Política agrícola: Assim o agro vampiriza o Estado
O mantra é assim: os novos instrumentos financeiros
democratizarão o acesso a recursos pela agricultura e pecuária no Brasil e o
agronegócio dependerá menos do dinheiro público. Esse discurso é repetido no
parlamento, em lives, debates, aulas de coaches financeiros:
todas as vezes que o crédito para o agro é abordado. Foi uma das bases de
argumentação para a aprovação das novas Leis do Agro (13.986/20 e 14.421/2022)
e do Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais, o Fiagro)
(14.130/2021) – leis que estruturam instrumentos do mercado financeiro
lastreados em dívidas, produção e terras no Brasil.
Só que não é verdade. O agronegócio sempre dependeu
e vai depender de recursos públicos. “O crédito é um fator de produção tão
relevante quanto a terra, o fertilizante ou a máquina agrícola. Dessa maneira,
seria impensável a expansão do Agro brasileiro sem a política de crédito rural
que norteou a política agrícola nacional”, afirma a Confederação da Agricultura
e Pecuária do Brasil (CNA) em “O Futuro é Agro – 2018-2030”, um “Plano de
Estado”, apresentado aos candidatos à presidência em 2018.
No Plano Safra 2023/2024, R$ 364,22 bilhões, 26,8%
a mais que o Plano Safra de 2022/2023, são direcionados para a atividade.
Desses, R$ 186,4 bilhões (+31,2%) têm taxas controladas e R$ 101,5 bilhões
(+26,1%) apresentam taxas equalizadas, ou seja, subsidiadas. Sem contar recursos
para obras de infraestrutura como a Ferrogrão, uma Embrapa dedicada a seus interesses, bilhões
que ainda devem ser anunciados para o seguro rural, isenção de imposto de renda
nas aplicações em títulos financeiros do agronegócio, isenção de imposto de
exportação com a Lei Kandir e perdões periódicos de dívidas do agronegócio.
Esses recursos são deixados de fora da conta quando
os empresários falam em “subsídios ao agro”. E são pagos por toda a população
do país. Agora mesmo, o relator da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados,
Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), reduziu mais a alíquota do Imposto sobre Valor
Agregado (IVA) sobre produtores agropecuários, por pressão da bancada
ruralista. Com isso, a alíquota para os produtos agropecuários e da cesta
básica será de 40% do total da alíquota padrão (que será definida no futuro, na
regulamentação da reforma). Antes, o relatório já previa redução de 50% em relação
à alíquota geral, mas acharam insuficiente.
O crescimento explosivo de aplicações em
instrumentos financeiros do agro – e portanto de recursos que o mercado
financeiro aplica no agronegócio – significa que o setor empresarial tem mais
alternativas para captar recursos privados.
Não significa uma democratização no acesso a
crédito porque este dinheiro é para grandes grupos ou para seus parceiros. E
democratização, no sentido que o agronegócio usa, é algo relativo. Não há um
número maior de produtores com acesso ao dinheiro, mas sim o turbinamento do
modelo de produção que esses mecanismos reproduzem: commodities para
exportação, monocultura, uso intensivo de maquinário, agrotóxicos,
transgênicos. Com exploração da mão-de-obra e uma gigantesca especulação em
torno da valorização das terras agricultáveis no Brasil.
“O Agro é tudo”, diz a propaganda. “Tudo é agro”,
reclamam os ruralistas em junho de 2023, para atacar a decisão do governo
federal de lançar dois Planos Safra 2023/2024: um para a agricultura corporativa
e outro para a agricultura familiar.
Há um conceito para os atos de fala ou de linguagem
que, além de expressar algo, também são uma ação. É o conceito de
“performativo”, que vem de performance: executar, fazer. Neste caso, a
comunicação do agronegócio e de seus representantes expressa e realiza, a todo
momento, o que ele é: monocultura e destruição da diversidade. Mesmo quando
outros segmentos da agricultura brasileira tentam acessar crédito nessas regras
inventadas por eles.
