Da escola neoliberal à educação democrática. O papel da filosofia na
revolução democrática da educação
“É hora de nos perguntarmos como a escola e a
universidade vão formar os indivíduos que amanhã serão capazes de garantir o
controle do seu destino e a responsabilidade pelo mundo, uma educação que abra
um futuro desejável e devolva uma terra habitável. Podemos enunciar o sentido
geral da transformação desejável: avançar para uma sociedade que, em todas as
áreas, amplie as capacidades políticas dos seus membros, garanta a sua
igualdade social e o respeito pelos ambientes de vida”. A reflexão é de
Christian Laval.
O texto a seguir é resultado de uma conferência que
foi apresentada no dia 23 de maio de 2023 num colóquio online sobre “A
eliminação da filosofia e a abordagem por competências. Experiências mundo
afora”, que foi organizado pelo Grupo de Pesquisa Filosófica da Universidade
Nacional Mayor de San Marcos do Peru.
Christian Laval é professor emérito de Sociologia,
Laboratório Sophiapol, Universidade Paris Nanterre.
>>>> Eis o artigo.
·
Introdução
Começarei com uma reflexão bastante fundamental de
Kant sobre a educação:
“Aqui está
um princípio da arte de educar que os homens, especialmente aqueles que têm a
tarefa de planejar a educação, devem manter vivo na mente: não devemos educar
as crianças de acordo com o estado atual da espécie humana, mas de acordo com o
seu estado futuro, possível e melhor (Kinder sollen nicht dem gegenwärtigen,
sondern dem zukünftig möglich bessern Zustand des menschlichen Geschlechts), ou
seja, de acordo com a Ideia de humanidade e seu destino total. Este princípio é
de grande importância. Normalmente, os pais educam os filhos apenas para
adaptá-los ao mundo atual, mesmo que este esteja corrompido. Pelo contrário,
deveriam dar-lhes uma educação melhor, para que um estado melhor possa emergir
no futuro”.
Vivemos tempos particularmente sombrios para a
democracia. Não apenas nos países totalitários ou sujeitos a regimes ou
governos autoritários. Mesmo nas antigas democracias liberais e
representativas, as liberdades públicas são postas em questão. A causa mais
profunda desta crise bastante generalizada da democracia contém todas as formas
de miséria social, de enfraquecimento político e de crescimento das
desigualdades na fase neoliberal da organização política e econômica.
Para os educadores, os tempos são, portanto,
particularmente difíceis. Não só pela sua situação econômica, mas também por
causa das pressões políticas que sofrem, das denúncias injustificadas, por
vezes da violência ou da repressão do Estado.
Estes tempos sombrios exigem uma forte reação de
todos os que acreditam na democracia, na verdadeira democracia, aquela que John
Dewey nos ensinou a compreender como democracia radical. Ele se preocupou em
refazer por todos os meios o vínculo entre educação e democracia e entre
filosofia, educação e democracia. Talvez possamos pensar que refletir sobre a
educação democrática nestes tempos sombrios para a democracia seja um curioso
paradoxo ou uma tentativa contra o tempo.
A crítica do que existe ou a crítica das reformas
de inspiração neoliberal são necessárias mas insuficientes, porque são
reativas, defensivas. Contudo, é aconselhável manter o rumo do futuro, manter
uma lógica de transformação e revolução. Nada é mais importante do que ser
propositivo para não apoiar a agenda dos inimigos da democracia. E porque se
trata de preparar o futuro das novas gerações, como pensava Kant.
Ações propositivas, mas em que direção? Para
repensar e refundar a educação sobre bases realmente democráticas. E para isso
devemos refazer coletivamente, mas de uma nova forma, o que John Dewey fez há
pouco mais de um século quando escreveu este monumento do pensamento, que
continua a ser a sua obra-prima, Democracia e educação, de 1916.
