quarta-feira, 2 de agosto de 2023

"Ação do Estado não pode ser por vingança", ex-ouvidor da Polícia Militar de SP

Ouvidor da Polícia Militar de São Paulo em duas ocasiões (1995-2000 e 2018-2020), Benedito Mariano defende a apuração rigorosa dos policiais envolvidos na Operação Escudo, realizada no Guarujá, litoral paulista, em represália à morte de um policial militar da Rota, força especial da Polícia Militar paulista, ocorrida na última quinta-feira (27/07).

"A ação do Estado não pode ser por vingança, mas racional. Assim que houve a operação, o governador de São Paulo falou em oito mortes. Subiu para 10 e agora são 12 óbitos [número que já subiu para 14]. A Ouvidoria da Polícia, que está acompanhando, já fala na investigação de 19 mortes. Em qualquer um dos casos, nenhuma operação com esse número de mortes foi bem executada", disse em entrevista à DW, ressaltando que "resposta da corporação não pode estar fora do parâmetro da legalidade democrática".

Mariano também criticou o fato de o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o atual Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, terem celebrado as mortes após a operação.

"Foi um ato precipitado. Considero que qualquer manifestação antes da investigação que é feita pela própria polícia é ruim."

O ex-ouvidor defende uma melhor formação dos policiais, inclusive com a introdução de uma disciplina permanente sobre o racismo estrutural. "Uma polícia democrática e cidadã precisa ser antirracista", destaca.

LEIA A ENTREVISTA:

·         Como o senhor avalia a ação da Polícia Militar de SP no Guarujá? Houve excesso da polícia?

Benedito Mariano: O assassinato de um policial militar merece recusa da sociedade e as condolências são fundamentais. A partir daí, a resposta do poder público a partir do assassinato do policial é fundamentalmente identificar e prender o autor do crime. Há um suspeito identificado que está preso.

É óbvio que a morte de um companheiro gera comoção na instituição policial, mas a resposta da corporação não pode estar fora do parâmetro da legalidade democrática. A ação do Estado não pode ser por vingança, mas racional. Assim que houve a operação, o governador de São Paulo falou em oito mortes. Subiu para 10 e agora são 12 óbitos [número que já subiu para 14]. A Ouvidoria da Polícia, que está acompanhando, já fala na investigação de 19 mortes. Em qualquer um dos casos, nenhuma operação com esse número de mortes foi bem executada. É preciso haver uma apuração rigorosa.

·         Qual devef ser o papel da Ouvidoria neste momento? Ela atua em parceria com outros órgãos para averiguar o que houve?

A ouvidoria tem o papel de controle social da atividade policial. A ouvidoria não apura. Quem faz isso são as Corregedorias da polícia. Mas a ouvidoria acompanha a apuração e deve, especialmente num caso grave como esse, elaborar relatórios públicos. Esses documentos serão anexados ao inquérito policial e encaminhados ao Ministério Público.

É importante dizer também que muitas informações chegam ao conhecimento da polícia por meio da Ouvidoria, como denúncias e afins, por ter autonomia em relação ao comando das polícias.

·         Como identificar o excesso de ação policial?

Doze mortes confirmadas já é indício de que não foi uma boa ocorrência. Para saber se houve excesso é preciso esperar os laudos técnicos. No meu período como ouvidor, sempre me manifestei sobre os relatórios feitos pela inteligência da polícia, para saber se deram as mortes, por onde os projéteis entraram, a que distância, se as vítimas portavam arma de fogo ou se houve confronto.

São esses dados que podem confirmar objetivamente o excesso. Conversei com o Cláudio Aparecido [atual ouvidor da Polícia Militar de São Paulo] e ele disse que estão chegando denúncias lá e também ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) sobre torturas e abuso de autoridade. Por isso, a Ouvidoria é fundamental: ela ouve as pessoas e todas essas informações vão constar no relatório final.

·         Quais são os procedimentos caso fique comprovado que houve excesso dos policiais?

