Como assassinato de líder separatista levou a escalada de tensão entre
Índia e Canadá
As disputas em torno do assassinato do líder
separatista sikh Hardeep Singh Nijjar estão estremecendo anos de uma relação
próxima entre o Canadá e a Índia, dois parceiros estratégicos importantes na
segurança e no comércio.
As rusgas ficaram evidentes na segunda-feira
(18/09), quando o primeiro-ministro Justin Trudeau disse que o Canadá estava
investigando "alegações críveis" sobre o possível envolvimento de
agentes do governo indiano no assassinato de Hardeep Singh Nijjar na província
canadense de British Columbia, em 18 de junho.
A Índia respondeu furiosamente: “refutou
completamente” as acusações, chamando-as de “absurdas”. Ambos países expulsaram
diplomatas um do outro e não está claro até que ponto as divergência vão
chegar.
Na quinta (21), a Índia suspendeu o fornecimento da
vistos para canadenses, alegando "ameaças à segurança" em seus postos
no Canadá. Embora permaneçam abertos, os serviços consulares do Canadá na Índia
também foram reduzidos, segundo o país norte-americano por conta de ameaças que
diplomatas estavam recebendo nas redes sociais.
Há apenas alguns meses, os países estavam
progredindo rumo à assinatura de um acordo de livre comércio — negociado há
bastante tempo — neste ano. Agora, as negociações foram interrompidas e uma
iminente missão comercial canadense à Índia foi adiada.
Então, como as coisas chegaram a esse ponto?
A recente cúpula do G20 realizada em Nova Déli deu
algumas pistas, entre as quais a tensa (e curta) reunião de Trudeau com o
primeiro-ministro indiano, Narendra Modi.
Depois, Trudeau sofreu o constrangimento de ter que
esperar mais dois dias em Déli para ir embora, porque seu avião apresentou uma
falha técnica.
Após os dois líderes se encontrarem, não houve
rodeios nas palavras. Trudeau disse que o Canadá sempre defenderá a “liberdade
de expressão” e agirá contra o ódio.
Numa declaração contundente incomum, o governo
indiano disse ter "fortes preocupações sobre a continuidade das atividades
anti-Índia com elementos extremistas no Canadá", país que acusou de
"promover o separatismo e de incitar a violência contra diplomatas
indianos".
A referência é aos apelos de ativistas sikh que
estão no Canadá e pedem por Calistão, que seria uma pátria separada para os
sikhs — os quais formam um
dos maiores grupos religiosos do planeta.
Essa é uma demanda que evoca memórias dolorosas
para milhões de pessoas na Índia, especialmente no norte do Estado de Punjab,
onde os sikhs constituem a maioria da população.
O Canadá abriga 1,4 milhão de pessoas de origem
indiana — mais da metade delas sikhs —, o que representa 3,7% da população do
país, de acordo com o Censo de 2021. Fora de Punjab, o Canadá tem o maior
número de sikhs no mundo.
A luta pelo Calistão atingiu o auge na Índia na
década de 1980, com uma insurreição armada fortemente reprimida. Milhares de
pessoas foram mortas.
O movimento não é mais proeminente em Punjab, e
todos os principais partidos políticos indianos opõem-se veementemente a ele.
Mas os apelos por Calistão ainda são significativos
entre emigrantes indianos que vivem em países como Canadá, Austrália e Reino
Unido.
Déli reagiu duramente às manifestações e aos
referendos sobre Calistão realizados por ativistas sikh nestes países — o que
não é ilegal, mas um motivo de grande irritação para a Índia.
A questão recebeu maior atenção internacional
depois que três ativistas pró-Calistão morreram em um curto intervalo, no
início do ano.
Paramjit Singh Panjwar, chefe da Força de Comando
Calistão que havia sido classificado como terrorista pela Índia, foi morto a
tiros em maio no Paquistão. Seus assassinos ainda não foram identificados.
No Reino Unido, Avtar Singh Khanda, considerado o
chefe da Força de Libertação do Calistão, morreu em 15 de junho no hospital.
Khanda foi preso em março, após uma manifestação em Londres, onde manifestantes
derrubaram a bandeira indiana na embaixada do país. Mas um porta-voz da polícia
do Reino Unido disse que a morte “não foi considerada suspeita”.
Três dias após a sua morte, Nijjar, também
considerado terrorista pela Índia, foi morto a tiros em frente a um templo sikh
em British Columbia. Foi esse assassinato que levou o Canadá a tomar uma
posição pública dura contra o aliado poderoso.
Hardeep Singh Nijjar tinha 45 anos e, em 2007,
ganhou cidadania canadense.
Mas as relações entre os dois país sobreviveram a
tensões anteriores. O Canadá reagiu fortemente aos testes nucleares indianos em
1974 e 1998; já a Índia expressou sua decepção em 2005, depois de dois sikhs
canadenses acusados de um atentado mortal à bomba em um avião da Air India
serem absolvidos na Justiça.
Mas, fora isso, as duas nações têm mantido uma boa
relação, exceto no que diz respeito à questão do Calistão.
