quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Jair de Souza: Reflexões sobre as questões identitárias para a militância de esquerda

O debate relacionado com as causas identitárias vem ganhando destaque entre a militância de esquerda em razão das posturas tomadas pelo atual presidente do Chile, Gabriel Boric.

Conforme pode ser constatado ao analisar seus pronunciamentos, Boric tem se mostrado um aguerrido lutador em favor de muitas das pautas associadas ao combate à homofobia e à misoginia, às lutas contra a discriminação racial e pela descriminalização do aborto, etc.

Por outro lado, várias das principais reivindicações históricas do movimento trabalhista vêm recebendo por parte dele escassa atenção. Pouca ênfase tem sido dada às lutas que questionam as bases de sustentação da exploração capitalista. A organização autônoma e consciente da classe trabalhadora não é tida como uma de suas principais preocupações. E isto não contribui positivamente nas lutas trabalhistas por aumentos salariais, melhores condições de trabalho, diminuição da jornada laboral, eliminação ou redução do desemprego e por amparo previdenciário, por exemplo.

Além disso, Boric também rompeu com a tradição anti-imperialista da esquerda latinoamericana e vem se mostrando como um fiel aliado da linha política traçada pelo imperialismo estadunidense para a América Latina e para o mundo em geral. Tanto assim que ele se tornou um dos mais agressivos detratores dos governos dos países que mais resistem à imposição da hegemonia dos Estados Unidos nesta região, ou seja, Cuba, Venezuela e Nicarágua.

Em meu entender, é inaceitável que um militante consciente de esquerda ignore a importância das lutas que visam pôr fim às discriminações raciais, de gênero, de homofobia e todas as demais do tipo das mencionadas mais acima neste texto. No entanto, isto não deveria implicar em nossa concordância em colocar tais reivindicações como prioridades exclusivas em nossos esforços por construir um mundo com justiça e dignidade para toda nossa população.

O objetivo primordial de todos os que estamos engajados no processo que busca forjar uma sociedade mais igualitária, justa e solidária é participar ativamente da luta para que tenhamos um mundo no qual os direitos básicos de todo ser humano sejam atendidos. Lutamos por um mundo onde ninguém passe fome; onde não haja nenhuma criança desamparada e sem escola; um mundo no qual nenhum trabalhador esteja desempregado e nenhum ser humano tenha de viver ao relento e sem assistência médica; entre outras coisas. No que diz respeito a nosso posicionamento internacional, estamos determinados a não aceitar que os destinos de nossa nação estejam subordinados aos desígnios de outras potências estrangeiras. Por isso, estou convencido de que uma esquerda de verdade tem de ser necessariamente anti-imperialista.

Portanto, todos os que compartilham conosco desses sonhos e desejos estão aptos a desempenhar um papel ativo no processo de embates com vistas a concretizar nossos objetivos. Não podemos e não devemos concordar passivamente com nenhuma discriminação injusta praticada contra ninguém que se enquadre neste amplo leque de pessoas.

Contudo, para nós da esquerda, não dá no mesmo irmanarmo-nos às causas feministas das mulheres trabalhadoras que às aspirações das mulheres das classes dominantes; não pode ser igual nosso engajamento na defesa dos direitos dos trabalhadores negros que no apoio às pretensões de igualdade dos capitalistas afrodescendentes a seus pares de raça branca; não podemos equiparar a solidariedade que devemos prestar  a homoafetivos de extração popular com a destinada aos poucos deles que compõem o grupo dos exploradores; nunca deveríamos ignorar que existem diferenças gritantes entre a imensa maioria dos integrantes de nossos povos originários e aqueles indivíduos vinculados a anseios alheios aos do conjunto de suas próprias etnias. 

Lamentavelmente, as classes dominantes parecem ter entendido melhor a maneira adequada de lidar com as questões identitárias do que nós da esquerda.

Creio estar evidente que nossos grandes capitalistas aprenderam a situar sempre em primeiro lugar os interesses essenciais de sua própria classe. Até mesmo o nazismo bolsonarista, que representa o nível da degradação moral mais abjeta a que a as classes dominantes podem chegar, sabe que o que deve prevalecer são os interesses materiais concretos das classes às quais essa nefasta ideologia serve.

