sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Como desertores russos escapam da guerra na Ucrânia

Enquanto Munique ferve em clima de Oktoberfest, encontramos "Vasily" num parque tranquilo nos arredores da cidade. Na Alemanha há quase um mês, foi um dos primeiros desertores russos a entrarem legalmente no país.

Ainda que se sinta seguro na Alemanha, o jovem diz temer pela família deixada para trás – motivo pelo qual prefere esconder seu nome verdadeiro. Na Rússia, onde é procurado pelas autoridades, ele pode pegar até 15 anos de prisão por deserção.

·         "Não luto contra meu próprio povo"

Vasily é artilheiro. Ele estudou na academia militar e serviu o Exército por vários anos. Mas há muito decepcionado com a instituição, ele tentou abandonar as Forças Armadas – sempre em vão. Até que a Rússia atacou a Ucrânia e ele recebeu ordens para ir para o front.

"Eles disseram: 'Prepare-se, já estamos quase sem homens'", recorda. Mas ele se recusou: "Sou de origem ucraniana", disse na ocasião ao seu superior. "Meu pai é ucraniano, não vou lutar contra meu próprio povo."

Apesar de todas as ameaças do superior, Vasily não foi para o front. Mas tampouco foi exonerado de sua unidade. Assim como ele, outros desertores também relataram à DW sobre a dificuldade em deixar o Exército mesmo antes de 21 de setembro de 2022, quando o presidente Vladimir Putin anunciou uma mobilização parcial. Depois disso, dizem, tornou-se completamente impossível. As penalidades por deixar o quartel sem permissão e por deserção foram aumentadas para dez e 15 anos de prisão, respectivamente.

"Não tinha saída. Recebi uma ligação do comando e eles disseram: 'Ou você vai para a guerra ou abriremos um processo criminal contra você. Então você vai para trás das grades, de onde será enviado para a guerra do mesmo jeito.'" Vasily decidiu então fugir da Rússia.

·         Viktor: "Era simplesmente impossível recusar"

De acordo com estimativas da organização Go by the Forest, que ajuda russos que não querem ser convocados para a guerra, mais de 500 desertores deixaram o país desde que a mobilização foi anunciada. E esses são apenas os que procuraram os ativistas de direitos humanos. O número real é provavelmente muito maior.

A maioria desses homens foge para o Cazaquistão ou para a Armênia. Um deles é o oficial de comunicações "Viktor", que também prefere não revelar seu nome verdadeiro. Ao contrário de Vasily, no entanto, ele acabou participando das operações militares russas contra a Ucrânia.

Por meio de uma chamada de vídeo a partir da capital do Cazaquistão, Astana, Viktor afirma que também tentou sair do Exército. Mas em fevereiro de 2022 foi chamado para participar de um exercício na península ucraniana da Crimeia, anexada pela Rússia. Logo em seguida, em 24 de fevereiro, sua unidade participaria da invasão russa.

"Eles nos acordaram às 5h da manhã, nos alinharam em colunas e disseram: 'Vamos lá!' Mas isso sem dizer para onde estávamos indo. Naquele momento, era simplesmente impossível recusar. Se você corresse para frente, levava tiro dos ucranianos, e se corresse para trás, era pego pelo próprio povo", lembra Viktor.

Ele mesmo esteve em território ucraniano até meados de 2022. "Vi prisioneiros de guerra executados e inclusive as ordens [para tal] do comandante da unidade." Mas garante: "No nosso país não houve nada parecido com o que aconteceu em Bucha." Viktor afirma ter tomado conhecimento dos massacres de civis na Ucrânia pela primeira vez no fim de abril de 2022, quando conseguiu acessar a Internet. "Depois disso, repensei muita coisa."

·         Yevgeny: "Estou pronto para ser julgado"

Yevgeny, oficial de uma unidade especial, também foi enviado à fronteira com a Ucrânia em fevereiro de 2022 para realização de exercícios militares. De origem pobre, o jovem havia recebido do Exército a promessa de ascensão social.

