Reforma Tributária
altera tributação do consumo, mas não toca na renda, adverte tributarista
O
texto da Reforma Tributária, aprovado na Câmara dos Deputados na noite de
quinta, 06-07-2023, por 375 votos favoráveis e 113 contrários, "caminha na
direção correta" ao unificar tributos, mas deixa "em aberto inúmeras
questões decisivas, que serão definidas posteriormente por meio de lei
complementar", diz Marciano Seabra de Godoi. Entre estas, ele destaca a
não correção das distorções sociais geradas pela reforma silenciosa começada
nos anos 1990. "A Reforma Tributária constitucional votada pela Câmara não
corrige a injusta e regressiva tributação da renda que foi conformada por
reformas legislativas operadas na década de 1990. O governo federal vem
anunciando que a reforma da tributação da renda ocorrerá no segundo semestre de
2023, mas é muito improvável que isso aconteça. São imensas as resistências do
Congresso e da própria sociedade brasileira a uma reforma que, de fato, aumente
a tributação dos indivíduos das faixas mais altas de renda e patrimônio",
pontua.
Na
entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, Godoi comenta os principais pontos da proposta aprovada ontem à noite e a
analisa à luz da Doutrina Social da Igreja. Para ele, "os princípios e
valores da Doutrina Social da Igreja relacionados mais de perto à vida
econômica e empresarial descartam a visão utilitária em que o mercado
competitivo de pretensas leis naturais (e racionais) se autonomiza e ocupa o
centro da ética social. No lugar dessa visão individualista, a doutrina social
preconiza o respeito à solidariedade e à chamada destinação universal ou o uso
comum dos bens, submetendo a propriedade privada (vista como um meio e não como
um fim em si mesma) a uma série de condicionantes e limitações com o objetivo
de impedir que a sua existência acabe impedindo que todos os cidadãos tenham
acesso efetivo aos recursos necessários para viver com dignidade. Isso não é
uma visão que começa com o Papa Francisco, é uma visão que começa antes de João
Paulo II", explica.
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Confira a entrevista.
• O que está em jogo na proposta da
Reforma Tributária aprovada pela Câmara dos Deputados nesta quinta-feira?
Marciano
Seabra de Godoi – Está em jogo uma profunda alteração da forma de tributação de
bens e serviços na economia brasileira. Essa tributação de bens e serviços,
conhecida como “tributação do consumo” ou “tributação indireta”, possui
historicamente inúmeros defeitos (por exemplo, excessiva complexidade; inúmeros
benefícios fiscais concedidos de modo ilegal, opaco e sem controle /governança;
contenciosidade excessiva gerando um valor desproporcional de disputas em
órgãos administrativos e judiciais) e todos no Brasil a criticam. Mas, quando
se trata de reformá-la em profundidade, inúmeras divergências afloram.
• Quais os argumentos favoráveis e
críticos à proposta aprovada?
Marciano
Seabra de Godoi – O coração da proposta de Reforma Tributária que a Câmara aprovou
é um movimento de unificação e uniformização da tributação do consumo. No
regime atual, governos estaduais e prefeituras de capitais/grandes cidades
detêm grande autonomia para definir unilateralmente como se dá a tributação de
bens e serviços em relação às empresas que estão em seu território. O resultado
desse imenso capital político nas mãos especialmente dos governadores é a
existência de 27 sistemas diferentes para a tributação estadual de mercadorias
e serviços de comunicação/transporte intermunicipal pelo ICMS. Conhecer e
aplicar esses 27 sistemas ao mesmo tempo é tarefa hercúlea e muito dispendiosa
para as empresas. Além disso, os governadores usam e abusam de benefícios
tributários (muitas vezes opacos) para atrair empresas e negócios para seus
territórios (inclusive quanto ao local formal de importação de mercadorias
estrangeiras), o que gera distorções e ineficiência econômica, sem qualquer
governança ou controle social sobre a efetividade dos alegados benefícios
socioeconômicos de desenvolvimento regional.
O
ponto mais polêmico da proposta é exatamente aquele que retira dos governos de
estados e municípios o poder de, individualmente, ditar as normas de seus
atuais impostos sobre o consumo. Em substituição a esse sistema, a proposta
prevê a existência de um imposto (IBS) mais amplo que a soma atual do ICMS e do
ISSQN, com legislação, aplicação e arrecadação unificadas nacionalmente, sob a
batuta de um Conselho Federativo, cujo funcionamento e competências são somente
esboçados na proposta, deixando importantes questões para definição posterior
por lei complementar (aliás, essa é uma característica marcante da proposta:
remeter uma enorme quantidade de definições para leis complementares...).
