DESMANTELANDO O BRASIL DE PAULO FREIRE
Em dezembro de
2022, Ana Paula de Lima estava finalizando os últimos trabalhos da escola, já
pensando nas festas de fim de ano, quando foi surpreendida por uma notícia: seu
colégio extinguiria, no ano seguinte, todas as turmas da Educação de Jovens e
Adultos (EJA) – modalidade de ensino voltada para pessoas que não puderam
estudar na idade adequada. É o caso de Lima, gaúcha de 38 anos que, na
adolescência, largou os estudos para trabalhar. Foi merendeira, faxineira,
comerciante. Nunca mais tinha pisado numa sala de aula, até que, no ano
passado, constatou que precisaria do diploma de ensino médio para prestar um
concurso público. Resolveu então se matricular numa escola estadual da cidade onde
mora, São Gabriel (RS), e vinha estudando com afinco. Até receber a notícia.
“Hoje em dia, todos os empregos pedem ensino médio
completo”, lamenta Lima, que está desempregada, procurando trabalho há quatro
meses. Com a extinção das turmas de EJA, o plano de conseguir um diploma foi
adiado indefinidamente. Ela tinha acabado de concluir o equivalente ao 1º ano
do ensino médio. Como o ensino de jovens e adultos é acelerado em relação ao
ensino básico, Lima só precisaria estudar por mais um ano para se formar.
Em São Gabriel, onde vivem 58 mil pessoas, agora há
somente uma escola pública com turmas de EJA, mas ela fica no Centro, distante
do bairro onde Lima mora. Como as aulas terminam às onze da noite, horário em
que não há mais ônibus circulando, a estudante teria de voltar a pé para casa
todos os dias. É um trajeto de 50 minutos. “Não tem como andar sozinha a pé
nesse horário, ainda mais sendo mulher. Por isso não quis ir para a outra
escola, fiquei com medo”, ela justifica. “E não sou só eu. Uns quantos colegas
também desistiram.”
A Educação de Jovens e Adultos lida,
historicamente, com altos índices de evasão. Grande parte dos alunos trabalha
durante o dia e, por isso, não consegue conciliar a rotina com os estudos. É
comum que, pela dificuldade de aprender ou por não ver propósito em estudar,
muitos desanimem no meio do caminho. Por isso, as turmas de EJA costumam
encolher ao longo do ano letivo. As barreiras são muitas. Mas mesmo aqueles que
conseguem superar tudo isso, como Lima, têm sido surpreendidos com problemas
estruturais da educação no Brasil.
O número de matrículas da Educação de Jovens e
Adultos é, hoje, o menor desde 2007. Naquele ano, havia 5 milhões de
brasileiros matriculados nessa modalidade. Em 2018, o número já tinha caído
para 3,5 milhões e, no ano passado, eram 2,7 milhões. A queda se deve, em boa
medida, ao fechamento de vagas, como aconteceu na cidade de São Gabriel. Nos
últimos dez anos, 28 mil turmas de EJA foram fechadas e 7,8 mil colégios
deixaram de oferecer ensino para jovens e adultos. Em 921 municípios (16% do
total), não há turmas de EJA.
A pandemia
influenciou na diminuição de matrículas. A evasão no ensino público aumentou de
modo geral nos anos de isolamento, e não foi diferente com a EJA. Mas, no caso
dos jovens e adultos, o que está por trás desse fenômeno é também um
esvaziamento de políticas públicas e, principalmente, cortes orçamentários. Um
dossiê elaborado por entidades civis, entre elas a Instituição Paulo Freire,
mostra que o investimento do governo federal na modalidade EJA, no ano passado,
equivale a 3% do que foi investido em 2012.
“Quando
observamos a rubrica de gastos específica para o apoio à alfabetização e
educação de jovens, verificamos que foram destinados 342 milhões de reais para
esse fim em 2012 e apenas 5,5 milhões em 2021”, mostram os autores do
documento, entre eles Maria Clara Di Pierro, professora da Faculdade de
Educação da USP que estuda a EJA há mais de trinta anos. A educação de jovens e
adultos recebe só 0,04% dos investimentos em educação no Brasil, embora
concentre 7% das matrículas da rede pública.
