terça-feira, 29 de agosto de 2023

Como a cultura da impunidade nas Forças Armadas perdura após 44 anos de Lei da Anistia

Lei da Anistia completou neste 28 de agosto 44 anos. Promulgada pelo último presidente da ditadura militar, o general João Baptista Figueiredo, a legislação concedeu o perdão aos perseguidos políticos (que o regime ditatorial chamava de subversivos) e, dessa forma, pavimentou o caminho para a redemocratização do Brasil.

Foram anistiados tanto os que haviam pegado em armas contra a ditadura quanto os que simplesmente haviam feito críticas públicas aos militares. Graças à lei, exilados e banidos voltaram para o Brasil, clandestinos deixaram de se esconder da polícia, réus tiveram os processos nos tribunais militares anulados, presos foram libertados de presídios e delegacias.

Por outro lado, a lei é considerada por muito setores progressistas frustrante por também ter deixado impunes agentes da repressão do regime militar, cujos delitos jamais deveriam ter sido perdoados. Crimes de lesa-humanidade, como sequestros, torturas, prisões arbitrárias, execuções, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres.

·         Militares continuam na política

Outro aspecto que merece reflexão na análise sobre os efeitos da Lei de Anistia foi o mito de que os militares, depois da promulgação da Constituição de 1988, haviam abandonado a política. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 desfez essa ilusão. 

No livro República de Segurança Nacional - militares e política no Brasil (Editora Expressão Popular, Fundação Rosa Luxemburgo, 2022), o pesquisador sobre o pensamento político dos militares brasileiros e a justiça de transição, Rodrigo Lentz, mostra que a chegada do capitão expulso do Exército ao Palácio do Planalto sepultou a crença de que a queda da ditadura militar, em 1985, havia colocado um ponto final no envolvimento dos militares com a política brasileira.

Lentz, que é doutor em ciência política pela Universidade de Brasília (UnB) e foi consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e coordenador da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, conversou com exclusividade com a Fórum sobre de que forma a Lei da Anistia pode explicar o cenário atual no qual há uma estratégia em curso para isentar as Forças Armadas do papel desempenhado durante os atos golpistas de 8 de janeiro.

O cientista político, que integra a Comissão de Anistia do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, comenta que a Lei de Anistia resultou em uma cultura de impunidade nas Forças Armadas. 

Não há dúvidas que a permanência da interpretação da Lei de Anistia pelo viés da impunidade e da “auto-anistia” produziu uma cultura da impunidade nas Forças Armadas. Isso inclusive se estende aos militares estaduais, nos chamados IPM’s (Inquérito Policial Militar), no Ministério Público (que deveria, mas não exerce controle das polícias) e no judiciário estadual. Essa cultura da impunidade alimenta o mito do “Exército de Caxias” e uma imagem falsa sobre a relação entre democracia e militares. Até hoje, em qualquer organização militar do país, a ditadura de 64 é institucionalmente chamado de marco democrático. Então uma coisa chama a outra.

Para ilustrar essa análise, nesta segunda-feira (28), por exemplo, o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) afirmou em entrevista ao Fórum Café que existe um veto do Governo Lula, partindo de José Múcio Monteiro, ministro da Defesa, contra a investigação de militares envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro

Em outra frente, o comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva, tem se emprenhado pessoalmente na missão de blindar a força e "preservar a instituição" diante do avanço das investigações na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas, que mira a atuação de militares entre apoiadores do ex-presidente de extrema direita que promoveram a depredação da sede dos três poderes em 8 de janeiro.

·         Militares no Governo Bolsonaro

Durante os quatro anos do Governo Bolsonaro a presença de militares alimentou temores na sociedade de que o Brasil viveria um novo período de ditadura diante das constantes ameaças autoritárias do ex-presidente.

Esse medo não foi sem razão, afinal, com a derrota de Bolsonaro para Luiz Inácio Lula da Silva nas Eleições de 2022 vivenciamos um verdadeiro show de horrores, com bloqueio de estradas, acampamentos abarrotados de bolsonaristas fantasiados de patriotas em frente a quartéis por todo o Brasil, em especial em frente ao Forte Apache, em Brasília-DF. Houve ainda atos de vandalismo na Capital Federal no dia da diplomação de Lula, em 12 de dezembro; e até tentativa de explosão de bomba no Aeroporto Internacional de Brasília na véspera do Natal de 2022.