Em 2020, quando foi sancionada a nova Lei do Agro,
para ampliar o uso de mecanismos financeiros privados, o crédito para a
agricultura familiar havia secado. O governo Michel Temer havia acabado com o
Ministério do Desenvolvimento Agrário, e políticas públicas como o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA) passaram por anos de desmantelamento, agravados
por Jair Bolsonaro.
Em 2021, sete cooperativas ligadas ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – e que precisavam de recursos para
beneficiar sua produção – decidiram usar um dos instrumentos financeiros de
mercado, os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA). Aí se viu que “o
agro é tudo” – menos o MST.
“Era uma operação micro, R$ 17,5 milhões, mas
incomodou muita gente. O agronegócio tentou barrar de todas as formas”, recorda
João Pacífico, fundador da securitizadora que fez a emissão do CRA, a Gaia
Securitizadora. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) suspendeu por 30 dias a
oferta, depois de sua divulgação, e determinou que as cooperativas colocassem
explicitamente, no prospecto, que parte de seus associados se identificavam com
o MST.
Está lá, na página 184, na descrição dos devedores da oferta. “São
cooperativas agropecuárias; seus sócios proprietários (cooperados) são
agricultores familiares, os imóveis agrícolas onde atuam, estão sediados em
assentamentos da Reforma Agrária regulamentados pela Lei 8.629. Parte dessas
famílias, as quais constituem e prestam serviços às Cooperativas, se
identificam com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos
diversos movimentos sociais no país que buscam a implementação da reforma
agrária no Brasil.”
O Joio e O Trigo desafia os leitores a encontrar
outro prospecto de CRA que registre a atuação política dos devedores. Ou seu
time de futebol. “Algum desses cooperados, com certeza, torce pelo Palmeiras.
Mas isso ninguém perguntou”, ironiza Luís Costa, gerente do Finapop,
organização criada em 2020 para buscar financiamento e crédito a organizações
de famílias assentadas, e que participou da estruturação do CRA.
A suspensão determinada pela CVM e a ordem de
explicitar a relação entre cooperativas e MST foi somente um dos obstáculos que
a operação superou. Para serem realizadas, as emissões de CRA precisam de um
conjunto de atores ligados ao mercado: a securitizadora (organiza o processo, é
a responsável primeira linha), o coordenador líder (corretora onde o investidor
abre a conta, aporta o dinheiro, onde o título é oferecido), o agente
fiduciário (olha para a operação e confirma garantias previstas), o custodiante
registrador (cuida de regulamentos, registros, registro na CVM), o agente
liquidante (fecha a operação).
Pelo menos um deles recebeu ligações de clientes do
agronegócio, na noite anterior ao lançamento público da oferta, avisando que
“se trabalhar para o MST, tiramos o dinheiro daí”. Pelo menos um deles nunca
mais aceitou fazer um CRA ou outro tipo de emissão com cooperativas que tenham,
entre seus associados, participantes do MST.
Alguns escritórios de advocacia se recusaram a
trabalhar na operação. Os organizadores receberam – e não seguiram – a
orientação de cancelar a live de apresentação, divulgada somente para quem
tinha manifestado interesse nela. Luís, gerente do Finapop, ainda hoje não cita
nomes das empresas ou pessoas que agiram dessa maneira. Conta o caso para falar
das questões estruturais que impedem atores fora do modelito do agronegócio de
terem acesso a crédito adequado.
Concluído o processo, Pacífico publicou um texto. “Chorei por causa do MST”. A operação
foi um sucesso, ele se recorda. “O MST foi para a B3 dentro da regra de
governança mais exigente, a de ofertas para o varejo. Sete cooperativas
passaram no escrutínio. Aí fica difícil falar mal dos caras”, avalia.
No meio da conversa, lembra-se de outro detalhe: o
do jornalista inconformado com os juros oferecidos (5,5% ao ano), taxa mais
baixa que a do mercado. “Mas então os investidores perderam dinheiro!”,
reclamou o repórter. “Só que os investidores estavam dispostos a trazer um
impacto positivo ao mundo. Ninguém precifica as externalidades negativas dos
investimentos. Poluição, desigualdade, ninguém olha. Investir a 5,5% ao ano
ajudou o agricultor familiar, aumentou a renda dessas pessoas, levou recursos
para a agroecologia. Melhor do que ganhar 10% investindo em termoelétricas”,
responde Pacífico, de novo, ainda, em 2023.
