A guerra que mata mais que a da Ucrânia
Em 24 de junho, a atual guerra no Sudão completou
100 dias. Segundo as autoridades locais, mais de 3 mil pessoas foram mortas
nesse período.
O total representa cerca de 30 mortes por dia desde
que o conflito eclodiu, em 15 de abril - e especialistas acreditam que o número
de vítimas pode ser ainda superior, com muitas mortes não contabilizadas
oficialmente e acusações de tentativa de genocídio na região do Darfur, no
oeste do país.
Em comparação, a guerra na Ucrânia, que mobiliza
potências do mundo todo e já é considerada o maior ataque militar desde a 2ª
Guerra Mundial, deixou 9 mil civis mortos em seus mais de 500 dias, algo em
torno de 18 pessoas a cada 24 horas.
"Há muitas diferenças entre os dois conflitos
e os interesses envolvidos. Mas a resposta internacional e humanitária à guerra
no Sudão tem sido praticamente inexistente, ao contrário do que acontece na
Ucrânia", diz Nisrin Elamin, professora da Universidade de Toronto.
Segundo a pesquisadora, que tem ascendência
sudanesa e familiares que continuam no país, isso acontece apesar da violência
explosiva do conflito, que se mistura a uma crise humanitária e ao número de
refugiados que não para de crescer - mais de 2,6 milhões de pessoas foram
deslocadas internamente, enquanto pelo menos 730.000 fugiram para países
vizinhos, de acordo com dados da agência de refugiados das Nações Unidas.
Mas afinal, o que provocou o conflito no Sudão e o
que o torna tão devastador para a população local?
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A disputa
Desde que militares deram um golpe de Estado e tomaram
o poder após prender o então primeiro-ministro interino, Abdallah Hamdok, em
outubro de 2021, o Sudão é governado por uma junta de generais.
Antes disso, em 2019, o país foi abalado pela maior
onda de protestos de sua história, que culminou na deposição do líder
autoritário Omar al-Bashir, que ficou na Presidência por quase 30 anos.
Em meio a um longo período de instabilidade, dois
generais que fazem parte do grupo de militares que conduzem o governo passaram
a disputar o poder.
No centro dos confrontos estão o líder da Forças
Armadas Sudanesas, Abdel Fattah al-Burhan, e o comandante das Forças de Apoio
Rápido (RSF, na siga em inglês) paramilitares, Mohamed Hamdan Dagalo.
Os dois já foram aliados e trabalharam juntos para
derrubar Bashir em 2019, mas mais recentemente passaram a discordar sobre os
rumos que o país está tomando e sobre uma proposta de transição para o regime
civil.
Entre os pontos mais controversos estão os planos
de incluir os 100 mil combatentes do RSF no Exército e a definição de quem ficaria
encarregado de liderar a nova força.
A violência estourou após dias de tensão, depois
que membros das RSF foram redistribuídos em todo o país em um movimento que o
Exército interpretou como uma ameaça.
Esperava-se que a situação pudesse ser resolvida
através do diálogo, mas isso nunca se concretizou.
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Violência e mortes
Os confrontos estouraram em abril na capital
Cartum, até então majoritariamente poupada dos conflitos étnicos e políticos
que atingem o país há anos.
"Eu estava visitando minha família em Cartum
em 15 de abril e fomos acordados pelo barulho de explosões, mísseis e tiros.
Não estávamos esperando e ficamos presos dentro de casa por vários dias, até
conseguirmos deixar o país", relata Elamin, que é professora de Estudos
Africanos, e viajou ao Sudão com a filha de 3 anos.
A violência logo se espalhou para o resto do país e
relatos de ações sangrentas, corpos nas ruas e estupros em massa emergiram.
E apesar das forças inimigas lutarem pelo controle
de instalações militares e governamentais importantes, grande parte dos
confrontos está acontecendo em áreas urbanas, com disparo de mísseis, ataques
aéreos e troca de tiros em meio às ruas de algumas das principais cidades do
país.
Segundo Nisrin Elamin, essa concentração da luta em
áreas de alta densidade populacional ajuda a explicar o alto número de civis
mortos.
A especialista atribui ainda o nível de brutalidade
do conflito atual ao passado violento de Abdel Fattah al-Burhan, Mohamed Hamdan
Dagalo e o regime que representam.
"Esses dois generais cometeram atrocidades no
passado, em diferentes partes do país, que tiveram consequências por
décadas", diz.
Em Darfur a guerra toma uma forma especialmente
perigosa, com ataques brutais das RSF e suas milícias árabes aliadas contra
civis.
A região foi atingida em 2003 por um violento
conflito étnico que, segundo o Tribunal Penal Internacional (TPI), levou a
ocorrência de crimes contra a humanidade (homicídio, tortura, extermínio,
estupro), crimes de guerra (ataque intencional a populações civis) e genocídio.
Os crimes foram cometidos principalmente pelas
milícias árabes, conhecidas como Janjawids e cujo integrante mais conhecido é o
atual líder das RSF.
E diante dos relatos dos últimos meses,
representantes das Nações Unidas afirmam temer a repetição desta tragédia na
região.