Outro
ponto central da proposta é a definição de que a arrecadação do imposto sobre o
consumo deve caber ao estado de destino dos bens e serviços, e não ao estado de
sua origem. Quanto a essa mudança, porém, direcionada a impedir a chamada
"guerra fiscal", a proposta estabelece um regime de transição de nada
menos do que 50 anos, diluindo no tempo os impactos orçamentários da mudança.
As
prefeituras das capitais e alguns estados ensaiaram uma forte oposição à
proposta, alegando que ela comprometeria o federalismo que é considerado
cláusula constitucional imodificável. Não me parece haver inconstitucionalidade
na proposta por suposta violação do federalismo, mas é preciso reconhecer que a
proposta de fato retira poder e capital político e econômico dos estados e
capitais, quando se compara a situação atual com o sistema criado pela
proposta. Já as prefeituras de médias e pequenas cidades, bem como a maioria
dos estados, apoiaram a proposta desde o seu início, valendo-se dos argumentos
da simplificação e maior eficiência econômica. Os diversos mecanismos de transição
e compensação de perdas arrecadatórias contribuíram para construir esse
consenso.
• Quais são as principais disputas e os
impasses em relação ao texto da Reforma Tributária?
Marciano
Seabra de Godoi – Além da questão colocada anteriormente (centralização/unificação
das regras do novo imposto e perda de poder individual dos estados), outro
impasse inicial foi a questão da alíquota do novo imposto. O governo federal e
os economistas idealizadores da proposta desejavam que a alíquota fosse única
para todos os produtos e serviços, alegando que alíquotas diferenciadas ou
reduzidas para alguns setores geram ineficiências e não levam aos benefícios
socioeconômicos esperados, como a redução do preço efetivo dos produtos e
serviços objeto das alíquotas reduzidas. Como era de se esperar, prevaleceu
entre os deputados e deputadas o entendimento de prever alíquotas reduzidas
para alguns setores (como educação, saúde etc.) e alíquota zero para produtos
da cesta básica, que serão definidos posteriormente em lei complementar. Com
essa definição de alíquota zero para produtos da cesta básica e alíquotas
reduzidas para diversos tipos de bens e serviços, a meu ver deixa de fazer
sentido a previsão da proposta de que lei complementar definirá mecanismo de
devolução do IBS (o chamado “cashback”) para determinadas pessoas físicas, como
forma de redução das desigualdades sociais.
• Quais setores serão beneficiados?
Marciano
Seabra de Godoi – Há um certo consenso de que o setor industrial tende a ter
alguma redução de carga tributária, com o setor de serviços, especialmente
aquele direcionado a pessoas físicas, arcando com um provável aumento de carga
tributária. O setor de locações de bens, hoje incrivelmente não tributado por
nenhum imposto sobre o consumo, finalmente passará a ser tributado. As
sociedades de profissionais liberais, a não ser que consigam aprovar uma
exceção de última hora (o que é bastante provável tendo em vista seu poder de
influência sobre os congressistas), também terão aumento de carga tributária
sobre os seus serviços, atualmente tributados por uma sistemática excepcional
estabelecida em 1968, que impede que a tributação recaia sobre o preço dos
serviços.
• Em 2020, o senhor explicou que a
distorção tributária brasileira se origina na reforma silenciosa iniciada logo
após a promulgação da Constituição de 1988. A atual proposta de reforma corrige
essas distorções ou rompe com a reforma silenciosa que ocorreu?
Marciano
Seabra de Godoi – Não. A Reforma Tributária constitucional votada pela Câmara
não corrige a injusta e regressiva tributação da renda que foi conformada por
reformas legislativas operadas na década de 1990. O governo federal vem
anunciando que a reforma da tributação da renda ocorrerá no segundo semestre de
2023, mas é muito improvável que isso aconteça. São imensas as resistências do
Congresso e da própria sociedade brasileira a uma reforma que, de fato, aumente
a tributação dos indivíduos das faixas mais altas de renda e patrimônio.
• Em sua avaliação, a reforma precisa
atuar na tributação do consumo e na da renda e do patrimônio. Em que medida
esses aspectos são contemplados na atual proposta?
Marciano
Seabra de Godoi – A atual proposta se refere quase exclusivamente à tributação
do consumo, e creio que caminha na direção correta – apesar de deixar em aberto
inúmeras questões decisivas, que serão definidas posteriormente por meio de lei
complementar.
