Ataque de seguranças da Vale a famílias no Pará passa anos sem
investigação e segue impune
Agressões, intimidações e até um caso de homicídio
marcam o trabalho da multinacional de segurança privada SegurPro para a
mineradora Vale no sudeste do Pará. A região é marcada pela violência contra
camponeses, como mostra o Mapa dos Conflitos, elaborado pela Agência Pública a
partir dos relatórios anuais de conflitos no campo da Comissão Pastoral da
Terra (CPT) entre 1985 e 2020. Um dos casos que seguem impunes ocorreu em 21 de
junho de 2020, quando cerca de 50 vigilantes da companhia atacaram mais de 150
pessoas na calada da noite, ferindo trabalhadores rurais, crianças e idosos na
comunidade Nova Conquista I, na área da antiga fazenda Lagoa, à beira da
rodovia BR-255 em Parauapebas (PA), a mais de 700 km de Belém.
O caso foi amplamente denunciado, inclusive na
Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Pará, mas, três anos
depois, os seguranças da Vale nunca foram punidos pelo ataque. É o que revela
uma apuração inédita da Pública.
O conflito ocorreu porque as famílias, que vivem a
menos de 1 km dos limites da sede do município, estavam instalando postes para
terem acesso a energia elétrica. À época, a própria prefeitura avaliava que a
falta de energia aos posseiros era inaceitável e que “a posse do movimento é
mansa, pacífica e produtiva”.
Aspectos do caso colocam a atuação da Polícia Civil
do governo Helder Barbalho (MDB) em dúvida. Isso porque a Vale apresentou, em
sua defesa, trechos grifados de um documento apócrifo, supostamente um
inquérito policial sobre o ataque – material este que supostamente isentaria
seus seguranças de responsabilidade pelo ocorrido.
A Pública apurou que o resultado desta suposta
investigação não foi comunicado nem às vítimas, nem ao Ministério Público
Federal (MPF), que acompanhou o caso desde o início.
O MPF avaliou o suposto inquérito citado pela Vale
como uma “aparente atuação deficiente da investigação criminal da PCPA [Polícia
Civil do Pará]” e chegou a sugerir federalizar o caso. Mesmo assim, o processo
aberto pelo Ministério Público terminou arquivado pela Procuradoria Regional da
República da 1ª Região no dia 14 de junho de 2022.
• Violência
que, para muitos, cai no esquecimento
A Pública entrou com um pedido de acesso à
informação junto à Polícia Civil do Pará, para descobrir o resultado das
investigações sobre o ataque da SegurPro a mando da Vale em Parauapebas em
junho de 2020. Dali em diante, começaram a surgir pontas soltas.
A Polícia Civil do Pará respondeu ao pedido da
Pública no dia três de agosto passado, por meio de um ofício do delegado
Erivaldo Campelo da Silva, da 20a Delegacia Seccional Urbana do município, que
informou: “fora encontrado no sistema boletim de ocorrência registrado no ano
de 2020, sem procedimento policial instaurado”. “Ressalto que determinei a
imediata instauração do inquérito policial” para apurar o ataque, conclui o
delegado da Silva.
À Pública, Francisco da Silva Costa, representante
dos trabalhadores agredidos e também vítima do ataque conta que, à época do
ocorrido, membros da comunidade Nova Conquista I não foram ouvidos pela
polícia.
“Faz um mês que recebemos contato de um delegado da
Polícia Civil de Belém (PA), pedindo para ouvir o pessoal daqui sobre o que
aconteceu. Na época [do ataque], ninguém procurou a gente”, disse Costa, que
coordena a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) em
Parauapebas (PA).
A necessidade de abertura de um novo inquérito
sobre o caso coloca em xeque a defesa da Vale em outro processo relativo ao
mesmo episódio, material este obtido pela Pública. Esse segundo caso foi aberto
pelo procurador do Ministério Público Federal (MPF) Sadi Flores Machado no dia
do ataque.
A contradição surge em um documento enviado pela
defesa da Vale ao MPF, de 27 de setembro de 2021, no qual a mineradora afirma
que “a Polícia Civil do Estado do Pará investigou o caso, tendo concluído que a
Vale agiu dentro dos limites legais” e ainda classificou a ação como “com
razoabilidade”.
A manifestação, assinada pelo advogado Mário Barros
Neto, se baseia em trechos grifados de um documento apócrifo – citados como
supostamente parte de um inquérito policial sobre o caso. A Pública apurou que
nem as vítimas, nem o MPF tiveram acesso a este suposto inquérito. Além disso,
a reportagem pediu ao governo do Pará a íntegra do inquérito policial citado
pela Vale, mas não foi atendida.
Em sua manifestação, a Vale alegou também que “as
supostas lesões existentes [nas vítimas] se caracterizavam como leves e
decorreram da própria intransigência das pessoas que ocupam a área”. Ou seja, a
mineradora tentou isentar seus seguranças armados de qualquer responsabilidade
pelo episódio.
