sábado, 30 de setembro de 2023

Garimpo ilegal perde R$ 1 bilhão em máquinas com operações na Amazônia, diz Ibama

Cerca de R$ 1,1 bilhão em bens e maquinários foram apreendidos ou destruídos nas sete maiores operações contra o garimpo ilegal deflagradas em 2023, segundo cálculos do Ibama obtidos com exclusividade pela Repórter Brasil.

Desse total, mais de R$ 1 bilhão corresponde a equipamentos apreendidos, enquanto R$ 82 milhões se referem a peças efetivamente destruídas. A lista é vasta e inclui tratores, escavadeiras, balsas, dragas, aviões e helicópteros, além de motores, barcos, motos, caminhonetes e material de acampamento.

Segundo o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Jair Schmitt, o valor e a quantidade dos aparelhos encontrados contradizem a ideia de que o garimpo seria uma técnica artesanal de exploração mineral.

“Há frotas de equipamentos de transporte aéreo ou fluvial, motores hidráulicos, geradores de energia e toda uma infraestrutura associada que forma o contexto de planta industrial ou produtiva de valor considerável”, explica Schmitt.

 “Quem botou esse R$ 1 bilhão lá?”, provoca o coordenador de pesquisas em mineração do MapBiomas, Pedro Walfir. Segundo ele, o investimento não é feito pelos garimpeiros em campo, mas sim por empresários que aportam recursos nessas estruturas.

“Quem tem milhões para investir em uma atividade como essa, que é rentável mesmo sendo descoberta, destruída e queimada, e que no ano seguinte está de volta funcionando?”, acrescenta.

A destruição de equipamentos utilizados em crimes ambientais é uma prerrogativa legal do Ibama. Os agentes do órgão podem recorrer a essa alternativa quando a remoção do maquinário não é possível ou quando o transporte pode gerar riscos aos fiscais ou à população.

Contudo, essa medida foi desestimulada durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), principalmente pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles – cuja gestão ficou marcada por tentativas de afrouxar regras ambientais para “passar a boiada”, conforme ele mesmo afirmou em reunião ministerial em 2020.

A destruição de equipamentos também vem sendo questionada por leis estaduais, como em Roraima e Rondônia. Porém, os textos têm sido anulados quando analisados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

·         Helicóptero de R$ 10 milhões

As sete principais operações antigarimpo deste ano – Cayaripellos, Xapiri, Harpia, Ferro e Fogo III, Joker III, Acupary e Inopinus Flora – atuaram no rio Madeira, na bacia do rio Tapajós e nas Terras Indígenas (TIs) Vale do Javari e Yanomami. Esta última, palco de um dos piores desastres sanitários e socioambientais da história recente do país.

Juntas, essas fiscalizações apreenderam ou destruíram 262 balsas e dragas, que revolvem o leito dos rios para filtrá-lo na busca por minério. Cada máquina custa, em média, R$ 2,8 milhões, segundo o relatório “Abrindo o livro caixa do garimpo”, lançado em junho pelo Instituto Escolhas. Nos últimos anos, a organização vem realizando diversos estudos sobre a cadeia de produção mineral.

Também foram apreendidos ou destruídos 29 aviões e 2 helicópteros. Ao menos 20 aeronaves eram do modelo Cessna 182 Skylane, cujo preço médio gira em torno de R$ 1 milhão. Já entre os helicópteros havia um Sikorsky S-76, modelo utilizado por Donald Trump e vendido em média por R$ 10 milhões.

A lista de bens apreendidos ou destruídos pelo Ibama inclui ainda 105 retroescavadeiras ou tratores de esteira, um equipamento central na expansão do garimpo em terra firme na última década. Essa máquina pode custar mais de R$ 1 milhão quando nova, segundo Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidenta do Ibama.

“O alto investimento não é da população local, que trabalha nos garimpos, mas vive em uma região muito pobre, com o mais baixo IDH do país e dependente de apoio governamental”, reforça Araújo.

Nas operações, também chamou atenção dos fiscais a quantidade de aparelhos de comunicação via satélite apreendida – especificamente o Starlink, fabricado por empresa do bilionário Elon Musk e usado em larga escala na Amazônia.

“Apreendemos mais de 30 antenas que fazem com que os garimpeiros tenham uma comunicação melhor do que os fiscais em campo”, diz Schmitt.