Segundo Volker Perthes, representante especial da
ONU no Sudão, a violência assumiu dimensões étnicas em El Geneina, capital de
Darfur Ocidental.
"Enquanto as Nações Unidas continuam a reunir
detalhes adicionais sobre essas denúncias, há um padrão emergente de ataques
direcionados em larga escala contra civis com base em suas identidades étnicas,
supostamente cometidos por milícias árabes e alguns homens armados e
uniformizados com trajes das Força de Apoio Rápido (RSF). Esses relatórios são
profundamente preocupantes e, se verificados, podem constituir crimes contra a
humanidade", afirmou.
Imagens de satélite obtidas pela BBC ainda mostram
que vilas inteiras no sul do Darfur foram incendiadas e destruídas, eliminando
recursos importantes para a população local.
Vários cessar-fogos foram anunciados desde o início
do conflito para permitir que as pessoas escapem dos combates em todo o país,
mas eles não foram cumpridos por nenhuma das partes.
E entre as vítimas da luta estão mais de 400 crianças,
segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Outros 2 mil
menores foram feridos desde o início da guerra.
"A escala do impacto que esse conflito teve
sobre as crianças do Sudão nos últimos cem dias está quase além da
compreensão", afirmou Ted Chaiban, vice-diretor executivo do Unicef para
ações humanitárias.
"Pais e avós que viveram ciclos anteriores de
violência agora veem filhos e netos passarem por experiências horríveis
semelhantes. Todos os dias crianças estão sendo mortas, feridas, sequestradas e
vendo as escolas, os hospitais e a infraestrutura vital do país serem
danificados, destruídos ou saqueados."
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Crise humanitária
À violência dos confrontos se soma uma profunda
crise humanitária, que ameaça levar 2,5 milhões de pessoas à fome – elevando o
total geral para um recorde de 19 milhões, ou 40% da população do país.
A guerra exacerbou um cenário já complexo ao levar
a uma profunda crise econômica, aumentar os preços e dificultar o acesso a
alimentos, água potável, energia elétrica e serviços de saúde.
Em maio, segundo a ONU, metade dos 46 milhões de
habitantes do Sudão precisava de assistência e proteção humanitária.
Em todo o país, mais de 80% dos hospitais estão
fora de serviço, também segundo as Nações Unidas. Além disso, pelo menos 60
instalações de saúde apoiadas por ONGs em Darfur estão sem suprimentos médicos
essenciais.
Com a interrupção dos serviços de saúde, doenças
como malária, sarampo e dengue, que estavam sob controle antes do conflito,
estão aumentando. A estação chuvosa, que acontece entre abril e outubro, pode
piorar ainda mais a situação.
Segundo especialistas, o enorme fluxo de refugiados
saindo do país também ameaça estender a crise para países vizinhos como
República Centro-Africana, Chade, Egito, Etiópia e Sudão do Sul.
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Resposta internacional
A escalada crescente da crise no país levou as
Nações Unidas a quase dobrar sua assistência humanitária para o Sudão,
alcançando US$ 3 bilhões.
Em maio, os Estados Unidos anunciaram o envio de
US$ 245 milhões ao Sudão e países vizinhos. A Comissão Europeia e o governo
britânico também estão entre os que alocaram recursos.
Ainda assim, ativistas têm cobrado organizações
internacionais e grandes potências por mais atenção ao conflito.
"O regime militar tem se recusado a emitir
permissões para que organizações humanitárias atuem no país e muitas
instituições foram obrigadas a evacuar seus voluntários quando o conflito
começou, mas ainda assim a resposta internacional tem sido considerada
fraca", avalia Nisrin Elamin.
"Em grande parte, o fardo da resposta
humanitária caiu sobre comitês de resistência voluntários locais que se
arriscam para distribuir alimentos, dirigir ambulâncias e oferecer serviços
médicos improvisados."
Segundo a especialista, alguns fatores ajudam a
explicar a diferença nas reações e na atenção recebida pelas guerras do Sudão e
Ucrânia, entre eles o legado colonialista e o racismo, além da convergência
distinta de interesses envolvidos em cada um dos conflitos.
"Existe um tipo de crença racista de que os
africanos e os países africanos são naturalmente propenso a conflitos",
diz a antropóloga.
"Muito disso está ancorado no passado
colonialista do Sudão, que só se tornou totalmente independente dos britânicos
em 1956 e desde então carrega uma economia e um sistema político que beneficiam
principalmente as elites."
Ao mesmo tempo, de acordo com Elamin, enquanto na
Ucrânia os interesses da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e da
Rússia no conflito estão muito bem estabelecidos, no Sudão ainda é difícil
determinar o que cada uma das partes pretende alcançar com a guerra.
O apoio de entes internacionais aos dois lados - a
Arábia Saudita tem cooperado com Burhan e indícios apontam para uma aliança
entre os Emirados Árabes Unidos (EAU) e as RSF -, porém, tem potencial de
prolongar ainda mais os combates, segundo analistas.
Fonte: BBC News Mundo
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