A Gaia Impacto, que João Pacífico mantém depois de
ter vendido a parte de investimentos tradicionais de seu negócio, segue
captando recursos para cooperativas da agricultura familiar, populações
tradicionais e cooperativas de assentados da reforma agrária. O Finapop se
transformou em empresa em 2022 e continua em atuação, articulando 150
cooperativas e associações.
O prospecto de outro CRA, de 2023, cita o MST. Mas
não porque vá investir em assentados. Pelo contrário. É o da 207a emissão da Ecoagro, realizada para a Usina
Coruripe Açúcar e Álcool, de R$ 106 milhões. O
movimento aparece na parte dos “riscos”: “As terras da Devedora e/ou de seus
fornecedores podem ser invadidas pelo Movimento dos Sem Terra. A capacidade de
produção da Devedora e de seus fornecedores pode ser afetada no caso de invasão
do Movimento dos Sem Terra, o que pode impactar negativamente suas atividades e
sua capacidade de pagamento dos Direitos Creditórios do Agronegócio e por sua
vez o pagamento dos CRA pela Emissora.” A definição usada no mundo do
agronegócio para algo assim – de novo performativa e sempre atribuída a outrem
– é “postura ideológica”.
O registro de questões ideológicas em um documento
de emissão de CRAs não é de hoje. Em 2013, em um prospecto da 52a emissão
da Ecoagro para Produtores de Soja, sobrou até
para a Comissão Pastoral da Terra. “Movimentos sociais, como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Comissão Pastoral da Terra, são ativos no
Brasil. Invasões e ocupações de terrenos agrícolas por grande número de
participantes desses movimentos são comuns e, em algumas áreas, os
proprietários não contam com a proteção efetiva da polícia nem com
procedimentos eficientes de reintegração de posse. Não é possível assegurar que
as propriedades envolvidas nos contratos de parceria, arrendamento de terras,
alienadas fiduciariamente, de posse ou de propriedade do Devedor dos Créditos,
não estejam sujeitas à invasão ou ocupação por grupos desse tipo.“
·
Trinta anos
O Plano Safra 2023/2024 para a Agricultura Familiar
recebeu, como o Plano Safra Empresarial, um volume recorde de recursos. Mas
vejam a desproporção: são R$ 71,6 bilhões, enquanto o plano dos produtores de
commodities é de R$ 364,22 bilhões.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário e da
Agricultura Familiar ter o próprio plano safra incomodou o agronegócio. E não
se discute o fato de o mercado ter cada vez mais alternativas de financiamento
– sem abrir mão dos recursos públicos –, enquanto os agricultores familiares
enfrentam obstáculos para receber sua cota.
“Não é apenas a vontade política e a
disponibilidade que garantem que esses recursos cheguem de fato para as
famílias que estão produzindo alimento saudável. No caso das famílias
assentadas da reforma agrária, o problema é a garantia real exigida pelos
bancos. Nossos assentados não têm propriedade da terra. A propriedade é da
União. Não haveria problema com isso, desde que as famílias pudessem pagar os
empréstimos com sua própria produção. A gestão pública deveria subsidiar essa
agricultura da produção de alimentos”, constata Dirlete Teresinha Dellazeri, da
direção da Copran, cooperativa de Arapongas, no Paraná.
Um exemplo é o assentamento Santa Maria, em
Paranacity (PR), que tem 234 hectares e foi criado em 1983. Somente depois de
30 anos de existência conseguiu aprovar um projeto para receber empréstimo pelo
Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. A Copavi,
cooperativa do assentamento, reúne 104 associados e é uma das sete cooperativas
financiadas pelo CRA do MST.
Jovens e mulheres são muito atuantes dentro da
cooperativa. Cristina Sturmer é economista e faz parte da diretoria
compartilhada. “Quando a gente foi assentado, minha mãe, Claudete, não tinha
terminado o segundo grau. Ela fez parte da diretoria. A cooperativa tinha uma
uma política de garantir que as pessoas fizessem Supletivo, Ensino de Jovens e
Adultos. Então minha mãe terminou o Ensino Médio e passou na universidade
pública. Não terminou o curso, mas fez dois anos de Serviço Social, já com 45 anos.