·
Revolução escolar
A revolução escolar na qual devemos pensar agora é
um componente de uma revolução democrática mais geral. Precisamos de uma
revolução democrática e não apenas de uma defesa das instituições existentes. E
esta revolução, sabemos hoje que deve ser democrática, social e ecológica. A
magnitude das desigualdades comparáveis às do final do século XIX, a total
irracionalidade do governo e das sociedades que visam o lucro e a concorrência,
o colapso do clima e da biodiversidade, todos estes fenômenos estão
interligados. Dadas as ameaças que pesam sobre os ecossistemas dos quais os
seres humanos fazem parte, não são apenas os modos de consumir ou de trabalhar
que devem ser mudados, mas também os valores coletivos, a forma das relações
sociais e das instituições políticas.
É, portanto, na perspectiva desta ruptura que
devemos considerar o conteúdo da indispensável revolução escolar. Diria mesmo
que é no pós-neoliberalismo, no pós-capitalismo que devemos imaginar a educação
democrática.
É hora de nos perguntarmos como a escola e a
universidade vão formar indivíduos que amanhã serão capazes de garantir o
controle do seu destino e a responsabilidade pelo mundo, uma educação que abra
um futuro desejável e devolva uma terra habitável.
Podemos enunciar o sentido geral da transformação
desejável: avançar para uma sociedade que, em todas as áreas, amplie as
capacidades políticas dos seus membros, garanta a sua igualdade social e o
respeito pelos ambientes de vida. Imaginar o que deveria ser a instituição de
ensino numa democracia social e ecológica do século XXI, esta é a tarefa
coletiva para a qual aqui tentamos contribuir.
·
Criticar os objetivos da educação neoliberal
O primeiro grande problema para nós hoje é o
objetivo social e político da educação. Hoje o propósito é a economia. Esta é a
razão última da educação neoliberal. E todos os cálculos em termos de
investimento e lucro existem para dar sustentação a este sentido central da
educação hoje: o objetivo neoliberal da educação é a adaptação dos sistemas
educativos aos imperativos econômicos e, mais precisamente, à lógica da
economia de mercado.
O neoliberalismo escolar é o primado da economia,
segundo um discurso falsamente democrático, na realidade ao mesmo tempo
utilitário e malthusiano. O conhecimento seria demasiado abstrato e distante da
“vida real” (ou seja, da vida profissional), seria adequado centrar a
aprendizagem na aquisição das competências úteis para a sociedade, tanto quanto
possível em relação às empresas. Ou seja, a concepção utilitarista dos estudos
e o objetivo da empregabilidade seriam o caminho democrático por excelência. Um
novo malthusianismo escolar vergonhoso impôs-se gradualmente, o das
“competências” e dos “fundamentos básicos”, que está ligado ao produtivismo
dominante.
Na verdade, no discurso oficial sobre educação
trata-se cada vez menos do “espírito crítico” ou da “educação cidadã” e cada
vez mais do “capital humano” e da “cultura empresarial”, das “competências”,
dos “skills “. A educação é cada vez mais considerada um bem em grande parte
privado, sujeito a um discurso econômico padronizado; o aluno e o estudante são
vistos como “recursos humanos”, como pura e simples força de trabalho. O
objetivo da eficiência econômica triunfa sobre o da emancipação humana. Em
suma, a escola, assim como o hospital e a maioria dos serviços públicos, está
sujeita à lógica invasiva da rentabilidade e da competitividade a que se têm
dedicado líderes políticos tanto de direita como de esquerda.
Desde o final do último terço do século XX, a
problemática neoliberal foi gradualmente imposta no campo escolar em todo o
mundo, de acordo com “uma nova ordem educacional mundial”. Isto representou uma
mudança muito importante. É claro que os objetivos econômicos nunca estiveram
completamente ausentes nos períodos anteriores, mas durante muito tempo a
educação teve como finalidade a construção do Estado-nação. O objetivo era
político, e mais ou menos democrático, dependendo do caso. Criamos a nação
através da escola, reproduzindo para boa parte da sociedade, segundo um
dualismo social muito firme, a escola das elites e a escola das massas.
