quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Amarílis Costa: Reflexões sobre uma polícia letal, seletiva e racista

O roteiro é conhecido e previsivelmente trágico. Com o pretexto do cerco ao crime organizado ou como demonstração de força para supostamente fazer com que a população se sinta mais segura, operações policiais são montadas de forma espetacularizada. Com mobilização de grande efetivo policial, invariavelmente se espalham pelos territórios de praxe: favelas, periferias, comunidades vulnerabilizadas. O resultado não é mais segurança, e sim medo, produção de massacres, mortes de inocentes e “acidentes de percurso”. Erros que fazem parte do modelo e da prática. Operações que têm alvo e cor definidos.  

As polícias brasileiras são letais, seletivas e racistas, constatação que tem inspirado diversos trabalhos produzidos para radiografar, denunciar, alertar e, sobretudo, mudar essa realidade perversa que atinge corpos e vidas negras. A Rede Liberdade, organização que dirijo, acaba de dar mais uma contribuição para o tema, através do livro Letalidade policial e seletividade penal: reflexões produzidas por corpos matáveis. Fruto de um esforço coletivo, com subsídios de organizações parceiras, a obra descortina e analisa o padrão de comportamento da polícia frente a pessoas negras. O livro nasceu de uma pesquisa iniciada no ano passado pela pesquisadora Carmen Felippe – minha colega na Rede Liberdade e negra como eu –, para compreender as nuances do racismo nas abordagens policiais até a condenação pelo Judiciário.  

Trazemos no livro evidências, casos, relatos e episódios que reforçam a ideia de que nem todas as pessoas são iguais perante a lei. Como no sistema de Justiça, a estrutura policial se organiza a partir de um mesmo princípio, que é a ideia de que a uns o Estado se prontifica a servir e proteger, enquanto a outros ele está pronto para perseguir e matar. São das pessoas negras, há muitos séculos, os corpos “matáveis” a que o título se refere.  

Essa divisão forjada pelas instituições brasileiras me levou a criar, alguns anos atrás, o conceito do Estado Antinegro. Ao estruturar e aperfeiçoar mecanismos de manutenção do racismo em âmbito político, ideológico e social, a máquina estatal e suas engrenagens se ajustam cuidadosamente para que as múltiplas faces da violência alcancem os indivíduos racializados nas mais variadas esferas, como moradia, local de trabalho, ambiente escolar, hospitais, igrejas e até nos cemitérios (como ensina a necropolítica analisada pelo filósofo Achille Mbembe). 

A constatação tem amparo nos relatos e também nos números. Jovens negros são as principais vítimas de violência letal no Brasil em geral, e no recorte de mortos pela polícia o perfil é ainda mais jovem e negro. Eu poderia citar muitos números, mas para não me estender em números (e sim em vidas) recorro a duas evidências apenas. Primeiro, o Relatório da Rede de Observatórios da Segurança: a Bahia, cuja população negra é de 76%, tem 98% deles entre as vítimas; no Rio de Janeiro, o percentual de pessoas negras na população é de 51%, mas entre os assassinados elas são 86%. Segundo: em São Paulo, segundo o Instituto Sou da Paz, os homicídios caíram ao longo do primeiro semestre deste ano, mas as mortes praticadas pelas polícias Militar e Civil do Estado subiram em relação ao mesmo período de 2022. A recente polêmica operação policial no Guarujá já produziu uma nova onda de mortes, produzidas em territórios desiguais. 

O genocídio da juventude negra não atinge somente crianças e adolescentes. Outras vidas também são interrompidas com essas mortes, especialmente as vidas das mães negras. Elas também morrem nesse momento, ao perder a esperança e a vontade de viver diante da brutalidade com os filhos, ao adoecerem e ao enlouquecerem diante da justiça inexplicável. E quando a vida segue, com coragem e vigor, a luta é para “provar que você está viva e que seus filhos foram seres humanos”, como disse uma mãe que perdeu um filho há 16 anos no Rio de Janeiro, durante protesto realizado em Brasília, de mães de mortos em operações policiais. Adoecimentos e resistências são duas faces uma mesma consequência.