"Esperávamos e acreditávamos que não haveria guerra", diz, ao lembrar daquele fatídico fevereiro de 2022. "Achávamos que Putin era um assassino e ladrão, mas não um fanático que iniciaria uma guerra. Mas eis que as coisas se revelaram diferentes."

Em 24 de fevereiro, sua unidade cruzou a fronteira com a Ucrânia e chegou até Brovary, perto de Kiev. "Para nós, foi tudo muito triste. Em 30 de março quase toda uma companhia morreu", diz, em alusão aos combates. "Quando estávamos perto de Kiev, não fizemos prisioneiros pois não havia como levá-los para a Rússia, então eles foram mortos," Mas acrescenta que o lado ucraniano lidou com a situação da mesma forma.

Yevgeny nega envolvimento nos assassinatos. "Estou pronto a responder em tribunal. Minha consciência está limpa. Sim, eu lutei, sim, eu atirei, mas também fui alvejado e também quero viver."

·         Medo de ser extraditado para a Rússia

Após o fracasso da ofensiva russa perto de Kiev, a unidade de Yevgeny foi transferida para Donbass. Para fugir de lá, ele deu um tiro na própria perna. "Nós nos ferimos perto das posições ucranianas e dissemos que haviam sido os ucranianos a atirar em nós. Acreditaram em nossa história e nos levaram para um hospital na Rússia."

Em meados de agosto de 2022, Viktor recebeu licença. De volta ao quartel, tentou pedir baixa, mas não conseguiu fazê-lo antes de a mobilização ser anunciada. Ambos os oficiais acabaram fugindo para o Cazaquistão. Mas por serem alvos de processos criminais na Rússia, eles não conseguem nenhum emprego oficial no país. Temendo a extradição para a Rússia, nem mesmo chips de celulares ou contas bancárias eles têm em seus nomes.

·         Solicitação de vistos humanitários para desertores russos

Viktor vislumbra três opções para si: França, Alemanha ou Estados Unidos. "Porque esses países emitem documentos de viagem temporários. Afinal de contas, nenhum de nós tem passaporte." Ele já entrou em contato com essas e outras embaixadas de países ocidentais várias vezes, mas até agora sem sucesso.

"Em maio de 2022, o Ministério do Interior da Alemanha disse que os desertores do Exército russo receberão status de refugiados, pois a deserção é entendida como um ato político contra a guerra e, portanto, a perseguição também constitui perseguição política", explica Rudi Friedrich, diretor executivo da associação Connection. Com sede em Offenbach, ela faz campanhas internacionais para objetores de consciência.

Juntamente com outras ONGs, ela pede ao Parlamento Europeu e aos Estados-membros da União Europeia que protejam quem se recusa a lutar em nome de Putin, através, por exemplo, da concessão de vistos humanitários, pois asilo só é possível solicitar na própria Alemanha.

Mas sem passaporte e visto, isso é quase impossível para os desertores, aponta Friedrich. Por isso é preciso proteger quem assume um alto risco pessoal e não quer lutar e nem participar dos crimes dessa guerra.

·         Os caminhos dos desertores russos para a Europa

Vasily é um dos primeiros desertores a conseguirem ir do Cazaquistão para a Europa ocidental sem passaporte, tendo conseguido emprego como programador numa empresa de TI na Alemanha. A embaixada alemã no Cazaquistão emitiu para ele uma permissão de viagem temporária para estrangeiros com visto de trabalho. Não foi fácil encontrar uma empresa que aceitasse um desertor sem passaporte, admite Vasily. Mas o mais difícil foi deixar o Cazaquistão.

Na primeira vez que tentou, ele foi retirado do avião após ser reconhecido no sistema do banco de dados internacional de indivíduos procurados. Vasily conta como sua filha de cinco anos correu para todos os funcionários da fronteira pedindo que "deixassem o papai sair". No dia seguinte, graças a seu advogado, Yernar Koshanov, ele conseguiu deixar o país. "Aparentemente há certas condições sob as quais isso é possível", comenta, sem dar detalhes: "Há uma saída."