·         Triplica destruição de equipamentos

O levantamento do Ibama indica uma retomada das fiscalizações ambientais na Amazônia neste ano e um aumento do número de equipamentos destruídos, após recuo ao longo do governo Bolsonaro.

Considerando todas as operações do órgão federal – incluindo as realizadas contra garimpo ilegal, pesca ilegal, exploração ilegal de madeira, entre outras –, o órgão assinou 422 termos de destruição de janeiro a agosto deste ano. Isso é quase o triplo do ocorrido nos quatro anos anteriores, quando a média foi de 148 nos oito primeiros meses do ano. Cada termo pode incluir uma ou mais máquinas afetadas.

Schmitt, do Ibama, defende a legitimidade do órgão em destruir os equipamentos e diz que é uma forma de descapitalizar os suspeitos rapidamente. “Quando um infrator é confrontado com a perda imediata de seus bens, isso tem um efeito muito mais poderoso no seu comportamento do que a ameaça de uma multa futura”, compara.

Com relação às apreensões, foram lavrados 1.660 termos de janeiro a agosto deste ano. Durante o governo Bolsonaro, a média foi de 894 nos oito primeiros meses de cada ano.

·         Do artesanal ao industrial

Historicamente, a prática de garimpo é vista no país como uma atividade individual e de pequena escala. Por essa razão, houve um afrouxamento da legislação para facilitar a extração de minério por meio desse sistema, segundo o recente estudo do Instituto Escolhas.

Uma das medidas mais criticadas foi a implementação da “presunção de boa fé”, aprovada por lei em 2013. Derrubada pelo STF em abril deste ano, a medida era vista como um estímulo ao mercado ilegal. Agora, quem compra ouro ilegal não poderá alegar desconhecimento sobre a origem do minério e passará a ser responsabilizado judicialmente, mesmo alegando “boa fé” na transação.

“Toda essa construção de garantias legais e facilidades permitiu que as atividades garimpeiras se estruturassem e capitalizassem”, diz o relatório do Escolhas.

O documento estima investimentos vultosos para explorar uma lavra. Para iniciar as operações de uma balsa de garimpo, por exemplo, o desembolso médio em máquinas, equipamentos e infraestrutura é de R$ 3,3 milhões.

As balsas nos rios da Amazônia podem gerar uma receita mensal estimada de R$ 1,1 milhão, segundo o estudo, com lucro de R$ 632 mil por mês. Ou seja, em seis meses, é possível recuperar o investimento inicial – considerando balsas grandes, com 18 garimpeiros e produção média de 3,75 kg de ouro por mês.

Já para a abertura de um garimpo de ouro em terra firme – o mais comum na bacia do Tapajós –, o investimento é de R$ 1,3 milhão, com uma estimativa de receita mensal de R$ 930 mil. Com escavadeira própria, o lucro por mês chega a R$ 343 mil por equipamento, considerando uma operação com 18 garimpeiros e produção mensal de 3 kg de ouro.

Graças às escavadeiras, popularizadas na última década, áreas antes garimpadas em um mês passaram a ser abertas em apenas uma semana, segundo o relatório do Escolhas.

A partir daí, a expansão dos garimpos foi rápida. Entre 2012 e 2022, a área total dos garimpos mais que dobrou, passando de 107 mil hectares para 263 mil ha, segundo estudo publicado este mês pelo MapBiomas. Desde 2020, a área de garimpos é maior que a da mineração industrial no país. Esta última é executada por grandes empresas e tem uma legislação mais rígida.

O avanço dos garimpos foi mais intenso sobre territórios indígenas e unidades de conservação. De 2018 a 2022, a área de garimpo ilegal nas TIs cresceu 265%, enquanto a área garimpada em áreas protegidas foi 190% maior.

A expansão do garimpo ilegal e o enfraquecimento da fiscalização nos últimos anos coincidiu com a maior presença do narcotráfico na Amazônia, afirma Roberto Magno, pesquisador do Laboratório de Geografia, Violência e Crime da Universidade Estadual do Pará (UEPA). Ao compartilhar aeronaves, pilotos e pistas de pouso, o tráfico de drogas e a exploração ilegal de ouro deram impulso aos chamados “narcogarimpos”, tema de investigação da Repórter Brasil.

