sábado, 29 de julho de 2023

Para quilombolas, Censo 2022 fortalece a reivindicação por direitos

A divulgação dos dados do Censo Demográfico 2022 referente aos quilombolas nesta quinta-feira (27) é celebrada por lideranças de diferentes organizações e entidades. A expectativa é de que o levantamento contribua para retirar essas populações da invisibilidade e fortaleça reivindicações por garantia de direitos e acesso a políticas públicas. No entanto, ao mesmo tempo em que classificam o momento como "histórico", essas organizações apontam questões que precisam ser melhoradas em futuros levantamentos.

Esta foi a primeira vez que um Censo Demográfico contabilizou a população quilombola. Segundo os dados, são 1.327.802 de quilombolas no país, o que corresponde a 0,65% da população brasileira. Os resultados também mostram que essa população está distribuída por 1.696 municípios.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) considera a divulgação deste recorte do Censo uma conquista do movimento quilombola. "Estamos muito felizes de vencermos essa etapa. Esperamos reconhecimento em todas as esferas, tanto municipal, como estadual, como federal. Diante de um dado oficial, esperamos que os diversos órgãos nos reconheçam e nos deem acesso às políticas públicas", disse José Alex Borges, coordenador executivo da Conaq.

Ele aponta que houve dificuldades relacionadas a cortes de recursos financeiros e recurso humanos, dificultando a contagem nos diferentes territórios, mas destaca a importância do levantamento.

"É um instrumento legal. Nós temos inúmeros levantamentos feitos pelo movimento quilombola. Mas não é oficial. A partir de agora teremos esses números oficiais e poderemos cobrar dos governantes recursos e políticas públicas para nos atender".

•        Censo

O Censo Demográfico é a única pesquisa domiciliar que vai a todos os municípios do país. As informações levantadas subsidiam a elaboração de políticas públicas e decisões relacionadas com a alocação de recursos financeiros. Embora o Brasil realize uma operação censitária a cada dez anos, esta é a primeira edição a incluir no questionário um quesito para identificar os quilombolas.

O Censo 2022 deveria ter sido realizado em 2020, mas foi adiado duas vezes: primeiro devido à pandemia de covid-19 e depois por adversidades orçamentárias.

Os primeiros resultados com os dados gerais da população foram apresentados no final do mês passado revelando um país com 203 milhões de residentes. A divulgação nesta quinta-feira (27) das informações referentes aos quilombolas já estava agendada desde a semana passada. No dia 7 de agosto, serão apresentados os resultados do levantamento dos residentes indígenas.

•        Invisibilidade

Morador do Quilombo do Cumbe, em Aracati (CE), o educador popular, João Luís Joventino do Nascimento avalia que o Censo deve tirar essas populações da invisibilidade. Em 2021, o município chegou a negar à sua comunidade o acesso prioritário à vacinação contra a covid-19, que era garantido pelo Plano Nacional de Imunização (PNI). Na época, a Defensoria Pública acionou a Justiça pelo reconhecimento do direito.

"Através do Censo, podemos ter um diagnóstico da situação de cada comunidade quilombola do Brasil. Vamos ter informação de quantos somos e como vivemos. O Censo também nos ajudará a silenciar gestões municipais que insistem em dizer que nós não somos quilombolas", diz João Luís.

O educador espera também que a divulgação dos resultados possibilite um avanço das políticas públicas. "Especialmente no que diz respeito à questão fundiária, porque o acesso à terra e ao território é uma questão primordial. A luta pela terra e pelo território é a mãe de todas as lutas. Dela deriva a luta pela construção de escolas quilombolas, pela educação diferenciada, pela saúde, pela agricultura e pela soberania alimentar".

Essa é também a aposta de Eulalia Ferreira da Silva, do Quilombo Pedra Bonita, encravado em um dos quatro setores do Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro. No território fica a rampa de voo livre de onde turistas e adeptos de esportes radicais saltam de asa delta ou de parapente para apreciar uma visão única da capital fluminense antes de aterrissar na Praia de São Conrado. Mesmo estando localizada em uma capital, a comunidade ainda não tem energia elétrica.

"Foi super importante a chegada do IBGE no nosso quilombo. Eu fiquei muito emocionada em receber aqui. Acredito que junto com o IBGE, outros serviços públicos vêm a reboque como água, luz, saneamento básico, vacina, entre outros. Trata-se de reconhecimento. Eu existo, eu vivo aqui, eu defendo esse território. Meus pais defenderam esse território para ninguém invadir e para manter preservado. E nós não temos esse reconhecimento", afirma Eulalia.

Nascida no Quilombo Kalunga, em Cavalcante (GO), a advogada Vercilene Dias também celebra o momento. "Sem saber quem são e onde estão, fica difícil especificar políticas públicas para uma população. Então é muito importante essa visibilização, ainda que não seja um número 100%".

Assessora jurídica da Conaq, Vercilene pondera que se trata de um primeiro levantamento com algumas limitações e que é preciso discutir determinadas questões para as futuras pesquisas.