Esse movimento golpista culminou com o 8 de janeiro. Mas começou com a eleição de Bolsonaro, em 2018, com apoio ferrenho das Forças Armadas, anistiadas pelos crimes da ditadura militar de 1964.

Para Lenzt, o casamento entre Bolsonaro e os colegas da caserna, ajudou na ascensão do ex-capitão ao Palácio do Planalto, embora não seja a única explicação.

Eu diria que ajudou a criar as condições para essa ascensão. Embora seja discutível o que chamamos de “bolsonarismo”, entendo que ele é um subproduto de nossa cultura militar. E nela, o viés da impunidade e da legitimação do terrorismo de estado faz edifício.

·         Comissão de Anistia

Criada em 2001, durante o primeiro mandato de Lula, a Comissão de Anistia promoveu uma das maiores políticas de reparação a violações de direitos humanos do mundo. No entanto, chegou tarde, pois a Constituição de 1988 já determinava que o Estado brasileiro deveria reconhecer e indenizar as vítimas da ditadura militar.

Em razão da fragilidade da transição democrática no Brasil, conduzida pelos militares, esse processo de reparação demorou 13 anos. Com a chegada de Bolsonaro à presidência, o foco da Comissão foi subvertido e, ao invés de amparar as vítimas, passou a minimizar os horrores do regime militar.

Agora, no Governo Lula 3, a Comissão de Anistia retomou seu objetivo de reparação às perseguições cometidas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, o que inclui a ditadura militar. Em março deste ano, o órgão voltou a se reunir e vem dando seguimento aos processos com a revisão de milhares de pedidos de reparação que foram negados durante os governos de Bolsonaro e Michel Temer e que agora podem ser deferidos pelo colegiado. A estimativa é de que pode ser de quatro mil até oito mil a nove mil processos.

Lentz, que integra a Comissão de Anistia, comenta a importância do órgão no processo de reparação às vítimas da ditadura militar.

A grande missão constitucional da Comissão de Anistia é a promoção da reparação. A partir do governo Lula 2, na gestão de Tarso Gento e Paulo Abrão, a própria concepção de anistia foi alterada: não de se trata de uma auto-anistia, em que o Estado concede “perdão” à vítima”; mas um pedido de desculpas do Estado às pessoas que foram perseguidas por motivação política e vítimas de graves violações de direitos humanos. E não apenas de forma individual, mas também coletiva, pois toda a sociedade sofreu consequências da ditadura e prescinda ser reparada.

·         Homenagens a torturadores

Nesse caldeirão de impunidade criado pela Lei da Anistia, ao longo do Governo Bolsonaro foi normalizado o negacionismo sobre os horrores do regime militar e até mesmo homenagens a torturadores. Exemplo recente desse fenômeno foi a aprovação de um projeto de lei, pela Assembleia Legislativa de São Paulo, que batiza um viaduto com o nome do coronel Erasmo Dias. Ele ficou conhecido pela brutalidade com que agia contra os adversários da ditadura.

Lentz avalia que esse tipo de medida serve para engajar apoiadores da extrema direita. Ele também faz uma crítica dirigida ao campo democrático, que ao longo de anos deu pouca atenção a esse tipo de manifestação. Foi o caso da atuação de Bolsonaro por quase três décadas como parlamentar, período no qual fez inúmeros elogios à ditadura, mas foi tratado como figura folclórica até ser transformado em um "mito".

São gestos ideológicos para sua base, visando alimentar uma coesão cultural que o campo democrático nas últimas décadas deu pouco atenção. E gestos como esses são legitimados pela cultura da impunidade. Afinal, qual o problema em homenagear agentes públicos que jamais foram julgados pela justiça? Isso também ajuda na legitimação do atual terrorismo de Estado, como ocorreu recente na Baixada Santista.

No caso da homenagem ao coronel torturador em São Paulo, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia quer explicações tanto do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), afilhado político de Bolsonaro, quando do presidente do legislativo estadual, deputado André do Prado (PL).