Há dois caminhos. Caso se confirme o excesso nas 12 mortes, cabe ao Ministério Público formalizar a denúncia. Concomitantemente, não impede que a Corregedoria faça uma manifestação administrativa com relação aqueles policiais que cometeram excesso. Por isso que a decisão do Procurador-Geral de Justiça [Mario Sarrubbo] de indicar uma equipe do Ministério Publico para acompanhar as investigações é importante, pois vai esclarecer, entre outras coisas, se a ação estava no parâmetro do estado democrático.

·         Como as câmeras das fardas podem ajudar a desvendar a ação dos PMs?

A câmera do fardamento é um equipamento fundamental para entender o que houve. Já li uma reportagem na Folha de S.Paulo dizendo que uma ala política pretende retirar o equipamento, mas não acredito que isso vá acontecer. Ao contrário: vários outros estados do país estão adotando o equipamento. É um instrumento utilizado nos EUA e na Europa há décadas. É um recuo que não pode acontecer. E tem uma coisa: a adoção das câmeras foi um projeto da própria Polícia Militar, do comando da instituição. As câmeras servem para proteger o bom policial em sua atividade e para mostrar se houve excesso na ação desse policial.

Há vários estudos recentes que mostram como o uso do objeto ajudou a reduzir a letalidade policial. Nesse caso do Guarujá, a expectativa é que todos os envolvidos estejam com os equipamentos em pleno funcionamento, porque as imagens serão provas importantes nas investigações.

·         Tanto o governador quanto o Secretário de Segurança Pública de SP elogiaram a atuação dos policiais. Como o senhor avalia tais manifestações?

Minha resposta será baseada em uma experiência pessoal. Em 2019, quando eu era ouvidor da Polícia Militar, houve uma ocorrência em uma cidade do interior com a participação de 45 policiais e cujo resultado foi a morte de 10 pessoas suspeitas de estarem planejando um assalto a duas agências bancárias. Na época, demorei cerca de dois meses para me manifestar, porque estava analisando os relatórios da própria polícia a fim de saber o que havia ocorrido. A partir da análise dos laudos técnicos, eu e o delegado envolvido nas investigações constatamos que houve excesso da polícia na ocorrência.

Já o governador da época, João Doria, não esperou uma semana para levar os policiais envolvidos na ação ao Palácio dos Bandeirantes para condecorá-los. Foi um ato precipitado. Considero que qualquer manifestação antes da investigação que é feita pela própria polícia é ruim.

·         O que o episódio no Guarujá e outros recentes nos diz sobre a formação do policial no país?

Nós precisamos fazer uma reforma ampla no sistema de segurança pública brasileiro e o enfoque principal deve ser a luta antirracista. Os 350 anos de escravidão estabeleceram uma cultura de preconceito contra pobres e negros que dita a ação das forças de segurança em boa parte das cidades. Assim, jovens negros são os mais vitimados pela letalidade policial.

Uma polícia democrática e cidadã precisa ser antirracista. Defendo há anos a introdução de uma disciplina permanente nas escolas formadoras de policiais sobre o racismo estrutural, assim como um novo protocolo que limite a interpretação da "fundada suspeita" [elementos objetivos e subjetivos utilizados pela autoridade policial para realizar busca pessoal] presente no Código Penal.

A suspeição acontece em duas formas: se o indivíduo está com arma de fogo ou objeto de crime. Mas o que nós vemos é que a fundada suspeita se dá pela cor da pele e condição social.

·         Os eventos ocorridos no Guarujá têm alguma similaridade com os Crimes de Maio de 2006 e a onda de violência entre maio e novembro de 2012?

É difícil fazer essa comparação. Em 2006 e 2012 houve uma resposta do Estado, com muito excesso, contra organizações criminosas que estavam matando os policiais. A única similaridade é que essa operação na Baixada Santista está se dando a partir de um assassinato de um policial em serviço, mas não vejo o mesmo contexto. Mas acredito que a resposta do Estado precisa ser sempre racional, o que não aconteceu nesses dois episódios e parece não ter ocorrido agora também.