A inflexão neoliberal no final do século XX
corresponde, portanto, a um momento muito particular: o próprio Estado está
envolvido na concorrência econômica generalizada que caracteriza a globalização
econômica. E é por isso que o propósito da educação muda em benefício da
economia. Numa palavra, a produção do capital humano torna-se mais importante
que a formação do cidadão nacional. Daí o caráter central das “competências”.
Na realidade, na maioria dos casos, estamos diante
de uma fórmula de compromisso, o que explica a importância que vão ganhando as
dimensões econômicas (como a primazia das “competências”) e as dimensões
patrimoniais e nacionais, mesmo as dimensões nacionalistas e autoritárias, na
medida em que o neoliberalismo oferece uma face cada vez mais estatista,
autoritária e brutal.
A transformação desta escola, em grande parte
sujeita a imperativos econômicos, é acompanhada por uma certa despolitização da
questão escolar, por uma tecnicização dos problemas e das “soluções”.
Precisamos, portanto, repolitizar a questão dos
objetivos da escola e, por isso, ir na contracorrente de todos os discursos que
querem abstrair a escola da sociedade e querem ver nas crises da instituição
uma questão de métodos e conteúdos pedagógicos, incluindo a gestão burocrática.
Mas é igualmente aconselhável opor-nos à repolitização reacionária a que
assistimos hoje. Um discurso conservador gostaria de obstruir a crise da escola
com métodos autoritários, referências patrióticas, uma disciplina “antiquada”
por vezes combinada com um cientificismo “neuronal”, como temos visto um pouco
em todas as partes do mundo.
·
Democracia social, ecológica e cosmopolita
A pergunta mais importante, e que não é nova, e que
inspirou numerosos pensadores educacionais, especialmente muitos socialistas
desde o século XIX, é saber o que é educar para a democracia.
Mas o que é hoje uma democracia radical e o que ela
exige da educação? A democracia designa para nós a característica de uma
sociedade em que o princípio do autogoverno se estende a todas as instituições
territoriais e produtivas, a todas as atividades coletivas, sejam elas
econômicas, culturais, associativas ou educativas. A democracia entendida desta
forma pressupõe a capacidade dos cidadãos de refletirem sobre as instituições
desejáveis, seu poder coletivo para mudá-las se já não lhes convierem. Numa
palavra, a democracia é para nós sinônimo do poder instituidor dos cidadãos e
dos produtores, o que não dispensa a auto-reflexividade em todas as
instituições da sociedade, sejam elas políticas ou econômicas.
Compreendemos então o papel central da educação
numa sociedade que faz do autogoverno o seu princípio geral. Não deveria apenas
“socializar” os jovens, como diz a sociologia, mas também deveria dar-lhes o
desejo e os meios para participarem do desenvolvimento de regras coletivas,
para se envolverem na discussão e na tomada de decisões comuns. Uma sociedade
verdadeiramente democrática é específica na medida em que a instituição social
e política é o reflexo consciente fruto de um coletivo instituinte.
A tarefa da educação democrática é, portanto, não
só fazer com que cada indivíduo se sinta membro de um grupo em relação ao qual
tem obrigações, mas também ensiná-lo a tornar-se um participante ativo na
determinação coletiva das regras de vida em comum e, de forma mais geral, um
participante ativo da vida social e cultural, da sua renovação e da sua
criatividade. E podemos acrescentar: um ser plenamente responsável pelo mundo
em que vai viver.
A grande questão prática é saber qual deveria ser
“a experiência democrática” na escola. Fazer a experiência da democracia na
escola significa vivenciar a inteligência coletiva em relação ao agir em
conjunto, aprender a questionar os conhecimentos e o mundo como um todo e abrir
caminho para suas transformações. Numa palavra, deve ajudar na formação de
“mentalidades democráticas”, segundo a expressão de Paulo Freire.
A originalidade de uma educação democrática,
portanto, é permitir que os estudantes experimentem a autonomia individual e o
autogoverno coletivo. Não se trata de uma questão de doutrina, mas de prática
pedagógica e de organização institucional: “todo processo de educação que não
visa a desenvolver ao máximo a atividade própria dos alunos é um mau processo”,
indica com razão Castoriadis.