• Noite
de ataque e horas de abandono
Ao tomar conhecimento do ataque, o MPF pediu que
uma equipe da PF fosse imediatamente ao local para prestar “algum tipo de
atendimento, dissuadir o conflito ainda potencial, além de apurar a eventual
ocorrência de ameaças”, já que a delegacia de polícia de Parauapebas “não
contaria, no momento, com suficiente efetivo para a colheita de indícios sobre
os fatos”.
Na manhã seguinte, o procurador Sadi Flores Machado
se juntou a outros dois membros do MPF, Adriano Augusto Lanna de Oliveira e
Igor Lima Goettenauer de Oliveira, para pedir que os registros da ocorrência,
colhidos pelo delegado da PF Geraldo Sérgio Silva de Almeida, fossem juntados
ao processo aberto na noite do ataque.
Os procuradores pediram também a “confecção de
relatório circunstanciado quanto às diligências realizadas” pelo delegado e sua
equipe. Consultado pela Pública, o relatório da PF narra: “foi determinado pela
empresa Vale S/A, às 20h, que retirassem a população da área imediatamente”.
Na prática, foi o sinal para que os vigilantes da
SegurPro avançassem, “utilizando equipamentos de CDC (Controle de Distúrbios
Civis) – munições de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta”.
O laudo da PF aponta que o delegado de plantão na
Polícia Civil de Parauapebas na noite do ataque, Luciano Ramos de Oliveira,
contou “que, apesar do conflito, e das claras marcas de lesão corporal dos
assentados atingidos, não houve nenhum registro de ocorrência”. “Como não havia
no momento do atendimento, por volta das 22h, médico perito disponível, foi
encaminhado [sic] guias aos assentados para realização de exame pericial a
partir das 8h”, do dia seguinte ao ataque, segundo o documento da PF.
Entre os materiais consultados pela Pública há
pedidos de exame de corpo de delito assinados pelo delegado Luciano Ramos de
Oliveira na noite de 21 de junho, mas a quantidade de pedidos não bate com as
estimativas de pessoas feridas, de acordo com denúncias feitas pelos posseiros
à época.
No dia 29 daquele mês, a coordenadora-geral da
Fetraf na região, Viviane Pereira, denunciou o ataque à Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia do Pará. Também vítima, a já falecida representante dos
posseiros disse que nem todos os feridos pelos seguranças da Vale foram
examinados pela polícia.
“Pediram para voltarmos no dia seguinte. Quando
voltamos, disseram que não tinha escrivão e não pudemos mais fazer os relatos,
pois o Instituto Renato Chaves [centro de perícias científicas da Polícia Civil
do Pará] tem uma legislação que, após um tempo, não se pode mais fazer. Nos
negaram o direito de fazer o exame de corpo de delito”, disse Viviane.
• Três
anos depois, crime sem castigo
Passados mais de três anos do ataque, um ponto
central do caso segue sem respostas. A defesa da Vale se baseou na acusação de
que “os invasores [posseiros] dispararam com armas de fogo” contra a equipe da
SegurPro e defende que o grupo de trabalhadores em questão “atuou de maneira
proporcional e razoável (em legítima defesa)”.
O argumento consta em uma das primeiras
manifestações da empresa no caso, em 29 de junho de 2020, documento também
consultado pela Pública.
Dada a gravidade da acusação, o MPF pediu à Vale,
em despacho assinado no dia 6 de julho daquele ano, “provas da utilização de
armas de fogo por parte da comunidade durante o episódio” e também indícios de
uma suposta “venda ilegal de lotes invadidos por parte da comunidade”,
acusações feitas pela mineradora.
Em despacho assinado em 22 de julho de 2020, o MPF
informou que “a empresa Vale S/A deixou de cumprir a requisição”, “uma vez que
não há resposta” que servisse de provas para sustentar as acusações contra os
posseiros.
“A gente só tinha facões e foices na ocupação,
porque nós trabalhamos na roça, são nossos materiais de trabalho”, disse à
Pública o representante das vítimas, Francisco da Silva Costa.
“Não tinha nenhuma arma de fogo… esse ataque foi
coisa de milícia mesmo, sabe? Pegaram a gente de noite, sem luz, vieram por
trás, teve gente se jogando no mato pra fugir, criança e idoso ferido, foi um
pesadelo”. - Francisco da Silva Costa, representante dos trabalhadores
agredidos
Ainda em 2020 o MPF ainda recomendou à Vale “a
substituição da empresa de vigilância patrimonial [SegurPro]” e que provesse
“medidas de reparação” às “vítimas que sofreram lesões físicas e psicológicas
em decorrência dos atos de violência praticados por agentes de segurança da
empresa”.
A SegurPro, no entanto, continua a serviço da Vale.
Ao responder ao MPF, a mineradora negou as recomendações dos procuradores,
afirmando que não praticou “qualquer ato ilícito que justifique ou autorize
medidas indenizatórias, compensatórias ou reparatórias de qualquer natureza”.
“O que sempre deixou a gente indignado é a forma
que a Vale e a SegurPro tratam a gente: lidam como se a gente fosse bandido,
com truculência, ignorância. Somos trabalhadores”, disse o representante das
vítimas à Pública.