Agora quase estabelecido, Vasily fala com entusiasmo sobre seu novo trabalho como desenvolvedor de jogos. Ele é grato à Alemanha por ter emitido o visto e ao Cazaquistão por ter permitido que emigrasse. Apesar dos riscos para sua família, ele decidiu tornar pública sua história de deserção, para que outros também tenham a chance de escapar dessa guerra sangrenta.

"Digo a todos os desertores, a todos os que estão na frente de batalha e estão desesperados: Tudo é possível. Não é preciso lutar e agir contra sua consciência. Vocês podem se recusar a participar desses crimes."

·         O que dizem as mulheres dos desertores

Muitos homens em idade militar têm deixado a Rússia desde o fim de setembro. As esposas de parte desses desertores, no entanto, permaneceram no país. Três delas contaram suas histórias à DW. Por razões de segurança, seus nomes foram alterados nesta reportagem.

·         "Parece que tudo está em chamas"

Dariam de 25 anos, trabalha como redatora na cidade de Chelyabinsk, no sudeste da região de Ural – uma vasta área montanhosa que divide a Rússia europeia e asiática –, e até recentemente não costumava se interessar por política: "Eu não conseguia determinar o que era falso e o que era real." Ela considerava a guerra uma catástrofe e tentava não pensar no assunto. Simplesmente recalcava o problema. Mas quando a mobilização parcial começou, Daria sentiu medo pelo marido Alexei. Ela estudou as leis e decidiu, junto com o companheiro, que ele deveria deixar o país.

Alexei foi para o Cazaquistão, onde é autorizado a permanecer sem passaporte – que ele não tem. Antes da partida do marido, Daria não conseguia dormir. Ela cuidou de todos os preparativos, dos papéis, procurou um apartamento para o companheiro e descobriu qual seria o melhor local para atravessar a fronteira.

Alexei seguiu o plano feito pela esposa e passou a fronteira sem nenhum problema. Atualmente, vive num apartamento na capital Astana, onde trabalha como fotógrafo.

"Em termos de trabalho, contatos e perspectivas, as coisas são melhores lá do que em Chelyabinsk", afirma Daria.

De longe, ela continua ajudando o marido: numa loja online, encomendou travesseiros, um cobertor, roupa de cama e uma chaleira para a nova casa dele, e também enviou um pacote com roupas de inverno. Um problema enfrentado pelo casal é a internet, que não funciona tão bem para Alexei no Cazaquistão, impedindo chamadas regulares de vídeo.

Daria, no entanto, solicitou um passaporte e, em breve, quer partir para junto do marido. Devido à lei marcial imposta por Putin na região do Donbass, no leste da Ucrânia, ela teme que as autoridades russas possam fechar as fronteiras: "Não quero nem pensar em permanecer aqui e ele lá. É muito difícil e triste. Temos um ótimo relacionamento, estamos juntos desde 2017." A jovem só se mostra feliz em meio a essa situação pelo fato de ela e o marido ainda não terem filhos.

No momento, outra preocupação é com seus pais, que vivem em Chelyabinsk: "Eles são patriotas, não posso fazê-los mudar de ideia porque eles ainda precisam viver aqui. No Cazaquistão, todos os problemas que meu marido enfrenta podem ser resolvidos. Aqui temos a sensação de que tudo está em chamas".

·         "Nosso filho ainda não entende onde está o pai"

Quando Putin ordenou a mobilização parcial, Olga, de 32 anos:que vive em Murmansk, no extremo norte da Rússia, pensou imediatamente que todos os homens aptos para o serviço militar seriam chamados. Por isso, ela e o marido, Artjom, decidiram que ele deveria deixar o país. A família dele não ficou contente com a decisão, mas também não interferiu. A mãe de Artjom tem uma casa na região de Donetsk. Ela quer que a área se torne russa, mas com perdas mínimas. E o pai acha que o filho deveria ter ido para a guerra.