Os mais novos sempre tiveram incentivo para estudar. Temos veterinário, temos
agrônomo”, ela conta.
Depois de duas gerações, uma delas formada pela
primeira vez em universidades, a Copavi conseguiu recursos do Pronaf por meio
do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul. “Os bancos não veem a
gente como cliente, como prioridade. Dá muito trabalho, para eles, entender um
empreendimento diferente da maioria. Não é uma empresa. São agricultores e
agricultoras que querem produzir na terra de modo coletivo. Eles não veem isso
como rentável, veem somente como um risco. Não existe esse processo de
democratização de acesso a crédito adequado”, explica Cristina.
O primeiro obstáculo é a exigência de garantia real
– a terra. Assentados da reforma agrária não têm títulos individuais de terras
e, mesmo que tivessem, explicam Cristina e Luís, não querem dar algo que tanto
custou conquistar, onde vivem e produzem, em garantia de empréstimos.
Para esses agricultores, a terra não é um
patrimônio, um ativo. É a forma de produzir e reproduzir a vida. No caso do
MST, o lastro do CRA foram Cédulas do Produto Rural Financeiras (CPR-F) e as
garantias adicionais foram a produção das cooperativas (arroz em casca, soja,
leite UHT, leite em pó, milho e açúcar mascavo) e recebíveis de contratos de
fornecimento de alimentos saudáveis para prefeituras.
Outro obstáculo é que o que a agricultura familiar
produz e a maneira como produz não cabem no formato de projetos com os quais os
bancos gostam de lidar. “Os pacotes dos bancos são direcionados para aquele
modelão de produção: adubo químico, veneno, vaca e trator”, conta Luís Costa,
do Finapop.
“As empresas que vendem insumos têm agrônomos ou
técnicos agrícolas que dão assistência para as famílias. Montam o pacote que
elas precisam para ir ao banco pegar recursos e esses recursos vão direto para
pagar o fornecedor de insumos. Aí chega um agricultor da agroecologia querendo
comprar adubo orgânico, semente. Mesmo com o Pronaf Agroecologia foi difícil
aprovar projetos. Os bancos perguntavam como iriam fiscalizar sementes
orgânicas que, dependendo de onde são obtidas, sequer têm nota de origem.”
Os indicadores usados para fazer a análise dos
projetos também não são adequados. Desconsideram diferenças entre as regiões do
país, outras formas de organizar a produção e externalidades positivas, como
conta Cristina.
“Quando a gente usou crédito para modificar a
estrutura de moagem de nosso engenho, aumentou a extração de caldo. Geramos
mais produtos para vender. É um indicador econômico. Mas a gente agora
consegue, também, secar o bagaço da cana e queimar na caldeira. Diminuímos o
consumo de lenha. O maior efeito não é econômico: a gente está formando uma
estrutura quase sustentável do ponto de vista da energia. E isso não entra no
indicador.”
A Copavi consegue lidar com a complexidade de
documentos e enorme burocracia porque formou, no assentamento, pessoas que
sabem fazer isso. Não é a regra entre pequenos agricultores. “Pessoas que estão
lidando nesses empreendimentos às vezes não têm condição de compreender, de
preencher a papelada. É uma burocracia significativa para um recurso que às
vezes é pequeno, e isso barra as pessoas no primeiro momento”, constata
Cristina.
E, para quem consegue superar esta fase, muitas
vezes a resposta é “não”. Não fosse a disposição do Banco Regional de
Desenvolvimento do Extremo Sul de realizar parceria com a Copavi, não haveria
financiamento. “Apresentamos um documento de 50 páginas, um dossiê de nossa
história, de como estão nossos processos produtivos, o que projetamos para os
próximos anos e onde esse crédito entraria. Enviamos documentos da diretoria e
da cooperativa. Não foi um processo longo mas foi trabalhoso. E se efetivou”,
celebra.
