Marcelo Semer: A guerra às drogas é uma guerra contra jovens negros
Na semana em que o presidente do Senado mostrou a
disposição de enviar uma PEC para incluir na Constituição a criminalização de
qualquer volume de entorpecente, reagindo ao julgamento ainda inacabado do STF,
o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apresentou os resultados
finais de uma pesquisa em âmbito nacional que buscou identificar quem é o
processado pelos crimes de droga. E ele é o jovem negro de baixa escolaridade.
É contra ele que os mecanismos da guerra às drogas se dirigem e são cada vez mais
persistentes.
Não se pode dizer que os números sejam propriamente
uma surpresa. Uma série de pesquisas já havia apontado dados similares em
amostras menores ou de âmbito regional. Contudo, a consolidação do quadro em um
espectro nacional é um registro importante. Em relação aos processos das
justiças estaduais, por exemplo, a expressiva maioria dos que correm no país, o
resumo é nítido sobre os réus: 86% de homens, 72% com 30 ou menos anos, 66% de
negros (entre pretos e pardos) e 68% de pessoas que não chegaram a completar o
ensino médio. Quase 80% deles, primários.
Há razões consistentes para essa enorme
seletividade – que já havia apontado quando apresentei pesquisa de amostra mais
reduzida no livro Sentenciando tráfico, em 2019: quase 90% dos processos
criminais começam com prisões em flagrante, a maior parte deles na rua, por
policiais militares em atividade de patrulhamento. A pesquisa do Ipea confirmou
que pouco mais de 10%, nos casos relativos à Justiça Estadual, provém de
investigações mais apuradas.
O patrulhamento explode a seletividade porque
depende de quem é abordado pelos policiais – e diversas outras pesquisas
apontam a opção preferencial das forças de segurança pelos jovens negros. A
respeito, já escreveu Jéssica da Mata em seu A política do enquadro: “Trata-se
de um padrão consideravelmente antigo e que ainda hoje se mantém, de modo que,
ao menos entre os estudiosos da polícia, não existe mais dúvida de que o
racismo é reproduzido e reforçado através da maior vigilância policial a que é
submetida a população negra”.
A pesquisa apresentada em seminário da Secretaria
Nacional de Política sobre Drogas (Senad) em 22 de setembro traz uma conclusão
aterradora: os processos funcionam em uma lógica de cilindro, ou seja, há
pouquíssimos filtros que separam a prisão em flagrante da condenação. Volumes
irrisórios de arquivamento de inquéritos pelo Ministério Público ou de rejeição
de denúncia pelos juízes. Ao final, os mais de 70% de condenações em tráfico de
drogas levam os pesquisadores a concluir que é mesmo “a Polícia Militar, em seu
policiamento ostensivo, que detém o protagonismo na política criminal de
drogas”.
A baixa quantidade de filtragem decorre, em grande
medida, do fato de que a prova testemunhal é a peça de resistência dos
processos de tráfico, e é a palavra da polícia que domina as instruções
processuais, seja pelo volume (está presente em praticamente todas as
audiências) seja pela aceitação dela como uma verdade quase absoluta.
A centralidade da palavra da polícia indica que a
decisão do STF, se de fato convergir pela descriminalização do porte e a
fixação de um limite mínimo de droga para a presunção do tráfico, pode não ter
o efeito desejado: afinal, o próprio ministro Alexandre de Moraes já indicou
que, além do volume, outras circunstâncias vão ser levadas em conta, como
denúncias anônimas, local de apreensão, apetrechos etc. – todos elementos que
chegam ao juízo exclusivamente pelos relatos da polícia.
No seminário de apresentação dos dados, o
pesquisador Marcelo da Silveira Campos chamou atenção para o fato de que, a
despeito de todas as mudanças que têm sido tentadas nos processos de drogas,
nada foi capaz de reduzir a representação dos condenados por esses crimes no
interior do sistema penitenciário, que permanece, há anos, próxima a 30%,
praticamente a maior incidência de prisões pelo país.
Há bons motivos para isso.
A mediana das apreensões de droga chama atenção
pela escassez. Tratando-se de maconha, não passa de 85g a quantidade em média
portada por cada acusado preso –menos do que os 100g sugeridos pelo ministro
Barroso como sarrafo para a consideração do tráfico de drogas. A tônica de
repressão, portanto, continua se sustentando no microtráfico.