·
A educação como bem comum
Chegou a hora de passar das mobilizações defensivas
para ações propositivas. Os movimentos de resistência às reformas neoliberais
no campo escolar e universitário, numerosos em todo o mundo há pelo menos duas
décadas, também estabeleceram o princípio básico de uma alternativa à
privatização e à submissão aos imperativos capitalistas: o conhecimento é
comum, é não deve ser reservado a uma elite, nem deve ser objeto de qualquer
forma de “cercamento” por dinheiro ou lugar de residência.
Para além das razões iniciais das mobilizações, o
sentido de todos estes movimentos assenta no “princípio dos princípios” segundo
o qual “a educação é um bem comum, não uma mercadoria”.
A pergunta é precisamente saber o que implica tal exigência.
Quais são as suas condições e as suas implicações concretas nos conteúdos
escolares, na pedagogia e na arquitetura institucional?
Primeiro, como devemos entender este tipo de
proposição que ouvimos em todas as partes do mundo: a educação como um “bem
comum”. Fazer da educação, da cultura ou da saúde, e de outras áreas da vida
humana e social, um “bem comum” refere-se a uma visão política diretamente
contrária à concepção de propriedade dominante nestas áreas e nestas
atividades, dimensão que nunca é abarcada quando falamos de “ capital humano”
ou “capital de saúde”. Dizer que a educação é um “bem comum”, ou seja, que não
pode ser apropriada, que nenhum indivíduo, nenhum grupo, nenhum Estado pode
reivindicar para si ou tornar-se seu proprietário.
A educação pertence a todos por princípio. Mas este
“bem comum” educativo só pode encontrar consistência numa instituição com
características muito particulares. Para que a educação seja verdadeiramente um
“bem comum”, a própria instituição educativa deve ser concebida como um comum,
isto é, como um espaço institucional que seja ao mesmo tempo autogovernado
pelos coparticipantes da atividade educativa, e governado pelo direito de uso
exercido por uma coletividade sobre os recursos educacionais produzidos, mantidos
e disponibilizados por esta instituição.
O primeiro tema refere-se à condição primordial da
educação democrática: a defesa da liberdade de pensamento, cuja tradução
institucional é chamada de liberdades acadêmicas. A escola deve ser totalmente
emancipada dos poderes que até agora procuraram subjugá-la e
instrumentalizá-la, sejam eles religiões, governos ou empresas capitalistas.
Neste sentido, toda a educação, desde o jardim de infância até a universidade,
deve ser regida pela regra absoluta da liberdade da mente, condição de todo o
conhecimento racional, e para isso deve estar integrada numa instituição
independente dos poderes que chamamos de Universidade Democrática.
A educação democrática exige a mais completa
liberdade de pensamento no que diz respeito aos poderes organizados da
sociedade, sejam estes religiosos, político-partidários, econômicos,
ideológicos e estatais. A educação democrática é acima de tudo uma educação
livre. Esta é a condição absoluta. Sua primeira máxima é herdada do Iluminismo:
“Sapere aude” [Ouse conhecer], ouse usar o seu entendimento, como pede Kant no
ensaio O que é o Iluminismo?, de 1784. A proibição do uso da razão equivale à
privação da liberdade pela submissão às mentiras, superstições e, mais
geralmente, à “direção de outros”.
A educação livre deve ser assim com relação à
religião, mas também aos governos e às empresas.
A “economia do conhecimento” introduziu não mais
liberdade, mas mais controle em nome da finalização produtiva das atividades do
conhecimento. Quanto mais a educação foi integrada na lógica econômica, menos
liberdade os professores e pesquisadores tiveram para escolher os seus temas de
pesquisa e o conteúdo do seu ensino. As condições de trabalho no domínio do
ensino e as suas liberdades deterioraram-se pouco a pouco à medida que foi
imposta uma “gestão” de tipo empresarial, o que burocratizou consideravelmente
a sua profissão. O prolongamento do tempo de trabalho, o aumento e a
multiplicação de tarefas, a recorrente pressão da avaliação e da concorrência entre
estabelecimentos e, no ensino superior, laboratórios para a obtenção de
créditos reduziram o que deveria ser a condição fundamental de uma profissão do
conhecimento, a verdadeira autonomia.