Não
se toca na tributação da renda (bem mais sensível politicamente do que a
tributação do consumo). Quanto à tributação do patrimônio, há na proposta de
emenda constitucional algumas normas pontuais interessantes e necessárias, como
aquelas que determinam que o imposto estadual sobre heranças e doações seja
necessariamente progressivo e autorizam desde logo sua cobrança sobre heranças
e doações oriundas do exterior; e as normas que autorizam a cobrança do IPVA
sobre aeronaves e embarcações. Mas é preciso ter cautela quanto à eficácia
concreta dessas normas: dependendo da formulação do texto final da emenda
constitucional, o efeito concreto das mudanças pode ser frustrante e meramente
retórico, permanecendo tudo como antes.
• Que questões fundamentais não estão
sendo contempladas na atual proposta de Reforma Tributária?
Marciano
Seabra de Godoi – A tributação da renda e do patrimônio, entre nós, é muito
mais alta proporcionalmente para a classe média assalariada do que para os
indivíduos dos estratos mais altos de renda (especialmente recebedores de renda
empresarial e do capital) e patrimônio. O aumento da tributação sobre renda e
patrimônio desses estratos poderia permitir uma redução da tributação do
consumo, com efeitos econômicos e sociais bastante virtuosos (mais crescimento
com menos desigualdade). Essa é uma questão central que a reforma não toca.
• O senhor analisa a proposta da Reforma
Tributária à luz da Doutrina Social da Igreja. Quais são suas conclusões e
apontamentos a partir dessa análise?
Marciano
Seabra de Godoi – Os católicos brasileiros deveriam conhecer e dar mais atenção
à Doutrina Social da Igreja. Os princípios e valores da Doutrina Social da
Igreja relacionados mais de perto à vida econômica e empresarial descartam a
visão utilitária em que o mercado competitivo de pretensas leis naturais (e
racionais) se autonomiza e ocupa o centro da ética social. No lugar dessa visão
individualista, a doutrina social preconiza o respeito à solidariedade e à
chamada destinação universal ou o uso comum dos bens, submetendo a propriedade
privada (vista como um meio e não como um fim em si mesma) a uma série de
condicionantes e limitações com o objetivo de impedir que a sua existência
acabe impedindo que todos os cidadãos tenham acesso efetivo aos recursos
necessários para viver com dignidade. Isso não é uma visão que começa com o
Papa Francisco, é uma visão que começa antes de João Paulo II.
A
Doutrina Social da Igreja afirma com total clareza e convicção que uma das
funções do Estado é regular a atividade econômica de modo a, valorizando os
talentos e a livre iniciativa de cada um, buscar justiça e equidade na
distribuição da renda e da riqueza. Sendo assim, a Doutrina Social da Igreja
conclui que a criação e arrecadação dos tributos é tarefa essencial para
alcançar os valores da justiça e da liberdade real para todos os cidadãos, e
significa a especificação, em obrigações concretas, do dever geral de solidariedade
social. Espero que, nesses tempos atuais de fake news e desinformação
sistemática, essa visão da Doutrina Social da Igreja não seja tomada de modo
distorcido como “comunista” ou “marxista”. Aliás, do jeito que as coisas estão
nas redes sociais, é possível que grupos extremistas e fundamentalistas de
direita considerem até mesmo a proposta de reforma tributária em discussão no
Congresso como “comunista”, pelo simples fato de ter apoio e impulso do governo
federal...
Como
venho defendendo em inúmeros artigos e estudos, não é verdadeira a afirmação
corrente de que há uma carga tributária imensa sobre “o contribuinte
brasileiro”; a verdade é que, dependendo da posição que se ocupa no meio social
e econômico, enfrentam-se cargas tributárias muito distintas. Como afirmei
acima, e de modo totalmente contrário ao que preconiza a Doutrina Social da
Igreja, a carga tributária em termos proporcionais sobre o patrimônio, a renda
e a herança dos muito ricos no Brasil é menor do que aquela que incide sobre a classe
média, especialmente sobre os assalariados do setor público e privado. A
reforma tributária atualmente em discussão no Congresso Nacional limita-se a
alterar a tributação do consumo. É urgente enfrentar também as imensas
distorções existentes na tributação da renda, do patrimônio e das heranças no
Brasil.
Fonte:
Entrevista com Marciano Seabra de Godoi, para IHU OnLine
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