A Comissão Arns, da qual me orgulho muito de ter participado por 15 anos, declarou em nota que pode haver um fortalecimento do crime organizado, e eu concordo. A tensão pode aumentar, assim como o conflito, sobretudo se ficar comprovado ao final das apurações que houve excesso por parte dos policiais.

 

Ø  Moradores acusam polícia de caçada em favela de Guarujá

 

A polícia paulista vem promovendo uma caçada a moradores em favelas de Guarujá, no litoral paulista, nos últimos dois dias, em represália à morte de um policial militar da Rota, força especial da PM paulista, ocorrida na última quinta-feira (27/07), segundo relatos de moradores ouvidos em condição de anonimato.

Eles afirmam que as favelas da Vila Zilda estão sitiadas e dizem se sentirem ameaçados.

"Há um efetivo gigantesco, circulando sem identificação, invadindo as casas, batendo nas pessoas, quebrando as coisas. Eles estão aterrorizando", denunciou um morador cujo primo foi morto no fim de semana.

O homem de 30 anos e pai de uma menina de seis anos teria sido morto por ter antecedentes criminais.

Até 16 pessoas já teriam sido mortas nos últimos dias. A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) afirma que 14 morreram "ao entrarem em confronto com as forças de segurança" no Guarujá e Santos.  Nas redes sociais, policiais militares celebram o número de 16 mortes. 

"Eles dizem que matarão 30 onde meu primo foi morto e 30 onde o policial foi morto. De dia é perigoso, mas de noite, ainda mais, já que eles estão contando e comemorando os corpos; qualquer pessoa com antecedentes ou tatuagem, eles parecem ter ordem de matar", afirma o parente.

Outra moradora, que trabalha com serviço de entrega de refeições, diz viver sob tensão pelos filhos e os profissionais que fazem os transportes.

"Eles não devem nada para as autoridades, mas sabemos como eles tratam motoqueiros, então fico muito preocupada", diz.

Em nota à DW, a SSP-SP disse que determinou que todos os casos sejam investigados pela Divisão Especializada de Investigações Criminais (DEIC) de Santos e pela Polícia Militar por meio de Inquérito Policial Militar (IPM).

"As imagens das câmeras corporais serão anexadas aos inquéritos em curso e estão disponíveis para consulta irrestrita pelo Ministério Público, Poder Judiciário e a Corregedoria da PM", diz a nota.

·         Governo: "Não houve excesso"

A Operação Escudo, da Secretaria de Segurança Pública, foi deflagrada neste final de semana após o assassinato do soldado da Rota Patrick Bastos Reis, de 30 anos, e conta com um efetivo de mais de 600 policiais, entre militares e civis, segundo o governo do Estado. Reis foi morto na quinta-feira durante ação rotineira de patrulhamento na região.      

Um grande cortejo foi realizado no centro de São Paulo em homenagem ao soldado, com dezenas de pessoas e veículos das polícias e bombeiros e que fechou as avenidas Paulista e da Consolação rumo ao cemitério do Araçá na tarde de sexta-feira.

O cabo Fabiano Oliveira Marin Alfaya, que o acompanhava no patrulhamento, foi atingido na mão e internado, mas está fora de perigo.

Nesta segunda-feira, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) falou à imprensa ao lado do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite (PL), e elogiou a operação que resultou em dez pessoas detidas e desencadeou a onda de mortes e tensão na Baixada Santista.

"Não houve hostilidade, não houve excesso; houve uma atuação profissional e que nós manteremos", afirmou o governador, dizendo que "apenas pessoas que atacaram policiais foram mortas". "Nós não vamos deixar passar impune uma agressão contra um policial. Não é possível que o crime possa agredir um policial e sair sem punição."

O Instituto Sou da Paz lamentou a morte do soldado Reis, criticou que a resposta tenha sido dada com mais mortes e relembrou a ameaça de Freitas em campanha ao governo estadual de encerrar o programa de câmeras corporais, que resultou na queda da letalidade policial no Estado em quase 63%, passando de 697 mortes em 2019 para 260 em 2022.