É por isso que, apesar de toda sua podridão racista, o nazismo bolsonarista não vacilou em colocar no comando da fundação mais significativa na história da defesa de nossos afrodescendentes uma pessoa de pura cepa africana. Como o escolhido para exercer essa função também estava comprometido com a manutenção dos privilégios das classes dominantes, a cor de sua pele não tinha a menor importância.

Embora o nazismo bolsonarista se nutra de um ódio colérico contra nossos povos originários e se empenhe para extirpar de nossa terra todos os vestígios ainda existentes de nossos aborígenes, eles costumam acolher sem vacilação a qualquer adepto deles provenientes que se disponha a servir nas hostes de seus exterminadores. Ainda deve estar fresco em nossa memória o caso do índio nazibolsonarista que tantos danos nos causou durante os preparativos para o golpe de Estado de 8 de janeiro passado. Em outras palavras, ainda que os nazibolsonaristas odeiem profundamente os povos indígenas, todo indígena que demonstre estar disposto a aderir a suas ideologia e prática macabras será bem aceito por eles.

Em resumo, nós da esquerda queremos com sinceridade pôr fim a todas essas discriminações odiosas que afligem a nossa população. No entanto, os interesses essenciais das classes com as quais nos identificamos precisam sempre ser nossa prioridade. São esses interesses prioritários os que deveriam balizar nossas condutas.

Estamos cientes da justeza da luta para eliminar os preconceitos de tinte identitário. Nossa obrigação moral e ética é travar o combate para erradicá-los de nosso seio. Entretanto, precisamos ter clareza sobre a preponderância das questões reais que possibilitam a exploração das maiorias por pequenos grupos de cunho oligárquico. Devemos estar dispostos a acolher e prestar solidariedade a todos os que são vítimas de preconceitos. Porém, a centralidade das questões socioeconômicas não pode ser ignorada. A luta contra as discriminações identitárias faz todo sentido, desde que esteja umbilicalmente acoplada à luta geral para a solução dos problemas mais prementes das classes trabalhadoras.

 

Ø  Michel Zaidan: O custo da governabilidade

 

Houve uma certa reação  dos eleitores  de Lula, com a entrada de partidos de centro-direita, como os Republicanos, os Progressistas e União Brasil, na base do governo, na Câmara  dos Deputados. Mas uma constatação  se impõe - Lula  não tem maioria no Poder Legislativo e isso causa grandes problemas para sua governabilidade.  

O presidencialismo expõe a solidão do poder e a inescapável necessidade de formar maiorias parlamentares para aprovação  das pautas legislativas do Poder Executivo, sob pena da solidão virar  ingovernabilidade. Reina, mas não governa. Há um consenso  geral de que a atual legislatura  é  uma das mais conservadoras dos últimos  tempos. Os partidos são um ajuntado de dissidentes e aproveitadores sem nenhum espírito  republicano. Vivem de olho no que podem arrancar do governo em termos  de emendas, cargos e nomeações. 

Parte substancial do Orçamento  da União é para garantir esse apoio, que custa caro e é  precário  ou provisório. Diante da chantagem  dos partidos, o presidente se vê diante do dilema de trair a sua agenda ou não governar, com votações contrárias aos seus projetos. A aprovação  do Arcabouço  Fiscal e da Reforma  Tributária custou bilhões  em forma de emendas parlamentares e ministérios. 

Pode -se alegar que, dessa forma, a gestão ficou desfigurada e não valeu a pena ganhar as eleições.  No entanto,o governo resiste em entregar o núcleo duro de sua gestão (Saúde, Educação, Fazenda, Planejamento, Meio Ambiente). Porque aí sim, estaria comprometida de vez a gestão. O risco é que a cada votação importante no Congresso, a sanha avassaladora por benefícios ameace a entrega daquele núcleo  duro. Instalaria-se um cabo de guerra, a ponto de se partir a qualquer hora, E isso inviabilizaria a continuidade do governo. 

Tem gente que torce  para que isso aconteça e crie condições para uma candidatura de direita, nas próximas eleições presidenciais. Um ambiente de crise e paralisia administrativa seriam um caldo de cultura  ideal para um candidato como, por exemplo,Tarcísio de Freitas, que quer se apresentar  como uma direita moderada, diferente do bolsonarismo radical.

De todo jeito, Lula precisa de muito jogo de cintura para administrar as pressões, sem pôr a sua agenda em risco e frustrar os eleitores. Não há porque estranhar essas espinhosas negociações partidárias. São  contingências do nosso mal chamado presidencialismo de coalizão e a inevitável  convivência com aquele que pensa diferente  de nós.