O corte de investimentos, agravado pelo apagão do
MEC nos anos de governo Bolsonaro, afetou todas as modalidades de educação. Mas
a área de jovens e adultos sentiu a corda apertar não só por esse motivo. A EJA
também é afetada por uma disparidade no “fator de ponderação” do Fundeb, o
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação. Esse fator determina, a partir de uma série de
critérios estabelecidos em lei, o volume de dinheiro destinado a cada etapa,
modalidade e tipo de estabelecimento de ensino. Decide, por exemplo, que o
investimento na educação em tempo integral deve ser mais alto do que na de
tempo parcial, já que é uma modalidade de ensino que envolve maiores
gastos.
A Educação de Jovens e Adultos tem o pior fator de
ponderação dentre todas as etapas de ensino, sendo a única com índice abaixo de
1 (a escala vai de 0,8 a 1,95). A matrícula de um aluno da EJA vale 20% menos
que a de um aluno das séries iniciais. Isso significa que, se uma escola recebe
do Estado 100 reais por aluno das séries iniciais, recebe só 80 reais por aluno
da EJA. O problema é que ambos representam, para o colégio, o mesmo gasto (com
merenda, professores etc). Por isso, muitas secretarias de educação concluem
que, do ponto de vista financeiro, não vale a pena manter turmas para o público
da EJA.
“Isso acaba
sendo um desincentivo”, explica Maria Clara Di Pierro. “Para um secretário de
educação manter uma classe de EJA, ele tem os mesmos gastos que para manter uma
turma de ensino médio. Mas o valor atribuído pelo Fundeb é menor.” Roberto
Catelli, da ONG Ação Educativa, corrobora esse diagnóstico. “Infelizmente o
gestor público muitas vezes entende a educação de adultos muito mais como ônus
do que como bônus.”
O descaso com a
Educação de Jovens e Adultos tem um gosto amargo no Brasil, sobretudo pelo fato
de que, ao menos no universo acadêmico, o país é referência mundial no assunto.
Isso se deve ao trabalho de Paulo Freire, um dos autores mais citados na
academia até hoje, criador de um método inovador para a alfabetização de
adultos, replicado mundo afora nas últimas décadas. Defensor do saber popular,
Freire primava por um ensino baseado na relação horizontal entre professor e
aluno, no qual um aprende com o outro. O estudante se familiariza com o
alfabeto usando palavras ligadas ao seu cotidiano, ao ambiente em que vive, à
sua rotina de trabalho. Na década de 1960, Freire coordenou um projeto que
alfabetizou, em apenas 45 dias, cerca de trezentos jovens e adultos que
trabalhavam com o corte de cana-de-açúcar em Angicos, no Rio Grande do Norte.
Em 2022, segundo o IBGE, 5,6% dos brasileiros com
15 anos ou mais eram analfabetos, patamar que nos coloca atrás de todos os grandes
países da América Latina (no Chile, a taxa é de 3%; na Argentina e no Uruguai,
só 2%). Há 9,6 milhões de brasileiros que não sabem ler ou escrever. O
corte de investimentos em EJA colabora para que a situação não mude. Entre os
brasileiros com 40 anos ou mais, 10% são analfabetos. Nas séries iniciais da
Educação de Jovens e Adultos, que correspondem aos primeiros anos do ensino
fundamental – e, portanto, às etapas iniciais da alfabetização –, a mediana de
idade dos alunos é 46 anos.
Estima-se que há uma demanda potencial de 65
milhões de estudantes para a EJA no Brasil, número muito maior que o de
matriculados atualmente (2,7 milhões). São pessoas que não concluíram o ensino
fundamental ou médio na idade adequada ou nunca tiveram acesso à escola. “Para
motivar uma pessoa a participar de um programa educativo, ela tem que ter um
horizonte de mudança pessoal ou coletiva que a motive”, explica a professora Di
Pierro. “A cultura do direito à educação ao longo da vida ainda está por ser
construída em nossa sociedade.”