"Essa atitude, aliada aos poucos compromissos públicos sobre a importância do controle do uso da força, também ajuda a explicar o crescimento de 28% nas mortes cometidas por policiais em serviço no estado de São Paulo no primeiro semestre de 2023", afirmou o instituto.

"Os eventos em Guarujá não podem ser lidos como um caso isolado e remetem a outros ciclos de violência após a morte de um policial. Ainda mais preocupante, esses eventos se inserem em um contexto de fragilização do bem-sucedido programa de gestão do uso da força, que culminou com a expressiva redução da letalidade policial com o uso de câmeras corporais", reforça, destacando ainda os relatos, por intermédio da Ouvidoria de Polícia, de ameaças de tortura e de execuções feitas por policiais na região.

·         Mortes festejadas

Fotos dos corpos desfigurados nos necrotérios têm sido divulgadas em tom de deboche em grupos de WhatsApp de Guarujá, enquanto parentes relatam serem impedidos de ter acesso aos corpos no necrotério.

"Não nos deixaram ver meu primo, mas pouco depois as fotos dele cheio de marcas de agressão estavam rodando em grupos de WhatsApp da cidade com a legenda 'mais um mala alvejado'", diz um comerciante. Segundo ele, o celular e a chave do carro tampouco foram devolvidos à família.

Nas redes sociais, um soldado da PM tem feito a contagem dos mortos em mensagens em tom de deboche. "Saldo do Guarujá: informações de que 6 anjinhos estão em descanso eterno", dizia numa postagem. Outros policiais com dezenas de milhares de seguidores também fazem postagens semelhantes.

Ao som de músicas como Brilha, brilha estrelinha e Hoje as pessoas vão morrer, o ex-policial e suplente de deputado estadual Luiz Paulo Madalhano Magalhães festeja as mortes ocorridas na Baixada Santista, enquanto conta o "saldo extra oficial" de 16 mortes – 11 delas realizadas por policiais da Rota.

Questionada sobre a conduta dos membros e ex-membros da corporação festejando as mortes, a Secretaria de Segurança Pública de SP não se manifestou. 

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado neste mês pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 13% das mortes violentas no país em 2022 foram cometidas por policiais em serviço ou fora dele – 95% delas por PMs. Em São Paulo, membros das forças de segurança foram responsáveis por 419 mortes das 3.735 ocorridas em todo o estado, o menor índice de mortalidade violenta no país.

Segundo a publicação, uma taxa acima de 10% configura uso abusivo da força por parte das polícias. "Nas proporções observadas no Brasil, o indicador denota que as mortes causadas pelas polícias ocupam um espaço muito significativo e destacado entre os agentes sociais causadores de mortes violentas intencionais", relata, destacando ainda a proporção entre policiais e civis mortos em supostos confrontos.

"Os números observados contrariam a narrativa padrão de uso proporcional e reativo da força policial, de que as mortes ocorreriam em decorrência de confrontos", afirma o documento. Em São Paulo, onde ocorre a ação desde sexta-feira, foram 33 policiais mortos contra 419 mortes cometidas por agentes de segurança, uma proporção de mais de 12 para 1.

·         Suspeito se entrega

Erickson David da Silva, conhecido como Deivinho, se entregou à polícia na zona sul de São Paulo pedindo o "fim da matança" na baixada santista. Em vídeo gravado antes de se entregar à polícia, Silva pede: "Quero falar para o Tarcísio e o Derrite pararem de fazer a matança aí, matando uma pá de gente inocente, querendo pegar minha família, sendo que eu não tenho nada a ver. Estão me acusando. É o seguinte, vou me entregar, não tem nada a ver". Em um segundo vídeo, já detido e na corregedoria da PM, seu advogado agradece por sua integridade física ter sido mantida.

Segundo as investigações, Silva teria matado Reis com um tiro de pistola 9mm de uma posição elevada a 70 metros de distância, atingindo a axila do soldado. Silva nega ser o autor do disparo.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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