 

Ø  Ana Maria Oliveira: O técnico e o ideológico estão mais próximos do que parece

 

Um debate intenso se instaurou entre governo, mídia e uma parte da sociedade nos últimos dias, ao se repercutir a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de nomear o economista e professor Márcio Pochmann para a presidência do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). 

Tratou-se de questionar a decisão como essencialmente “ideológica” e se propalou que Lula deveria ter priorizado o aspecto técnico pela função que o IBGE desempenha. Alegou-se, ainda, que há outros profissionais competentes não ligados necessariamente ao Partido dos Trabalhadores (PT).  

Sustentando essa posição, esses setores trataram os aspectos técnico e ideológico como opostos entre si. Pretendo, com este artigo, dar uma contribuição a esse debate, argumentando que a técnica e a ideologia estão mais próximas do que parece. E que o dilema criado não tem bases sociológicas consistentes.

A palavra técnica origina-se do grego tékhne, que significa arte ou ciência. Uma técnica é um “arranjo” criativo e um procedimento que visa, através do uso de determinado método, deve produzir um resultado final.  Em princípio, quando se pensa em técnica, vem-nos à mente a ideia geral de habilidade ou de conhecimento específico para se fazer algo. Diversos estudos já se produziram sobre isso, mostrando que o uso da técnica não é um procedimento neutro pois envolve decisões relacionadas a  valores e princípios de quem as utiliza.  

Em meados do século XX, a Escola de Frankfurt ocupou-se em aprofundar as repercussões do uso da técnica e apontou o seu caráter negativo quando usada, mais do que um meio, como objetivo para se alcançar a obra final. Autores dessa corrente criticaram os impactos de uma técnica objetificadora e ocupada somente com os resultados.

Theodor Adorno e outros filósofos proeminentes não deixaram de questionar os meios de comunicação de massa, especialmente a televisão e o rádio, quando limitam-se a entreter e a divertir o público. A que objetivos servem esses meios, perguntaram os filósofos. Ademais, mostraram que a existência da mídia, por si só, não contribui necessariamente à democratização da sociedade, caso os seus conteúdos e objetivos não visem o interesse público.

·         Ideologia

Para o cientista político Norberto Bobbio, que produziu o Dicionário de Política em coautoria com Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, a palavra ideologia pode ser identificada por dois significados. O “significado fraco” designa um conjunto de sistemas de crenças políticas, ou um conjunto de idéias e valores relativos à ordem pública, tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos. 

Já o “significado forte” tem origem no conceito formulado por Karl Marx e significa uma falsa consciência das relações de domínio entre as classes. Sob essa visão, a ideologia denota o caráter mistificador de falsa consciência de uma crença política. 

A concepção de base marxista terá uma singular evolução no pensamento teórico ao longo dos anos. No entanto, contemporaneamente, em estudos e pesquisas da Ciência Política e Sociologia tem predominado o “significado fraco”. Essa vertente vem embasando a interpretação e muitos estudos comparativos entre sistemas políticos, como também a investigação dos sistemas de crenças políticas existentes nos estratos mais politizados de uma sociedade e entre o conjunto dos cidadãos. 

Retomo o argumento central, ao afirmar que não é possível distinguir decisões técnicas de ideológicas. Se governos, pessoas e grupos, como partidos políticos, ONGs, mantêm um conjunto de valores e crenças relativas à ordem pública e atuam a partir deles, têm uma ideologia. A técnica, por sua vez, não é “neutra”, pois seu uso está ligado a determinados meios e fins.   

Certamente, a escolha de Márcio Pochmann para dirigir o IBGE, que produz informações e dados de grande relevância para o País, está baseada na intenção (ideológica) de Lula. O presidente já destacou a importância da instituição dos pontos de vista econômico e social, uma  vez que as pesquisas orientam a formulação de políticas públicas e embasam diagnósticos sobre a situação social da população. Deve-se reconhecer, também, que o presidente escolheu Pochmann (aspecto técnico) porque este desfruta de uma sólida formação e experiência em Economia, como professor da Unicamp, criador de centros de pesquisa e dirigente de diversas renomadas instituições como o Ipea  (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

 

Fonte: Brasil 247

 

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