“Nos últimos quatro anos houve um descontrole total dos órgãos de fiscalização na região”, avalia o pesquisador. “Nessa história de passar a boiada pela Amazônia, não passou só boiada, mas passou o PCC (Primeiro Comando da Capital, facção criminosa paulista), passou cocaína, passou skunk colombiano”, completa.

Apesar da retomada das ações contra o garimpo ilegal, a reestruturação do Estado na Amazônia será um processo lento, avalia o pesquisador Magno, da UEPA, pois os recursos de fiscalização são limitados frente a uma indústria bilionária.

 

Ø  Cortes da fiscalização ambiental estimularam explosão de narcogarimpos na Amazônia

 

Nas mãos do perito da Polícia Federal, uma barra de ouro de 1 quilo tem o tamanho de um telefone celular. “São mais de R$ 300 mil que cabem no bolso”, ilustra o especialista do Instituto de Criminalística da PF, em Brasília, que prefere não ser identificado.

A facilidade para vender ouro em qualquer parte do mundo, somada ao frágil controle desse mercado no Brasil, explica por que o minério é cada vez mais visado por organizações criminosas para a lavagem de dinheiro, principalmente do tráfico de drogas.

Na Amazônia, os cartéis aproveitaram as vistas grossas do governo de Jair Bolsonaro (PL) para o garimpo ilegal e investiram nos chamados “narcogarimpos” – modelo em que traficantes usam o dinheiro do comércio de drogas para financiar a extração de ouro e lavar milhões de reais.

A união do ouro com o pó estimula ainda outros crimes ambientais, como a extração ilegal de madeira e a grilagem (roubo) de terras públicas, atividades que também recebem recursos do tráfico. Essa associação acaba acelerando a destruição da floresta, como afirma recente relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

“Uma das tendências que estamos observando é um aumento não apenas dos crimes que afetam o meio ambiente, mas também da convergência de diversas atividades criminosas”, diz Hanny Cueva Beteta, chefe do programa global de crimes que afetam o meio ambiente da UNODC.

Na avaliação de Melina Risso, diretora de pesquisa do Instituto Igarapé, há um agravante: os órgãos de Estado de combate à lavagem de dinheiro ainda não têm os crimes ambientais como foco. “E isso se reflete na [devastação da] Amazônia”, complementa.

Entre 2018 e 2022, o desmatamento cresceu 53% na Amazônia, segundo o sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O período mais crítico se deu entre agosto de 2020 e julho de 2021, quando o bioma perdeu mais de 13 mil quilômetros quadrados de mata nativa, quase nove vezes a área da cidade de São Paulo.

Quem também sofre são as populações da região, já que o coquetel de crimes fortalece as facções criminosas e incrementa os índices de violência, segundo o UNODC. O relatório da organização cita que os municípios da Amazônia Legal registraram 29,6 homicídios por 100 mil habitantes em 2021, número superior à média do país: 23,9 homicídios.

·         Ouro e lavagem de dinheiro

O ouro se encaixa nessa rede de atividades ilegais pela dificuldade de rastrear a sua origem, afirma Hanny Beteta. É comum que o minério extraído de forma irregular se misture com o ouro legal nas refinarias. Assim, ele ganha o mercado internacional e pode ser adquirido por grandes marcas, como Google, Microsoft, Apple e Amazon, conforme revelou a Repórter Brasil em julho de 2022.

“O controle sobre a madeira e a carne é muito maior hoje do que sobre o ouro”, compara Marivaldo Pereira, secretário de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça.

Essa facilidade com que criminosos usam o ouro como “meio de troca” foi abordada em um estudo recente do Instituto Igarapé sobre lavagem de dinheiro na Amazônia. “Basta informar um grau de pureza diferente no minério e já é possível esconder [lavar] recursos com ouro”, explica Melina Risso.

Isso acontece porque, após extrair o minério do solo, o garimpeiro deve fazer um registro da produção na Agência Nacional de Mineração, recolher o imposto devido e informar o teor de ouro contido na amostra. Por ser comum a presença de outras substâncias junto com o ouro, o valor real de uma pepita é variável – o que abre brechas para a lavagem de dinheiro.

Em uma operação de exportação, por exemplo, se o dono de uma barra de 1 quilo de ouro comunicar à alfândega um índice de 99,9% de pureza, o produto pode ser comercializado por cerca de R$ 300 mil. Mas, se o teor de fato for de 66%, seu valor real não passa de R$ 200 mil.