 

Ø  Coronel Lawand tinha imagens com teor golpista no celular

 

Ex-subchefe do Estado Maior do Exército, o coronel Jean Lawand Júnior mantinha imagens com teor golpista e de exaltação à ditadura militar salvas na galeria do seu celular. Lawand é investigado pela CPMI do 8 de Janeiro por sugerir um golpe de Estado em conversa com o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro.

O militar teve o sigilo telemático quebrado pela CPMI. As imagens estavam salvas no iPhone de Lawand e foram obtidas pela coluna. Uma delas tinha um brasão com o slogan “Deus, Pátria, Família, Liberdade”, usado por Bolsonaro na campanha eleitoral, com um pedido de “S.O.S.” às Forças Armadas. É comum ver a mesma mensagem em atos antidemocráticos e em defesa de uma intervenção militar.

Lawand salvou um print do site Jusbrasil, com o artigo 142 da Constituição. Bolsonaristas defendem, de forma equivocada, que o trecho autoriza as Forças Armadas a atuarem como poder moderador, o que permitiria uma intervenção militar em períodos de crise. O STF, em manifestação sobre o tema, classificou a interpretação de “terraplanismo constitucional”.

Outra imagem encontrada no celular de Lawand trazia a bandeira do Brasil com a frase: “Liberdade não se ganha, se toma!”. O coronel guardava uma postagem do polemista Olavo de Carvalho em que ele afirmava que uma “democracia não pode ser instaurada por meios democráticos” […] “nem pode, quando moribunda, ser salva por meios democráticos”.

O militar também mantinha diversas imagens laudatórias à ditadura militar, como capas de jornais da época; entre elas, havia uma do Correio da Manhã com a manchete: “Por causa do povo em massa nas ruas é que houve a intervenção militar”.

Outra imagem citava o general Humberto Castelo Branco, primeiro ditador do regime militar, e sugeria que a ditadura era uma alternativa melhor ao sistema democrático atual. “Castelo Branco desfilou sob aclamação do povo, em 1965. Os vermes de hoje têm que se esconder do povo e só circulam em aviões da FAB e jatos particulares às custas do povo, de quem roubam o sangue, o suor e a dignidade”, dizia o texto.

Lawand também guardava imagens com conteúdo político, como um discurso do empresário Luciano Hang a favor do bolsonarismo e a foto de uma manifestante exaltando o ex-deputado nacionalista Enéas Carneiro. “Faltam sete dias para derrotarmos o socialismo”, dizia outra imagem, com os rostos de Lula e Fernando Haddad atrás de um sinal de proibido.

 

Ø  Cadeia de verdade: PGR quer transferência de militares golpistas para que haja "disciplina mínima"

 

A Procuradoria-Geral da República (PGR) solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF), na última sexta-feira (25), que militares presos por omissão nos atos golpistas de 8 de janeiro fossem transferidos para outras unidades militares.

Os sete militares em questão foram presos preventivamente em operação realizada pela Polícia Militar e pela PGR no último dia 18 e são ex-integrantes da cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal. A acusação é de que os oficiais conheciam previamente os riscos do atentado golpista às sedes dos Três Poderes e deixaram de agir para impedir o vandalismo, sendo omissos.

·         Detenções irregulares

O subprocurador-geral da República, Carlos Frederico Santos, explicou que o 19º Batalhão da PM, onde os investigados estão cumprindo prisão preventiva, apresenta indícios de não ter “condições para caucionar disciplina mínima”. A mudança busca evitar que haja “intercorrências de subversão da ordem e disciplina”.

Dos sete militares presos, cinco são coronéis. A PGR pede que eles sejam supervisionados por um coronel com patente de antiguidade superior, após receber informação da Secretaria de Segurança Pública do DF de que três deles estão sob supervisão de um major, posição inferior na hierarquia militar.

A PGR também identificou irregularidades nas detenções, como uma visita da esposa do coronel preso Jorge Eduardo Naime, sem autorização do comando da unidade militar.

Outros presos na operação foram os coronéis Klepter Rosa Gonçalves, Marcelo Casimiro Vasconcelos Rodrigues, Paulo José Ferreira de Sousa Bezerra e Fábio Augusto Vieira; o major Flávio Silvestre de Alencar; e o tenente Rafael Pereira Martins.

 

Fonte: Fórum/Metrópoles

 

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