Uma lição deve ser tirada para uma escola
verdadeiramente livre: os conteúdos do ensino pressupõem sempre um
distanciamento justo da realidade econômica e social e nunca deve responder aos
imperativos da eficácia imediata. Condorcet apresentou o princípio: “o objetivo
da educação não pode mais ser consagrar as opiniões estabelecidas, mas, pelo
contrário, submetê-las ao livre exame das sucessivas gerações, cada vez mais
ilustradas”. Da mesma forma, a escola deve ser concebida como uma instituição
de contrapoder diante de todos os poderes sociais, econômicos, religiosos ou
políticos dominantes que procuram impor à sociedade os seus interesses e as
suas ficções.
·
O papel da filosofia no ensino
Dois papéis: promover a liberdade de pensamento e
redefinir uma nova coerência antropológica.
O primeiro papel da filosofia é preservar a
independência da instituição educacional das intrusões dos poderes.
Contradiz-se a ideia republicana em termos de educação ao identificá-la com o
seu controle pelo Estado. Condorcet acreditava na legitimidade das sociedades
cultas, as únicas, na sua opinião, capazes de adaptar a educação às “verdades
mais prováveis” de uma época: “É a única forma de garantir que a educação seja
regulada pelo sucessivo progresso das ilustrações, e não no interesse das
classes poderosas da sociedade e privá-las da esperança de obter do preconceito
o que a lei lhes nega”.
Kant tinha uma ideia republicana da universidade.
Na introdução à primeira secção de Conflito das Faculdades (1794), Kant define
a Universidade como “uma espécie de república culta” (das gemeine Wesen)
composta por todos os “professores públicos” nomeados nos diferentes setores
científicos. Esta república deveria possuir a sua autonomia porque “apenas os
eruditos podem julgar os eruditos como tais”. A universidade formaria assim um
“corpo de eruditos” ao lado do qual poderiam existir “eruditos livres” que não
pertencem a esse corpo, mas que constituem certas corporações livres, chamadas
academias ou sociedades científicas, ou que vivem no “estado de natureza do
conhecimento” e lidam como entusiastas da expansão ou disseminação do
conhecimento.
Lembremos, para além das características de uma
época passada, esta ideia muito importante: a educação faz parte de um espaço
institucional que é próprio, que tem suas regras, seus valores e sua ética.
Foi, na minha opinião, Jacques Derrida quem melhor dimensionou esta afirmação
da liberdade de pensamento que já encontramos de forma limitada em Kant ou
Condorcet.
Para Derrida, todo professor revela em sua
profissão um espaço de liberdade onde tudo pode ser questionado e discutido
incondicionalmente. É o que ele chama de “universidade incondicional”: “esta
universidade exige e deve ser reconhecida em princípio, além do que se chama de
liberdade acadêmica, uma liberdade incondicional de questionamento e de
proposição, incluindo, além disso, o direito de dizer publicamente tudo o que
exige busca, conhecimento e reflexão da verdade”. Para Derrida, esta
universidade deveria ser, de agora em diante, através das práticas próprias dos
seus membros, o indispensável “lugar de resistência crítica – e mais do que
crítica – contra todos os poderes dogmáticos e injustos de apropriação”.
Esta resistência incondicional é suficiente para
definir o espírito da Universidade democrática se lhe somarmos duas dimensões:
a universalidade do seu acesso, não apenas às gerações mais jovens, mas a todos
os cidadãos que desejam dedicar-se à aprendizagem e à pesquisa; e o seu
carácter cosmopolita, isto é, a sua abertura à cooperação de todas as nações e
à livre circulação global do conhecimento.