A lei 11.343, de 2006, pretendeu fazer uma
distinção entre o grande e o pequeno traficante, para evitar o
hiperencarceramento que já produzia seus efeitos perversos –inclusive,
paradoxalmente, aumentando e não diminuindo a criminalidade, uma vez que os
jovens presos acabavam simplesmente servindo como soldados para as organizações
criminosas.
Entretanto, a distinção não funcionou, mesmo que o
STF tenha aprofundado em suas decisões o gap entre o traficante “hediondo” e o
“privilegiado”. Não funcionou porque, de um lado, a polícia, com parca
investigação, continuou focando no pequeno vendedor que vê na rua; e de outro,
os juízes, imbuídos da certeza moral de que o tráfico é quase um crime contra a
humanidade, resistiram o quanto puderam a aplicar as atenuantes previstas em
lei.
No entanto, ainda há um outro motivo.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem
consolidando uma jurisprudência que limita o apego desmedido à prova policial.
Primeiro, exigindo que a polícia documente e justifique, de forma fundamentada,
a violação aos domicílios – quase todos, evidentemente, vulneráveis. De outro
lado, que respeite critérios para abordagens, não se limitando ao próprio
“tirocínio” policial, que no mais das vezes esconde a chaga do racismo
institucionalizado.
Todavia, essas decisões não só estão sendo pouco
replicadas nos tribunais dos estados, como, mais recentemente, estão sendo
vítimas de uma desconstrução no andar de cima, sobretudo por decisões
monocráticas do próprio ministro Alexandre de Moraes, revigorando o poder da
polícia e, mais ainda, das guardas municipais.
As tentativas de estabelecer filtros são, assim,
constantemente bombardeadas. Com o predomínio da lógica do cilindro, em que
prisões em flagrante vão se transformando quase automaticamente em condenações
criminais, o papel dos juízes se resume a um viés confirmatório.
O quadro continua periclitante, mas como a
repressão se destina aos suspeitos de sempre, permanece não despertando a
atenção da política ou da sociedade. O repúdio ao hiperencarceramento não
parece ser um critério relevante na escolha de ministros para o Judiciário.
O resultado não será apenas a manutenção de um
sistema que continua empilhando jovens negros nos cárceres; mas a possibilidade
real de que essa guerra produza cada vez mais vítimas.
Maioria
dos presos pela Operação Escudo no Guarujá são negros. Por José Cícero
Homens negros são a maioria das pessoas presas
pelas polícias Militar, Civil e Guarda Civil Metropolitana (GCM) durante a
primeira fase da Operação Escudo, em andamento no Guarujá, litoral sul de São
Paulo. A conclusão é de um relatório divulgado pela Defensoria Pública de São
Paulo nesta segunda-feira (25) que analisou o perfil de 630 prisões realizadas
entre 27 de julho e 4 de setembro. Os dados incluem tanto prisões em flagrante
— que são a maioria — quanto as realizadas por mandado.
De acordo com o órgão, ao todo, foram presas 395
pessoas negras, o que equivale a cerca de 62% de todos os presos. Em
comparação, foram presas 195 pessoas brancas.
O censo de 2010 mostra que 52% da população do
Guarujá é negra. Na Praia Grande, apenas 41%. Em Santos, não passa dos 26%. E
em São Vicente, está na faixa dos 45%. Os quatro foram os municípios com maior
quantidade de prisões na operação. O levantamento leva em conta a 1ª
Circunscrição Judiciária de Santos, que abarca as Comarca de Bertioga, Cubatão,
Praia Grande, Santos e São Vicente.
A maior parte das prisões foi em flagrante: 269 de
pessoas negras contra 126 de brancas. As prisões com mandado da Justiça foram
de 126 pessoas negras para 69 brancas.
No país 648 mil pessoas estão cumprindo pena em unidades
prisionais, sendo que 442 mil delas são negras (68,2%). Os dados são do Sistema
Nacional de Política Penais (SENAPPEN), de 2022.
Segundo o relatório da Defensoria, há mais prisões
que não puderam ser analisadas. No dia 4 de setembro, a assessoria da Secretaria
de Segurança Pública informou que o total de pessoas presas era de 805 — 175 a
mais do que a Defensoria conseguiu analisar.