Ambas têm muito em comum: “uma tradição
compartilhada de democracia e pluralismo” e “um compromisso comum com um
sistema internacional baseado em regras”, como o próprio Canadá afirma.
Ambos são países da Commonwealth (comunidade de
países com origens no Império Britânico) e membros do G20. O Canadá, que quer
uma presença maior na Ásia, vê a Índia como um contrapeso à China.
Não se trata apenas de geopolítica: os países
também têm fortes ligações comerciais.
A Índia foi o décimo maior parceiro comercial do
Canadá em 2022, com um comércio bilateral de mercadorias chegando a US$ 11,9
bilhões naquele ano — um aumento de 56% em relação a 2021.
Além da grande população de origem indiana vivendo
no Canadá, o país asiático também envia o maior número de estudantes
internacionais para o país na América do Norte. Em 2022, os estudantes indianos
representavam 40% do total de estudantes estrangeiros no Canadá.
Enquanto isso, de acordo com estatísticas do
governo indiano, cerca de 80.000 turistas canadenses visitaram a Índia em 2021,
ficando atrás apenas dos EUA, Bangladesh e Reino Unido.
Então, obviamente há muito em jogo para ambos os
países.
"Penso que esta é uma lição para todos nós, de
que não há nada de sacrossanto nas relações estreitas da Índia com os parceiros
ocidentais", aponta Michael Kugelman, diretor do Instituto do Sul Asiático
no centro de pesquisas Wilson Center, sediado em Washington, nos EUA.
"É um alerta de que sim, a Índia é um ator não
alinhado, valoriza as suas relações com o Sul Global, definitivamente valoriza
as suas relações com o Ocidente. Mas isso não significa que ficará longe da
possibilidade de uma grande crise nas relações."
O ministro das Relações Exteriores da Índia, S
Jaishankar, disse no início do ano que a resposta do Canadá à proposta do
Calistão é impulsionada pela “compulsão por votos” — uma referência ao apoio
que o Partido Liberal de Trudeau recebe dos sikhs.
O governo de Trudeau, que não tem maioria no
Congresso, também é apoiado pelo Novo Partido Democrático, liderado por Jagmeet
Singh, ele próprio um sikh.
Essa é uma avaliação com a qual muitos
especialistas indianos concordam.
Chintamani Mahapatra, fundador do Instituto Kalinga
de Estudos Indo-Pacíficos, diz que as declarações de Trudeau sobre a questão do
Calistão são “divisivas”.
"Ele ignora os sentimentos da comunidade
indo-canadense mais ampla, que inclui os sikhs canadenses, e parece tendencioso
a favor dos apoiadores do Calistão. Ele gostaria de apoio externo aos
separatistas de Quebec? Claro que não", diz, acrescentando que a relação
entre a Índia e o Canadá se tornou mais tensa devido à posição de Trudeau.
Mas Avinash Paliwal, que leciona sobre política e
estudos internacionais na Escola de Estudos Orientais e Africanos da
Universidade de Londres, diz que a súbita piora na relação bilateral talvez não
se deva apenas a questões domésticas do Canadá.
“Se as suas agências de inteligência reuniram
informações críveis de que outro país, mesmo que seja um aliado, estava
envolvido numa operação secreta no seu território, você é obrigado a agir
quanto a isso”, diz Paliwal, acrescentando que é provável que Trudeau tenha
tentado trazer o assunto por outros canais primeiro, antes de vir a público.
De acordo com um comunicado emitido pela Índia,
Trudeau de fato mencionou a acusação a Modi, mas recebeu pouca atenção.
O primeiro-ministro canadense recebeu apoio de
outros políticos de seu país, incluindo o principal líder da oposição, Pierre
Poilievre. O Ocidente também reagiu — os EUA disseram estar “profundamente
preocupados” com as alegações, enquanto o Reino Unido afirmou estar “em contato
próximo” com o Canadá sobre o assunto.
Especialistas dizem que, embora os países
ocidentais considerem a Índia necessária para combater a influência da China,
há também uma preocupação crescente com a direção da política indiana sob o
governo de Modi.
Críticos dizem que os ataques às minorias
aumentaram com o governo dele e levantam outras preocupações em matéria de
direitos humanos.
Os acontecimentos também serão acompanhados de
perto por Pequim e Moscou, que ficarão satisfeitos por verem uma “fissura entre
a Índia e o Ocidente”, diz Paliwal.
No entanto, o analista acrescenta que isso não
“atrapalharia questões estratégicas” nem “faria Washington virar as costas” à
Índia.
Para Kugelman, a China e a Rússia verão o confronto
de forma diferente.
"Pequim não quer ver a Índia aumentar e
aprofundar as relações com países que pensam da mesma forma que ela e que
desejam reagir à China. Portanto, a esse respeito, isto [o conflito] pode ser
visto como um benefício estratégico para Pequim. A Rússia também pode ficar
perfeitamente feliz em ver o Canadá atolado nesta crise", diz ele.