A Copavi decidiu, no ano 2000, tornar agroecológica
toda sua produção. São 500 toneladas de derivados de cana (melado, açúcar
mascavo e cachaça), 75 mil litros de leite orgânico certificado, iogurte,
queijo e 45 toneladas de hortifrutis por ano. Seus produtos são orgânicos,
certificados pela Rede Ecovida de Agroecologia, e a linha de derivados de cana
possui certificação para a exportação para União Europeia fornecida pela
Associação de Certificação Instituto Biodinâmico.
No início de 2023, com outras cooperativas do
Paraná, a Copavi fez um Plano de Desenvolvimento, como uma forma de pressionar
os governos por mais políticas públicas. “Nossa necessidade não é apenas o
crédito direto, mas também investimento em estradas rurais, captação e
aproveitamento de água. Este plano engloba infraestrutura, que é uma dívida
histórica do Estado brasileiro com as populações rurais. Investimentos em
habitação, saneamento básico no campo”, conta.
A demanda de investimentos de longo prazo é de R$
25 milhões. “Com infraestrutura de energia solar, captação e aproveitamento de
água nas indústrias, saneamento básico, estrada, nosso projeto de laticínio”,
enumera Cristina.
Para o curto prazo seriam necessários R$ 7,5
milhões. “Capital de giro, a estrutura do laticínio de leite orgânico, a
reforma do canavial e o plano de reflorestamento para a área de 10 hectares que
selecionamos, no assentamento, para fazer parte do Plano Nacional Plantar
Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis e estamos revitalizando”, continua
Cristina. O crédito recebido pela Copavi via Pronaf foi de R$ 800 mil.
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Isso não é tudo
Se bancos e assistência técnica rural não conseguem
enxergar a viabilidade e a importância de dar crédito da agricultura familiar a
uma cooperativa como essa, o que dizer de camponeses/as que fazem agroecologia
em suas terras e quintais?
“Eles não consideram uma associação de mulheres
quilombolas um negócio. O que chamam de agricultura familiar é o agronegocinho
– aquele mesmo pacote, mas de tamanho menor. E em lugares privilegiados do
ponto de vista estrutural nas regiões Sul, Sudeste e Centro- Oeste”, sintetiza
Cristina, explicando que mesmo parte dos recursos da agricultura familiar é
capturada pela cadeia do agronegócio.
Dirlete, da Copran, se lembra do tempo em que a
produção familiar era diferente. “Cresci no campo, vendo meu pai e minha mãe
plantarem feijão. Nunca vi nenhum dos dois com uma máquina de passar veneno.
Nós destruímos o ecossistema e temos que começar a recuperar. Não podemos
deixar como está para nossos filhos e netos porque não foi assim que recebemos
de nossos pais. Não precisa voltar naquela época, mas precisa de uma tecnologia
adequada para hoje. A ciência evoluiu e nós evoluímos como humanidade.”
A lógica do Pronaf é a mesma da agricultura
empresarial: limitar o incentivo à produção de determinadas e poucas espécies
alimentares. E a produção agroecológica é feita com biodiversidade, manejo
combinado de alimentos, cultivo de floresta. Os bancos tampouco consideram o
tempo de trabalho que tem de ser aplicado nesta produção. Quando uma camponesa
recebe crédito para criar galinhas, os recursos passam de imediato para o
fornecedor de insumos. De que ela vai viver enquanto as galinhas não estão
botando ovos?
Enquanto colhia café catado – quando se pega
somente o grão que já madurou, está docinho – com uma quilombola no Vale do
Ribeira, Miriam Nobre, da Sempreviva Organização Feminista, ouviu este relato
de como a vida é.
A camponesa tinha dificuldade de fechar a mão por
causa de um acidente de trabalho, um machucado com o facão que prejudicou seu
tendão. Trabalhava no pedágio e, quando voltava, corria para fazer as coisas da
roça e da casa antes de as crianças chegarem da escola. Na pressa das muitas
coisas por fazer, se feriu. O trabalho no pedágio foi a solução para pagar um
empréstimo para plantar pupunha orgânica. O pupunhal fracassou: foi destruído
por um fogo que o vizinho ateou em sua roça.