“O cenário evidencia a necessidade de que a
Defensoria Pública tenha acesso à integralidade dos dados, fazendo cumprir sua
missão constitucional de promoção dos direitos humanos dos grupos vulneráveis,
entre eles as pessoas privadas de liberdade”, destaca o relatório.
A reportagem solicitou informações atualizadas
sobre as prisões, mas ainda não obteve retorno.
• Operação
teve média de 21 prisões por dia
Durante os 38 dias da primeira fase da operação, a
Escudo prendeu uma média de 21 pessoas por dia. A maioria dos presos em
flagrante, cerca de 61%, não tinha antecedentes criminais; 72% das prisões
envolviam crimes sem violência ou grave ameaça; e, em 92% dos casos não houve
apreensão de armas. Em 74% das prisões, as pessoas foram apreendidas sem
drogas. Cerca de metade dos presos tinham entre 18 e 29 anos.
Homens são a grande maioria dos presos: 590 para 39
mulheres. A Defensoria também identificou um caso de mulher trans presa em
flagrante.
Dentre as mulheres presas cuja informação de raça
foi divulgada, há 21 negras e 17 brancas.
Durante a primeira etapa da Escudo, até 4 de
setembro, a Secretaria de Segurança Pública confirmou 28 pessoas mortas pela
operação. A operação chegou a ser encerrada no dia 4 de setembro, mas foi
retomada no dia 8 ataques contra policiais militares, como o que resultou na
morte do sargento Gerson Antunes Lima, de 55 anos, baleado por criminosos, em São
Vicente. A operação segue ativa.
Inicialmente, a operação foi deflagrada pelas
Polícias Militar e Civil com o objetivo de identificar e prender os envolvidos
no ataque que causou a morte do soldado da Rota Patrick Bastos Reis, de 30
anos. Ele foi assassinado no dia 27 de julho, por um disparo de arma de fogo na
região do tórax, enquanto fazia patrulhamento na Vila Júlia, no Guarujá. No
ataque, o cabo Fabiano Oliveira Marin Alfaya foi baleado na mão esquerda.
No dia 30, Erickson David da Silva, conhecido como
Deivinho – apontado como autor dos disparos –, se entregou à polícia na Zona
Sul de São Paulo. Ele fez um vídeo pedindo o fim da matança no Guarujá. “Quero
falar para o Tarcísio e o Derrite para de fazer a matança aí, matando uma pá de
gente inocente, querendo pegar minha família, sendo que eu não tenho nada a
ver. Estão me acusando aí. É o seguinte, vou me entregar”.
Na madrugada do dia 2 de agosto, a polícia prendeu
o último suspeito de participar da ação que resultou na morte do soldado Reis.
Em 4 de agosto, três suspeitos foram indiciados por homicídio, tentativa de
homicídio e associação ao tráfico de drogas. A prisão dos acusados de
envolvimento no ataque a guarnição da Rota não mitigou a atuação das forças de
segurança e as mortes e prisões continuaram acontecendo na Baixada Santista.
Reportagem da Pública mostrou que o total de mortes por intervenção policial
quase dobrou na Baixada Santista durante a operação, apesar da média de prisões
e apreensão de armas ter se mantido estável.
Será
que só a polícia não vê? Criminosos treinam perto de escolas, e até criança
segura fuzil
A área onde criminosos realizam sessões de
treinamento para enfrentar os rivais, no Complexo da Maré, na Zona Norte do
Rio, é cercada por cinco escolas e uma creche de grande porte. A proximidade
dos traficantes com as crianças assusta os moradores da região.
No domingo (24), o Fantástico exibiu o resultado de
uma investigação da Polícia Civil que durou dois anos sobre o “curso prático de
táticas de guerrilha”. O local conta com uma quadra, onde eles se prepararam
para as guerras do bando, e uma piscina de uso exclusivo.
Segundo os investigadores, a escolha do tráfico por
montar seu local de treinamento em uma região escolar é estratégica e permite o
aliciamento das crianças desde cedo.
Em uma imagem, é possível observar uma criança
segurando um fuzil, dando proteção a dois dos maiores comandantes do tráfico do
Rio de Janeiro, Thiago da Silva Folly, o TH da Maré, que é gerente-geral do
tráfico no local, e o traficante conhecido como Empada, chefe no morro de São
Carlos, na região do Centro.