No curto prazo, um confronto entre a Índia e o
Canadá poderá ter consequências geopolíticas. Se o Canadá continuar a publicar
declarações fortes e a acusar diretamente a Índia, será um desafio único para
os governos ocidentais, especialmente o Reino Unido e a Austrália.
A forma como o Ocidente apoiou Déli na recente
cúpula do G20 foi uma indicação clara de que esses países desejam que a Índia
seja um contrapeso viável à China.
Mas será uma dor de cabeça estratégica para eles se
chegar a um ponto em que tenham de escolher entre a Índia e o Canadá. Até
agora, o Reino Unido, os EUA e a Austrália deram declarações calculadas.
No mais, Mahapatra afirma que, embora a questão do
Calistão possa afetar a cooperação econômica a curto prazo, é pouco provável
que atrapalhe os laços a longo prazo entre Índia e Canadá.
Ele também alerta sobre “medidas extremas".
“Expulsar um diplomata significa que não se quer
diálogo. Tais questões precisam de ser tratadas através das conversas e da
diplomacia, e não do confronto”, aponta o especialista.
·
'Dizem que mulher não aguenta o ritmo': Índia quer
cotas para ter ao menos um terço de deputadas
A Câmara Baixa do Parlamento indiano aprovou nesta
semana o projeto de lei que reserva um terço das cadeiras de deputados às mulheres. O texto, que
suscita debates há mais de 20 anos no país, representa uma reforma
constitucional histórica em uma sociedade dominada pelo patriarcado. O sistema
ainda não tem data exata para entrar em vigor.
No total, 454 deputados votaram a favor do projeto
e dois contra. Uma maioria de dois terços era necessária para a adoção do
texto, que ainda deve ser validado pela Câmara Alta, mas tem poucas chances de
ser recusado. Em seguida, a lei tem que ser aprovada por menos metade dos 28
Estados.
A maior democracia do mundo foi o segundo país a
nomear uma mulher ao cargo de primeira-ministra, quando Indira Gandhi assumiu o
governo, em 1966, seis anos após Sirimavo Bandaranaike, no Sri-Lanka.
Atualmente, a presidente da Índia é Droupadi Murmu, a segunda mulher a ocupar
essa função – que é apenas protocolar na política indiana. Além disso, o país
conta com várias ministras.
No entanto, a Índia continua sendo
uma das grandes democracias mais desiguais em se tratando de presença de mulheres
na política. Atualmente elas representam apenas 15% das deputadas da Câmara
Baixa federal e 9% nas assembleias regionais.
·
Entregar flores e servir chá
“Durante a última campanha, eu era a única mulher
entre mais de 300 homens”, relata Shaguna Kanwar, que participou da corrida
eleitoral em Uttar Pradesh, o estado mais populoso da Índia, no norte do país.
“Eles dizem que as mulheres não aguentam o ritmo intenso, trabalhar até
tarde... Sobra para as mulheres entregar flores aos líderes [políticos] ou servir
chá”, resume.
Diante dessa situação, Kanwar comemora a aprovação
da reforma constitucional, que impõe um mínimo de 33% dos assentos para
deputadas. “Agora eles serão obrigados a encontrar boas candidatas. Para
mulheres com experiência e que estudaram, como eu, isso cria novas
oportunidades”.
·
Assobios no Parlamento
O projeto de lei foi apresentado pela primeira vez
em 1996, mas não obteve a maioria dos votos no Parlamento. O texto foi
apresentado, sem sucesso, outras seis vezes. Ao longo dos anos, o assunto
encontrou forte oposição de alguns partidos políticos no norte do país.
Em 2010, Mulayam Singh Yadav, o ex-ministro de
Uttar Pradesh, se opôs ao projeto alegando que, se o texto fosse aprovado,
incitaria os deputados a assobiar cada vez que uma deputada se pronunciasse no
Parlamento.
Atraso no Censo pode bloquear entrada em vigor
No entanto, o sistema de cotas pode levar um certo
tempo antes de ser implementado, já que depende da reestruturação das sessões
eleitorais, processo que será realizado apenas após a finalização do Censo
indiano. Porém, a contagem dos cerca de 1,4 bilhão de habitantes do país, que
estava prevista para 2021, teve que ser adiada por causa da pandemia e ainda
não tem data prevista para ser concluída.
“A implementação imediata desse projeto de lei é
necessária e possível”, insistiu durante as discussões no Parlamento Sonia
Gandhi, do partido de oposição, que apoia o sistema de cotas. “Todo atraso em
sua implementação constitui uma injustiça contra as mulheres”, completou.
Porém, mesmo que o projeto leve anos para ser
implementado, sua aprovação pode beneficiar o atual primeiro-ministro, Narendra
Modi, que tenta se reeleger para um terceiro mandato em 2024 e cujo partido, o
nacionalista Partido do Povo Indiano (BJP - Bharatiya Janata Party), já conta
com uma forte popularidade entre as mulheres.
Fonte: BBC News em Nova Déli/rfi
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