·
Outro lado
A Ponte procurou o secretário de Educação Felipe
Elias Miguel por meio da advogada indicada no processo e também pela assessoria
da prefeitura. Por mensagem via WhatsApp, a defensora Mariane Oliveira
Vasconcelos disse que não comenta casos em andamento.
A assessoria da prefeitura não respondeu ao pedido
de entrevista e questionamentos feitos pela reportagem sobre o caso.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) foi
acionado para que intermediasse uma conversa com o juiz Ronan Severo de Araújo
a fim de comentar o caso, mas respondeu por e-mail via assessoria que o magistrados
têm independência funcional para decidir de acordo com os autos e que o TJSP
não se manifesta sobre questões jurisdicionais.
Ø O genocídio nosso, de todo dia. Por Ynae Lopes dos Santos
Não aguentamos mais.
Era assim que eu queria começar a escrever essa
coluna, para falar da mortandade da gente preta neste mês de agosto de 2023.
Crianças foram mortas pelo braço armado do Estado, lideranças negras e
quilombolas foram assassinadas, chacinas em periferias seguem sendo feitas como
se o que estivesse em jogo não fossem a vida de seres humanos. Há uma
cumplicidade histórica do Estado brasileiro (sobretudo na sua esfera estadual)
em parte dessas ações. Isso, quando o próprio Estado não é o responsável direto
pelas ações que geram uma letalidade absurda da população negra.
Mas será mesmo que não aguentamos mais?
Ficamos tristes, enraivecidos, desamparados…
Conversamos sobre o assunto, fazemos posts indignados, e a vida segue, até que
outro menino de pele marrom seja morto por ser um menino de pele marrom. E aí,
começamos o ciclo novamente.
O horror é tamanho que não há descanso. E aqui, é
preciso fazer uma retrospectiva deste agosto e lembrar de quem teve sua vida
violentamente ceifada.
Mal havíamos nos recuperado da chacina
que aconteceu no litoral sul de São Paulo e,
dia 7 de agosto, Thiago Menezes Flausino, 13 anos, foi executado na Cidade de
Deus, Zona Sul do Rio de Janeiro. Ficamos chocados, fotos de crianças chorando
de desespero no velório de seu colega foram amplamente veiculadas nas redes
sociais. Parecia que não aguentaríamos mais uma criança morta em decorrência de
ações policiais. O presidente da República se solidarizou com o horror da morte
de Thiago e cobrou responsabilidade do governo do estado (se implicando também
na busca de soluções para esse problema)
Nem cinco dias se passaram e, na mesma “cidade
maravilhosa”, outra criança negra foi morta. Eloáh Passos, de 5 anos, morreu
dentro de casa durante uma ação policial no morro do Dendê. Não preciso dizer
que o estardalhaço seria outro caso essa morte tivesse acontecido em Ipanema,
Leblon ou Laranjeiras.
Na verdade, preciso sim.
Isso porque é uma grande mentira dizer que “não
aguentamos mais ver a morte de pessoas negras”. No Brasil, nós aguentamos sim.
E, às vezes, me parece que tem gente que ainda quer mais…
Não é de hoje que vivemos um genocídio negro no
Brasil. Em 1978, Abdias do Nascimento publicou uma importante obra chamada Genocídio
do Negro brasileiro, na qual demonstrava que a morte desenfreada na
população negra não é obra do acaso, ou resultado de uma série de infelizes
incidentes. Há intenção e intencionalidade nessas mortes. Há um plano, um
projeto muito bem executado, que mantém a população negra sempre no limiar da
vida e da morte. Um limiar que é atravessado pela classe social na qual os
sujeitos negros se inserem, mas que está sempre ali, numa espécie
de sombra constante que nos lembra todos os dias que nós, negros, somos
facilmente matáveis.
As mortes de crianças negras obviamente nos chocam
mais, mas elas também entram nas estatísticas brasileiras que foram
recentemente publicadas pela rede de Observatórios de Segurança que apurou
o número da letalidade negra nas ações policiais em seis estados do Brasil. Os
números são alarmantes e parecem corroborar a existência de um padrão que,
infelizmente, segue ordenando as ações vinculadas à segurança pública do país.
Mas o genocídio negro parece não ter limites. Nesse
mesmo agosto de 2023, Mãe
Bernardette Pacífico (isso mesmo, uma mãe de santo que carregava a
paz no seu sobrenome) foi assassinada a tiros dentro de seu terreiro em
Salvador. E essa foi uma daquelas crônicas de uma morte anunciada: não bastasse
ter vivido a execução de seu filho (que como ela lutava pela comunidade
quilombola que fazia parte), Dona Bernadete (uma importante mãe de
Santo liderança quilombola) havia recentemente denunciado que estava
sofrendo ameaças de morte. Uma denúncia que foi publicizada, mas que não foi
capaz de mudar essa lei soberana que ainda ordena a vida negra brasileira:
seguimos sendo matáveis.
O balanço do mês de agosto é que o genocídio negro
brasileiro segue seu curso, se entranhando no nosso cotidiano, naquilo que
consideramos “normal” ou “natural” numa sociedade que se diz democrática.
Porque, por aqui, na nossa democracia, negro continua sendo alvo.
Até quando?
Fonte: A Ponte/Deutsche Welle
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