Imagens inéditas obtidas pelo RJ2 mostram no último
sábado (23) crianças brincando numa piscina enquanto, a poucos metros, homens
armados de fuzil descem de um carro e circulam livremente.
• Como
está dividido o complexo
A Polícia Civil mapeou quem são os criminosos que
controlam a área onde foi criado um centro de treinamento do crime no Complexo
da Maré.
Várias facções estão no Complexo da Maré, que tem
mais de 140 mil moradores. De acordo com o mapeamento dos policiais, o Terceiro
Comando Puro (TCP) domina a maior parte da região, inclusive o centro de
treinamento.
O TCP controla a Vila do João, a Vila dos
Pinheiros, Salsa e Merengue, Baixa do Sapateiro e Timbau.
As comunidades da Nova Holanda e Parque União,
ainda no Complexo da Maré, estão sob o jugo do Comando Vermelho, outra facção
de traficantes.
A Maré ainda tem uma parte tomada por milicianos:
Roquete Pinto e Piscinão de Ramos.
Ao longo da investigação que durou dois anos, os
agentes identificaram pelo menos 400 bandidos da facção da região da área usada
como centro de treinamento. A Polícia Civil monitorou, no total, 1.125
traficantes, milicianos e pessoas ligadas às atividades criminosas na Maré.
Eles foram indiciados por tráfico de drogas, associação para o tráfico e
organização criminosa.
Porque
não age? Presença de drone da polícia filmando treinamento do tráfico na Maré
provoca tensão; criminoso é flagrado apontando fuzil
A Polícia Civil do Rio de Janeiro levou dois anos
de investigações para desvendar informações sobre o centro de treinamento do
tráfico de drogas, no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Os
investigadores descobriram detalhes sobre o local, seu funcionamento e os
frequentadores.
Ao longo desse período, o momento mais tenso
aconteceu quando os criminosos começaram a desconfiar da presença do drone da
polícia. Um dos bandidos foi flagrado apontando um fuzil na direção do
equipamento.
Em uma das imagens capturadas, os traficantes
aparecem à beira da piscina, quando um deles olha para o alto e começa a
apontar. Ele percebe a presença do drone no local.
Outros bandidos tentam se esconder embaixo de uma
cobertura. Eles querem evitar o registro de suas imagens. A partir desse
momento, o cerco ao drone começa.
Vários homens armados tentam localizar o objeto
voador no céu. No terreno ao lado da piscina, mais bandidos armados surgem na
imagem e o ambiente parece ainda mais tenso.
Alguns traficantes começam a correr por conta da
presença do drone e um deles pede ao colega um fuzil. Ele imediatamente aponta
a arma na direção do drone.
Mesmo a quilômetros de distância do local, o
operador da aeronave se assusta com a possibilidade de um tiro de fuzil ser
disparado no equipamento. O drone então sai da mira do bandido e deixa o local.
Área onde bandidos são treinados em favela é
cercada por 5 escolas e uma creche
A área onde criminosos realizam sessões de
treinamento para enfrentar os rivais, no Complexo da Maré, na Zona Norte do
Rio, é cercada por cinco escolas e uma creche de grande porte. A proximidade
dos traficantes com as crianças assusta os moradores da região.
No domingo (24), o Fantástico exibiu o resultado de
uma investigação da Polícia Civil que durou dois anos sobre o “curso prático de
táticas de guerrilha”. O local conta com uma quadra, onde eles se prepararam
para as guerras do bando, e uma piscina de uso exclusivo.
Segundo os investigadores, a escolha do tráfico por
montar seu local de treinamento em uma região escolar é estratégica e permite o
aliciamento das crianças desde cedo.
Em uma imagem, é possível observar uma criança
segurando um fuzil, dando proteção a dois dos maiores comandantes do tráfico do
Rio de Janeiro, Thiago da Silva Folly, o TH da Maré, que é gerente-geral do
tráfico no local, e o traficante conhecido como Empada, chefe no morro de São
Carlos, na região do Centro.
Imagens inéditas obtidas pelo RJ2 mostram no último
sábado (23) crianças brincando numa piscina enquanto, a poucos metros, homens
armados de fuzil descem de um carro e circulam livremente.
Fonte: Le Monde/Agencia Pública/g1
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