À reportagem, a Vale afirmou que seus seguranças
agiram “no estrito rigor legal” no caso em Parauapebas. Alegou ainda que, “após
todo o processo de investigação policial”, a investigação foi arquivada pois a
“autoridade policial” considerou que “a reação da equipe de segurança foi
adequada”.
A empresa de segurança privada, por outro lado,
disse que a ação ainda estaria tramitando, “corre em segredo de Justiça” e que
“não comenta ações em andamento. Parte do grupo espanhol Prosegur, a SegurPro
declarou que ainda que seus vigilantes passam por “treinamentos operacionais,
táticos e comportamentais”.Após ter acesso aos documentos e depoimentos sobre o
caso, a Pública buscou a Polícia Civil do Pará para explicar a não conclusão do
inquérito, mas não teve resposta. Caso se manifeste, este espaço será
atualizado.
• Intimidações
se espalham pelo sudeste do Pará
Desde o ataque em Parauapebas, houve outros casos
de violência envolvendo seguranças da Vale na região. Denunciado pela Repórter
Brasil, o mais grave ocorreu em maio de 2022, quando um vigilante da SegurPro
foi preso em flagrante, acusado de assassinar o posseiro Reginaldo Pereira de
Oliveira à beira da ferrovia de Carajás, em Marabá (PA).
Atualmente, a SegurPro patrulha supostas terras da
Vale em Canaã dos Carajás (PA), município vizinho a Parauapebas e visitado pela
Pública no mês de junho. Lá, a mineradora quer instalar uma grande operação
para extrair cobre e ouro próximo ao Parque Nacional dos Campos Ferruginosos: o
Projeto Cristalino.
Ouvidas pela reportagem, lideranças comunitárias na
região do Cristalino acusam os seguranças da Vale de invadir residências e
constranger moradores na área, em disputa desde 2015. Com mais de 2.400
hectares, há mais de cem famílias vivendo na região.
“As áreas daqui, ela [Vale] nunca provou que tem
documento [de posse], até por isso nunca conseguiu tirar nós daqui”, disse
Valdeci Moreira Leite, uma das lideranças dos posseiros na região do Alto da
Serra e do Axixá, conhecidas por concentrar boa parte das nascentes de água
dentro do Projeto Cristalino.
Em um vídeo gravado recentemente na região, é
possível ver dezenas de posseiros discutindo com funcionários da Vale. Havia
uma demanda por mudanças na postura dos vigilantes da SegurPro, que, conforme
apurado pela reportagem junto às lideranças da área, estariam cometendo abusos
no Cristalino.
“A gente não
contesta que a empresa tenha as lavras de mineração para explorar a área, mas
não é certo ela vir e colocar escolta armada, 24 horas por dia, para ameaçar
agricultor, enquanto não cumpre nada do que prometeu”, disse à Pública o
agricultor Valdeci Moreira Leite.
Durante visita à região, a reportagem encontrou
caminhonetes numeradas em referência aos complexos minerários da Vale em Canaã,
veículos também usados por equipes de segurança. Além disso, a reportagem
obteve materiais que mostram seguranças da Vale atuando com truculência na
região, numa área próxima a um garimpo desativado pela PF.
Em outro registro é possível ver cinco homens
armados com escopetas, revólveres e armamentos não letais, como bombas de gás
lacrimogêneo e spray de pimenta, usando blusas camufladas, câmeras corporais e
coletes com o emblema da SegurPro, invadindo uma casa. Não é possível dizer,
porém, se a intimidação teve como alvos agricultores ou garimpeiros, dada a
penetração do garimpo ilegal em meio à comunidade.
“Eles [garimpeiros] abrem áreas de mineração para
todo lado e, com isso, trazem ameaças como a poluição dos igarapés, porque na
maioria dos casos ocorre nas áreas de alto das serras, onde há muitas
nascentes, e a ‘pistolagem’, com ameaças de assassinato de lideranças que se
opõem ao garimpo, um problema muito grave em Canaã”, afirmou à Pública o advogado
da Comissão Pastoral da Terra há mais de 30 anos na região, José Batista.
“O garimpo ilegal se fortaleceu muito nos últimos
anos, porque no governo Bolsonaro houve um estímulo muito grande a essa
atividade”, disse à Pública o advogado da CPT. “Não estamos falando do típico
garimpeiro, que sai com sua bateia peneirando fundo de córregos: hoje, são
milícias rurais que se organizam, com poder econômico e armamento pesado”,
afirmou José Batista.
“Só queria saber se Canaã é mesmo Brasil, porque lá
em Roraima, o governo federal, as Forças Armadas, Polícia Federal, todo mundo
tá tirando garimpeiro, enquanto aqui a Vale tá colocando escolta armada pra
tirar agricultor”. - Valdeci Moreira Leite, um dos líderes dos posseiros do
Projeto Cristalino
À Pública, a Vale afirmou que, no caso do Projeto
Cristalino, “vem atuando com o objetivo de encontrar solução consensual para a
desocupação da área”. A mineradora disse ainda que, “na região, a segurança
empresarial é contratada para atuar na necessária proteção contra o garimpo
ilegal e extração de madeiras”.
Fonte: Por Caio de Freitas Paes, da Agencia Publica
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