Olga ajudou o marido a resolver tudo o que ainda precisava ser feito em Murmansk: "Tivemos que falar com a família e angariar dinheiro para a viagem. Procuramos por passagens, mas não havia mais nenhuma. Artjom fez as próprias malas. Ele sabe muito sobre turismo. Levou uma mochila, um saco de dormir, roupa de baixo quente, um kit de primeiros socorros e comida."

O marido deixou Murmansk em 27 de setembro e dois dias depois chegou ao Cazaquistão. Durante toda a viagem, não se sabia ao certo se a Rússia fecharia as fronteiras.

"É bom que ele tenha ido embora agora. Pelo menos não me preocupo mais que o encontrem e o convoquem", diz Olga.

Artjom tem uma autorização de residência no Cazaquistão. Junto com outros homens com quem viajou, vive num apartamento em Almaty, e procura oportunidades para abrir um negócio próprio.

Olga e Artjom têm um filho de quatro anos. Esta é a primeira vez que a família se separa por um período tão longo. Decisões importantes são tomadas em conjunto, mas agora via Messenger. Devido à má qualidade de conexão de internet, chamadas de vídeo raramente são possíveis. Por isso, o casal grava vídeos.

"Nosso filho ainda não entende onde está o pai. Quando vê vídeos dele, chora e quer falar com ele. Ele sente falta do pai." Olga continua em sua vida habitual, trabalhando como pedagoga: "Apesar de todas as notícias terríveis, há um cotidiano."

Por um lado, ela quer se juntar ao marido, por outro, tem dificuldade em abandonar a rotina: "Meu marido e eu falamos de vender o apartamento, mas eu não estou pronta para isso. Não sei o que precisaria acontecer para eu desistir de tudo e partir. Provavelmente, um míssil teria que cair aqui, então eu fugiria imediatamente."

·         "Mulheres não têm como parar a guerra"

Elena, 41 anos, é psicóloga e vive em Arkhangelsk, no norte da Rússia. Com o início da mobilização parcial, decidiu-se que o marido e o filho deviam fugir para a Armênia. O rapaz recebeu dispensa do Exército em meados do ano, após completar o serviço militar, e atualmente frequenta a universidade.

"Com a mobilização, ele está entre os primeiros a serem convocados. Eu não quero arriscar a vida e a saúde do meu filho", diz Elena.

Assim que a guerra começou, a empresa em que o marido de Elena trabalha mudou-se para Ierevan, capital da Armênia. Portanto, estava claro para onde ele e o filho deveriam ir, só precisavam chegar lá de alguma forma. Elena temia que os dois não conseguissem sair da Rússia antes que as fronteiras fossem fechadas. Assim, já em 24 de setembro, partiram para a fronteira com a Geórgia.

Na época, Elena foi uma espécie de "centro logístico" para o marido e o filho. "Antes disso, tive um tipo de depressão e estava arrasada. Mas quando as soluções surgiram, ganhei um impulso de energia", lembra.

Os dois homens conseguiram atravessar a fronteira em um dia, o que, segundo Elena, agora se tornou parte da história da família.

Eles continuam se adaptando a Ierevan, acostumando-se, por exemplo, com a culinária armênia. Enfrentam dificuldades com transferências de dinheiro, e ainda não está claro como o filho vai continuar os estudos universitários. Mas, apesar da separação, Elena se sente melhor agora.

"Eles estão seguros. As coisas ruins não estão acontecendo com a nossa família, mas com o nosso país. Estamos nos ajustando a tudo, esses problemas não vão nos derrubar, mas sim nos tornar mais fortes."

A intenção de Elena era visitar o marido e o filho até o fim de outubro e levar-lhes roupas quentes. Ainda não há um plano de mudança definitiva para Erevan. Ela se engaja socialmente em Arkhangelsk e quer seguir fazendo-o enquanto for possível.

A respeito das mulheres que enviam seus homens para a guerra, afirma: "Elas pensam que esse conflito é algo como uma grande guerra patriótica." Elena acredita que no momento as mulheres correm menos risco na Rússia do que os homens: "Podemos assumir os lugares deles e tomar decisões que tragam uma mudança à política do país. Mas as mulheres não têm como parar a guerra."

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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