Esta é a história da democracia no Brasil: uma história de massacres, chacinas e execuções em massa. Dos banhos de sangue vistos na favela do Jacarezinho ou no Guarujá a sucessos de “erros” de avaliações de situações e suspeitos – de cor negra, insista-se – vemos mortes inconcebíveis, como a de um cabo que atirou contra um homem que estava no terraço de casa usando uma furadeira elétrica, ou de um policial que confundiu um guarda-chuva preto com um fuzil. É uma das faces mais perversas do Estado Antinegro institucionalizado, e o nosso estudo ajuda a escancará-la, ao trafegar por diferentes campos da atuação das polícias: a configuração da abordagem policial, os processos de investigação e tomada de depoimento, o reconhecimento de pessoas (e sua natureza seletiva), o instituto da prisão preventiva, o avanço arbitrário sobre garantias individuais e os ataques graves aos direitos fundamentais.  

Essas nem sempre são práticas que resultam em morte, mas nem por isso são menos perversas. Unimos a análise dos casos obtidos sob sigilo de nomes e de processos ao material testemunhal de vizinhos e familiares produzido a partir de suas experiências no âmbito do sistema penal. O resultado é um conjunto de evidências que mostram uma polícia que pode tanto negar a prestação de serviço a pessoas negras e/ou vulnerabilizadas, quanto prestá-lo de forma ineficiente quando não investiga, não cuida da prova ou da cena do crime, não ouve, e em muitos níveis pode matar ou deixar morrer – material ou processualmente.

A seletividade e a letalidade policial não se restringem ao genocídio de pessoas negras. A estas somam-se também outros grupos vulnerabilizados, como populações periféricas, pessoas em situação de rua, mulheres e a comunidade LGBTQIAPNB+. É cada vez maior o encarceramento de mulheres, como também o Brasil preserva uma realidade trágica para pessoas trans e travestis. A transfobia é uma chaga a ser vencida. E se não há liberdade de gênero para um grupo, não haverá para nenhum outro. 

Que o livro seja mais um grito de alerta contra a violência da ação policial no Brasil. Letalidade, seletividade e racismo precisam ser removidos o quanto antes do nosso desigual e perverso dia a dia.

 

Ø  Vigilância em SP: quando todos são suspeitos. Por Rafael A. F. Zanatta

 

Esta semana assisti, pelo Youtube, a audiência pública de lançamento do contrato do projeto “Smart Sampa” – o mais ambicioso, problemático e questionável sistema automatizado de segurança pública e reconhecimento facial da cidade de São Paulo.

É provável que você já tenha, ao menos, ouvido falar do projeto.

O Smart Sampa foi alvo de intensas críticas por parte da sociedade civil durante os últimos meses e tem gerado um debate incessante na fronteira entre democracia, segurança pública e direitos fundamentais. Inicialmente, tornou-se polêmico não somente pela escala – pois pretende integrar 20 mil câmeras acopladas com sistemas automatizados de reconhecimento facial –, mas também pelo seu viés racista, ao usar expressões como combate à “vadiagem”, como uma das funcionalidades da integração. Foi alvo de ações judiciais que contestaram falhas procedimentais na avaliação de impacto, potencialização de atos contrários ao direito e impacto desproporcional à população negra de São Paulo.

Não vou sistematizar as diversas críticas já feitas por intelectuais como Pablo NunesRonaldo LemosThiago AmparoBianca Kremer e muitos outros que já se debruçaram sobre o tema e contribuíram com ótimos argumentos contrários à existência do Smart Sampa. Uma rápida pesquisa com os termos “Smart Sampa e racismo” no seu mecanismo de busca favorito (DuckDuckGo, Bing ou Google) é o suficiente para ver que a discussão é seríssima.