Para rastrear a origem do ouro no Brasil, a Polícia Federal desenvolve há quatro anos um programa de coleta de amostras de diversas minas pelo país. O objetivo é comparar as características físico-químicas de cargas apreendidas com o banco de dados e, assim, identificar a origem do minério. A Ouroteca da PF já conta com mais de 400 amostras de pontos de exploração, seja industriais ou garimpeiros.

Essa técnica é utilizada pela PF em investigações de comércio de ouro ilegal, a exemplo da carga de 35 kg de ouro amazônico impedida de sair do Brasil rumo aos Estados Unidos em 2020, que até hoje é alvo de disputa judicial entre a União e uma empresa de Nova York, como revelou a Repórter Brasil.

Mesmo com esses avanços, ainda há gargalos na identificação da origem do ouro, especialmente se o material já tiver passado pela fase de refino, quando uma barra chega a 99,9% de pureza. Especialistas explicam que isso dificulta a análise de substâncias agregadas ao minério principal – são justamente essas substâncias que ajudam os peritos a identificar o local de extração do ouro.

·         Do desmonte ao controle

O fortalecimento do crime organizado na Amazônia é apontado como um legado da gestão Bolsonaro, que teria deixado a “porteira aberta” para a atuação desses grupos, opina Marivaldo Pereira, do Ministério da Justiça.

“Houve um desmonte dos órgãos de fiscalização em toda a estrutura do Estado”, diz Pereira, referindo-se ao corte de verbas para operações da Polícia Federal (PF), do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) e da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), ao longo da gestão do ex-presidente.

Desde 2014, o Ministério do Meio Ambiente e suas entidades vinculadas têm enfrentado constantes cortes orçamentários, e no governo Bolsonaro isso ficou ainda pior, segundo levantamento do Observatório do Clima. Em 2021, o governo reservou R$ 127 milhões para fiscalização ambiental e combate a incêndios, uma redução de 35% em relação ao gasto autorizado para essa finalidade em 2019.

Outro erro teria sido a aposta de Bolsonaro nas Forças Armadas para controlar a devastação da Amazônia. Com as operações Verde Brasil I e II, sob o comando do então vice-presidente Hamilton Mourão, o governo inflou gastos com o aparato militar, embora tenha reduzido as despesas com fiscalização ambiental. O resultado foi a queda nas autuações ambientais e recordes de desmatamento e queimadas. Mourão, que é atualmente senador (Republicanos/RS), foi procurado para comentar, mas não respondeu.

Para reverter o cenário, a PF criou em janeiro uma divisão focada em crimes ambientais, sobretudo para os ocorridos na Amazônia. De lá para cá, foram realizadas operações em terras indígenas em três estados da região.

“A mesma logística do narcotráfico é utilizada para o ouro, e o avião que leva o dinheiro de lavagem também pode trazer armas. Todos esses crimes têm um impacto no meio ambiente e também nas comunidades indígenas”, explica Humberto Freire, delegado responsável pelo novo departamento da PF.

Segundo Freire, a PF trabalha para montar ainda em 2023 um acordo de cooperação com oito países que fazem parte da Amazônia internacional. O objetivo é compartilhar informações sobre crimes ambientais, aos moldes do que a PF já faz com outras nações em relação a lavagem de dinheiro e tráfico internacional de drogas.

Já no Congresso, um projeto de lei apresentado pelo governo federal pretende diminuir os gargalos do controle do minério no país. A proposta prevê a criação de uma Guia de Transporte e Custódia de Ouro, documento similar ao que já existe para regular o transporte de gado.

O PL em tramitação na Câmara quer também acabar definitivamente com a chamada “presunção de boa-fé”. Na prática, se a lei for aprovada, quem compra ouro ilegal não poderá alegar desconhecimento sobre a origem do minério e passará a ser responsabilizado judicialmente. Em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia suspendido a boa-fé na aquisição de ouro.

Um dos autores do PL é Marivaldo Pereira. “Tem muita gente que ganha dinheiro em razão da facilidade que você tem hoje de atribuir origem lícita ao ouro que é extraído de forma ilícita. Isso é um ponto central do nosso trabalho”, diz o secretário.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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