Normalmente, ao fechar turmas de EJA, o poder
público alega que não há demanda. Cria-se, com isso, uma dinâmica que se
retroalimenta. “Quanto mais escolas são fechadas, mais possíveis estudantes
deixam de se matricular”, diz Roberto Catelli, da Ação Educativa. “A própria
lei brasileira prevê que é necessária uma busca ativa. Não é só a pessoa que
tem que ir atrás da escola. A escola também tem que ir atrás das pessoas.”
A professora Di Pierro e outros pesquisadores
enxergam no Novo Ensino Médio um problema extra. A normativa que entrou em
vigor no ano passado permite que até 80% das aulas de EJA sejam feitas à
distância, o que dificulta que os alunos mais pobres acompanhem o conteúdo. “É
uma unanimidade que o educando típico da EJA, com baixo grau de letramento e
escolaridade irregular, é pobre e não tem acesso nem familiaridade com as
tecnologias, muito menos autonomia para aprendizagem. Então, os arranjos que a
gente tem visto são no sentido de empobrecimento, de fazer uma educação pobre
para os pobres”, argumenta a professora da USP. Ela defende que o governo deve
oferecer mais bolsas de estudo para viabilizar a permanência de um número maior
de alunos na escola.
Depois de anos de
apagão, o Ministério da Educação agora vem tentando recuperar a política de
incentivo à Educação de Jovens e Adultos. Sob a gestão de Camilo Santana, foi
recriada a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (Secadi), extinta no governo Bolsonaro, assim como a Comissão Nacional
de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (Cnaeja). O professor Roberto
Catelli, da ONG Ação Educativa, comemora o que considera ser uma “reordenação
institucional”. No entanto, o orçamento ainda é diminuto, e há dificuldades em
recompor as equipes de trabalho.
“Agora estão reabrindo os canais de diálogo com a
sociedade civil e com os estados e os municípios. Há uma retomada lenta”,
atesta Maria Clara Di Pierro, da USP. A professora aponta que, além da
necessidade de ampliar as turmas e as matrículas de EJA, há problemas
estruturais que precisam ser resolvidos. Um deles é a baixa especialização dos
professores que lecionam nessa modalidade. “Os cursos para educação de jovens e
adultos são inadequados, parametrados pela educação de crianças e
adolescentes”, afirma Di Pierro. “A educação de adultos, embora tenha sido
reconhecida como direito no Brasil, ainda não tem uma normativa obrigatória
para os cursos de pedagogia e licenciaturas.
André Chagas, diretor da escola onde Ana Paula de
Lima estudava, em São Gabriel (RS), diz que a decisão de fechar as turmas de
jovens e adultos veio da Secretaria Estadual de Educação. A justificativa? O
baixo número de matrículas. O diretor se opôs à decisão, junto com outros
moradores da cidade. “Fomos até a secretaria, pedimos apoio à Câmara de
Vereadores e entramos com recurso na Promotoria Regional da Educação de Santa
Maria”, ele conta. Por sua iniciativa, a escola fez circular pelo município uma
lista de interesse para provar que havia potenciais estudantes para a EJA. Em
torno de 120 pessoas manifestaram interesse. “A demanda existe”, conclui
Chagas. “O desafio é manter os alunos na escola com a matrícula ativa.”
No Rio Grande do Sul, a quantidade de
estabelecimentos que oferecem EJA diminuiu 19% em dez anos. Eram 1 234, caíram
para 997. A única escola pública de São Gabriel que ainda oferece EJA corre o
risco de ser municipalizada – isto é, deixar de ser gerida pelo estado e passar
para as mãos da prefeitura –, o que vem causando preocupação entre os
educadores, que temem um corte no número de turmas voltadas para jovens e
adultos.
Chagas deposita suas esperanças na possibilidade de
que, depois dos protestos, a secretaria estadual de educação se solidarize e
retome a EJA em sua escola. Não houve, por enquanto, uma sinalização nesse
sentido. Ana Paula de Lima não estuda desde dezembro.
Fonte: Revista Piauí
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