Como disse Luã Fergus, pesquisador de direitos digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – respeitada instituição de proteção de direitos coletivos fundada nos anos 1980 no Brasil –, “o uso dessa tecnologia levará a erros graves de identificação e detenções injustas”. A questão foi colocada abertamente, há muitos meses, em audiência da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo. Foram produzidas diversas cartas abertas e manifestos por entidades civis especializadas. A campanha “Tire Meu Rosto da Sua Mira” chegou a projetar as frases “Smart Sampa é ilegal” em fachadas de prédios em São Paulo, com apoio de drones.

As mobilizações de entidades chamaram atenção da mídia internacional, com matéria de fôlego produzida por Angela Macri para Al Jazeera, mas não sensibilizaram a Prefeitura de São Paulo, que não desistiu de executar o contrato. Em todas as ocasiões e manifestações públicas, a Prefeitura não reconheceu que poderia ter tido uma má ideia.

A decisão parecia tão firmada que nem mesmo intervenções de órgãos de controle afetaram o processo decisório sobre a implementação do Smart Sampa. Em fevereiro, um relatório do Tribunal de Contas do Município de São Paulo reconheceu que há riscos de racismo algorítmico. Como escreveram Horrara Moreira e Pedro Peres em importante ensaio publicado pela Fundação Heinrich Böll, “os erros sistemáticos da identificação estão diretamente relacionados com a falta de diversidade nos bancos de dados utilizados para treinamento dessas tecnologias”.

Até o momento, o projeto continua. Vejamos o que foi dito em seu lançamento no início de agosto.

·         Os discursos no anúncio do Smart Sampa

Focarei na análise do discurso do que foi dito no lançamento. É importante prestar atenção nos discursos e nas narrativas feitas nesta audiência pública, pois elas revelam intencionalidades, molduras teóricas, premissas não explicitadas e crenças sobre o papel da tecnologia. Não farei muitos juízos de valor sobre as falas, mas as trago à tona para uma melhor reflexão coletiva. Minha premissa é que uma reflexão ampliada sobre o Smart Sampa é, em si, positiva, na medida em que afeta direitos e liberdades básicas de qualquer cidadão que resida ou transite em São Paulo.

O primeiro argumento que chama atenção na coletiva de imprensa sobre a assinatura do contrato do Smart Sampa, em especial o feito por Elza Paulina de Souza – servidora de carreira da Guarda Civil Metropolitana e atualmente Secretária –, é que a capacitação e uso de tecnologias em segurança pública, para “prestação de serviços eficazes e eficientes”, é a política número um do atual mandato da Prefeitura. Seu segundo argumento é o de que o uso das tecnologias de reconhecimento facial diz respeito à “pronta resposta” e “integração”. Segundo Elza, o uso desses dados, de forma integrada, é uma racionalização de políticas públicas e uma espécie de “cuidado” e “pertencimento” do cidadão com São Paulo.

De fato, é inegável que integração de sistemas traz ganhos de eficiência. No entanto, a questão de fundo aqui – talvez a mais importante – é justamente a supremacia da eficiência enquanto valor normativo principal para pensar o Smart Sampa. Ao ser um sistema com um conjunto de efeitos sociais (o que chamamos de affordances na ciência do design), os valores centrais deveriam ser outros, em especial valores normativos relacionados ao que entendemos, enquanto comunidade política, como intervenções legítimas a liberdades fundamentais.

O Secretário Fagotti enfatizou, em seu discurso, o “efeito de prevenção” pelo fato de existirem 20 mil câmeras integradas. Segundo ele, isso geraria um “efeito inibidor” pelo fato de que as pessoas em São Paulo mudariam o seu comportamento ao saberem que estão sob vigilância permanente. Sua expectativa seria, portanto, “inibir e afastar a criminalidade”.