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Há produção
De acordo com o Censo Agropecuário 2017, 1,6 milhão
de agricultores e agricultoras produzem principalmente para o autoconsumo.
“Além de ser diversa, esta produção é grande”, conta Sarah Luiza Moreira,
militante da Marcha Mundial das Mulheres e do GT Mulheres da Articulação
Nacional de Agroecologia (ANA). As Cadernetas Agroecológicas, em que mulheres
do campo por todo o país anotam o que plantam, o que colhem e quem consome,
mostram um volume importante de valores não contabilizados como produção.
“É uma produção invisível porque não é direcionada
para o mercado. Não gera dinheiro, gera vida. A produção para o autoconsumo é
feita geralmente por mulheres e gera alimentos saudáveis, sem veneno, em uma
lógica diversificada que preserva o ambiente ao mesmo tempo que garante a
alimentação das famílias e comunidades”, relata Sarah.
Essa produção cria segurança alimentar para as
famílias. Se não existisse, elas precisariam comprar mais alimentos. “Isso
precisa de apoio do Estado, a partir de políticas públicas. Por isso, a nossa
grande luta não é apenas por crédito. As mulheres precisam de apoio para manter
sua produção e não para entrar em dívidas com bancos. Políticas públicas de
acesso à água, de reforma agrária, para fomento produtivo”, explica.
Dirlete cita, antes de responder às perguntas que
lhe enviamos, números que, insiste ela, precisam ser considerados na sua devida
dimensão: a de questionar onde, afinal, o país deseja investir uma parte tão
importante de seus recursos públicos.
“Em 2022, na agricultura familiar, tivemos apenas
14% da destinação dos créditos, enquanto o agronegócio teve 86%. Eles
concentram 76% das terras agricultáveis. A comida produzida para o povo
brasileiro foi 70% produzida pela agricultura camponesa. E 74% da mão de obra
do campo é da agricultura familiar. Os empresários do agronegócio criam um
campo sem gente”, enumera.
O agronegócio divulga que os recursos do Plano
Safra correspondem a apenas um terço de sua necessidade de expansão. Dirlete
está olhando para a necessidade de ampliar a produção de alimentos. Explica que
dois programas importantes criados nos primeiros governos Lula – o Plano
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA) –, agora em processo de reconstrução, são importantes não apenas porque
financiam a agricultura familiar mas porque, ao fazê-lo, incentivam a
diversificação da produção.
“Ninguém vai plantar alface, pepino, abóbora,
beterraba, cenoura, melancia sem saber para quem vai vender. Incentivar a
produção diversificada é a coisa mais fundamental que o PAA e o PNAE têm,
porque muitos pequenos agricultores acabam plantando milho e soja porque têm
certeza de que vão vender”, alerta.
Ainda assim, planta-se comida. Na chamada aberta
este ano pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), para comprar R$ 300
milhões em alimentos, a agricultura familiar apresentou R$ 1,1 bilhão em
propostas. E isso porque há um limite: cada família só pode vender R$ 15 mil
por ano. De acordo com Edegar Pretto, presidente da Conab, foram recebidas
propostas de 77 mil famílias e 77% delas foram ofertadas por mulheres.
“Nós produzimos muito mais! Muita gente ficou de
fora, muita gente nem entrou. A Copran tem um CNPJ e 1.045 famílias associadas.
A gente poderia, com o CNPJ, apresentar um projeto de até R$ 1,5 milhão. É
muito pouco, em um programa importantíssimo. O povo está precisando comer e a
oferta de R$ 1 bilhão mostra que temos comida.”
Enquanto o agronegócio segue na guerra ideológica
para expandir seu modo de produção, pequenas agricultoras e agricultores
trabalham por políticas públicas que enxerguem a diversidade da população, da
produção e dos modos de produzir. “Não estamos pegando um recurso para comprar
uma caminhonete toda equipada ou para colher milhões de sacas de soja e milho.
Não estou dizendo que isso não é importante: estou dizendo que os recursos
públicos são nosso caixa comum, do povo brasileiro”. Dirlete está dizendo que o
agronegócio não é tudo.
Fonte: Por Patricia Cornils, especial para o Joio e
o Trigo
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