A universidade assim concebida é um lugar de
oposição, no sentido que Derrida dá a esta palavra: “incondicional, tal
resistência poderia opor a universidade a um grande número de poderes: aos
poderes do Estado (e, portanto, aos poderes políticos do Estado-nação e sua
fantasia de soberania indivisível: em que a universidade seria não apenas
cosmopolita mas universal, estendendo-se assim para além da cidadania global e
do Estado-nação em geral), aos poderes econômicos (às concentrações de capital
nacional e internacional), aos meios de comunicação, aos poderes ideológicos,
religiosos e culturais, etc., em suma, a todos os poderes que limitam a
democracia por vir”.
O direito ao conhecimento e o direito político de
controlar os governantes, de deliberar, de decidir, de agir em conjunto estão
vinculados entre si. Esta universidade democrática, que deve ser protegida como
instituição, mas alargada em princípio a toda a sociedade, deve, em última
análise, andar de mãos dadas com a democracia direta e real, dando a todos os
meios para julgar, deliberar, propor e decidir. Não há razão para limitar o
princípio da liberdade incondicional apenas ao ensino superior, ou ao ensino da
filosofia no último ano do ensino médio. É toda a escola que deve usufruir
desta liberdade de questionamento.
O segundo papel da filosofia é contribuir para dar
uma nova coerência antropológica à educação.
A escola hoje é ordenada por duas lógicas mais
complementares do que contraditórias: o neoliberalismo e o antigo nacionalismo
autoritário. Como a democracia poderia dar nova coerência aos conhecimentos
ensinados? Que “princípio educativo”, para retomar a expressão de Gramsci,
deveria reger a educação? Os modelos religiosos, positivistas e produtivistas
do homem, todas estas figuras antropológicas, não terão mais qualquer
relevância numa sociedade democrática e ecológica. O desafio da democracia
futura é vincular o conhecimento dos homens na sociedade e os processos
naturais. Resumindo, o chamado “Antropoceno”, e o que alguns chamam mais
precisamente de “Capitaloceno”, requer uma nova coerência de conhecimentos na
era das catástrofes climáticas engendradas pelo capitalismo neoliberal.
A transformação deve levar ao “espírito” da
educação: modificar a imaginação industrialista e produtivista que fez as
pessoas acreditarem que os homens poderiam ser os “senhores e dominadores da
natureza” sem consequências para os ecossistemas. A situação atual convida a
uma nova “antropologia” que daria sustentação à articulação fundamentada da
filosofia, da história-geografia, das ciências sociais e das ciências da vida e
da terra. A grande novidade dessa antropologia seria a importância que daria ao
estudo objetivo dos diferentes sistemas sociais, culturais e econômicos que
compuseram a história humana até os dias de hoje, abrindo espaço para as
diversas relações, de acordo com as culturas e crenças, das sociedades com os
ambientes naturais.
Ela faria mesmo dessas relações das sociedades com
os seus ambientes naturais o novo fio condutor da educação, rompendo com as concepções
ocidentais tradicionais baseadas no domínio tecnocientífico da natureza
concebida como um reservatório de recursos disponíveis, uma visão hoje no
mínimo inadequada às questões que surgirão para as novas gerações. Não estamos
propondo aqui acrescentar “uma componente ecológica” aos ensinamentos
existentes, mas antes reconhecer e questionar a especificidade da “ontologia”
ocidental, para retomar o conceito de Philippe Descola, na sua ligação com a
organização econômica capitalista, para compreender as consequências de sua
expansão no planeta durante cinco séculos.
Toda a consciência histórica é afetada pelo
capitaloceno porque a finitude é a partir de agora a marca no lugar e no espaço
da eliminação do desenvolvimento das forças produtivas e da extensão dos
mercados, e são todos os conhecimentos que foram interrompidos pouco a pouco.
Agora, deste ponto de vista, já não é possível considerar a “natureza” externa
como se fosse composta apenas por processos totalmente independentes da
história humana. É neste espírito que a ligação entre as partes separadas da
cultura, entre as ciências naturais e as ciências do homem, poderia ser
reconsiderada, e é a esta recomposição do conhecimento que a filosofia no
ensino poderia ser dedicada.
Fonte: Por Christian Laval, no Rebelión - tradução do
Cepat, para IHU
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