De certo modo, isso lembra um certo utilitarismo e pragmatismo do pensamento jurídico, em especial da análise econômica do direito formulada na década de 1970. A ideia, tradicional no pensamento de Richard Posner, é que a “pessoa malvada” tende a ter incentivos maiores de inibição de comportamento, ao internalizar a possibilidade de uma punição. O problema, no entanto, é analisarmos os efeitos apenas para “potenciais criminosos”. Por isso a crítica sobre direitos fundamentais e devido processo: na medida em que todos passam a ser potenciais suspeitos, temos um problema constitucional?

O segundo discurso do Secretário é uma espécie de “supremacia da integração”, no sentido de que, até 2024, as 20 mil câmeras estejam integradas a mais 20 mil câmeras de lojistas, escolas, farmácias, shoppings e muitos outros estabelecimentos comerciais. Nessa lógica, quanto mais integração, melhor. E também “quanto antes, melhor”.

O terceiro discurso é sobre as potencialidades do uso biométrico. O principal argumento é que mesmo cidades como São Francisco, que haviam banido o reconhecimento facial em 2019, voltaram atrás e decidiram rever as decisões de banimento diante do crescimento da criminalidade. A informação me parece incorreta, na medida em que o que ocorreu em São Francisco foi distinto. Em 2022, o Conselho de Supervisão da cidade votou, por 7 votos a 4, para autorizar o acesso de imagens de câmeras privadas pela San Francisco Police Department, sem ordem judicial [search warrant], no período de 24 horas, desde que autorizado pelo proprietário das câmeras. No entanto, a Ordem dos Advogados de São Francisco assinou carta sustentando que tais poderes são inconstitucionais, abrindo margem para severas violações de direitos no acesso às imagens de câmeras para “produção de evidências em investigações”.

O quarto discurso formulado na apresentação é que o Smart Sampa possui ampla aderência com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e que sua implementação contará com Política de Segurança da Informação (PSI), Política de Segurança Cibernética (PSC) e Política de Integridade e Ética (PIE). Todas elas evitariam acessos indevidos, incidentes de segurança e usos ilícitos dos dados. Ainda, haverá um Conselho de Gestão e Transparência, composto pela Controladoria Geral do Município (CGM), responsável por garantir o cumprimento da LGPD e avaliar as medidas de mitigação de riscos formuladas no Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais, que deverá ser elaborado pelas empresas responsáveis pela implementação do Smart Sampa.

Não há nada de errado aqui – especificamente com relação ao cumprimento do que diz a legislação sobre proteção de dados pessoais –, mas o mais importante é que o ponto crucial não é um compliance com a LGPD no sentido de garantia de não vazamento de dados ou uma confusão da proteção de dados pessoais com questões de “segurança da informação”. O que é realmente necessário é uma avaliação de impacto de outra natureza: a de potenciais violações a direitos fundamentais.

Nesse sentido, vale lembrar o que disse Giovanni Butarelli, um dos grandes políticos e pensadores da sociedade da informação: na medida em que cidades avançam projetos de reconhecimento facial e usos de drones, a resposta não estará em uma leitura burocrática das leis de proteção de dados pessoais. Não bastaria uma listagem (estilo “check, check, check”) da LGPD no Smart Sampa.

Os problemas envolvem outras questões bem mais amplas sobre assimetrias de poder, acentuação de desigualdades, racismo algorítmico e violações a liberdades fundamentais garantidas em nível constitucional. Por isso a demanda, por parte de diversas entidades civis especializadas, de que a Prefeitura poderia agir diferente para evitar que riscos sejam produzidos. Não é um pedido descabido. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em duas ocasiões, que o Poder Público possui a obrigação de minimizar riscos produzidos aos direitos da personalidade dos cidadãos, o que envolve uma “dimensão objetiva” do direito fundamental à proteção de dados pessoais.

 

Fonte: Le Monde/Outras Palavras

 

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