"O quesito quilombola só aparecia no questionário onde houvessem comunidades quilombolas. Em 2019, o IBGE fez um levantamento preliminar para saber a localização dessas comunidades. Em razão disso, muitos quilombolas que moram nas cidades ficaram sem ser contabilizados. Eu sou um exemplo. Hoje eu moro em Brasília. Para abrir o quesito quilombola, eu teria que estar na minha comunidade, na casa dos meus pais, no dia que a equipe do IBGE passou lá", observou.

•        Desafios

No período colonial, os quilombos eram definidos como comunidades formadas por pessoas negras que resistiram à escravidão e haviam fugido. Embora esse conceito tenha sido reproduzido por muitos anos, houve nas últimas décadas um movimento em busca de uma redefinição a partir da perspectiva antropológica.

Hoje, diferentes pesquisadores observam que muitas dessas comunidades originais foram extintas ao longo do tempo, por pressões de diversas naturezas: sociais, culturais, demográficas, econômicas, etc. Essas populações que passaram por esse processo acabaram se dispersando para novos territórios, dando origem a outros arranjos comunitários.

No Dicionário do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a definição do verbete quilombo é assinada pela antropóloga Beatriz Accioly Vaz. Segundo ela, houve uma apropriação do termo pelos movimentos sociais camponeses mobilizados e organizados em torno do fator étnico. Eles promoveram um rompimento com a definição do quilombo a partir de uma perspectiva "passadista", abarcando a diversidade e a dinâmica dessas populações ao longo do tempo.

"Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal, ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio".

Em entrevista à TV Brasil, o historiador e cientista político Wallace Moraes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, avaliou que o cenário ainda é desafiador para a luta pelo reconhecimento dessas populações. "Ainda não há uma política concreta e efetiva para reconhecimento dos territórios quilombolas. Isso é mais do que urgente, inclusive por justiça para esses povos que resistiram à escravização".

Segundo ele, o período recente foi de retrocesso. "Os quilombos existem desde quando existe escravização de corpos negros neste país. Ocorreu a escravização de africanos trazidos para cá para produzir riqueza para os colonialistas. Então grande parte dos negros se revoltaram e formaram quilombos. No século 20, houve algum reconhecimento desses quilombos enquanto legítimos. Mas nos últimos quatro anos, houve uma total paralisação do reconhecimento dessas comunidades em função da política estabelecida pelo governo anterior conduzido".

 

       Para geógrafo, censo quilombola faz um retrato ainda incompleto

 

Os dados sobre quilombolas no Brasil divulgados nessa quinta-feira (27) foram a primeira vez que um Censo Demográfico contabilizou a população quilombola. Mas, de acordo com o geógrafo Rafael Sanzio dos Anjos, os dados do Censo 2022 sobre os quilombolas devem ser encarados como um primeiro retrato oficial dessas populações, mas ainda não representa a realidade.

Os resultados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que vivem no Brasil 1.327.802 quilombolas, o que corresponde a 0,65% dos residentes no país. Os dados também mostram que essa população está distribuída por 1.696 municípios. Um levantamento prévio feito pelo IBGE em 2019 listou 5.972 localidades quilombolas para visitação durante o Censo 2022. No entanto, segundo o geógrafo, existem mais de 6 mil comunidades no país.

 “Essa é uma primeira cartografia do IBGE. Podemos ter uma segunda, uma terceira e é lógico que isso deverá estar futuramente mais completo. Até porque nós estamos trabalhando com território de exclusão. São territórios que foram excluídos por cinco séculos. Não é no primeiro levantamento oficial que vamos ter todas as comunidades e todos os territórios étnicos. Seria pedir demais. Então é um processo. Acredito que o IBGE também tenha essa clareza”, avaliou.

•        Visibilidade

Pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em cartografia quilombola, Rafael destaca a importância do levantamento censitário para dar visibilidade a essas populações. “Nós temos sete Constituições Federais e apenas na última, de 1988, a palavra 'quilombo' vai aparecer. Ou seja, há 34 anos. Mas os quilombos estão presentes no Brasil desde o século 16. Por que tanto tempo, na nossa historiografia, tem esse registro de invisibilidade e de exclusão desse tipo de território de resistência?”, questiona.

O Censo Demográfico é a única pesquisa domiciliar que vai a todos os municípios do país. As informações levantadas subsidiam a elaboração de políticas públicas e decisões sobre onde o orçamento será investido. O Censo 2022 deveria ter sido realizado em 2020, mas foi adiado duas vezes: primeiro devido à pandemia de covid-19 e depois por questões orçamentárias. Embora o Brasil realize uma operação censitária a cada dez anos, somente nesta edição houve a inclusão de um quesito no questionário para identificar os quilombolas.

O geógrafo lembra, entretanto, que esforços para mapeamento dessas populações têm sido empreendidos há algum tempo na academia. Ele conta que uma dessas iniciativas está atrelada ao Projeto Geografia Afrobrasileira: Educação, Cartografia & Ordenamento do Território (Geoafro) que mobiliza pesquisadores da UnB, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e de outras instituições, e conta com uma ampla rede de apoio que abrange inclusive órgãos vinculados ao governo, como a Fundação Cultural Palmares e o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Rafael desenvolve estudos no âmbito desse projeto.

“Em 2000, o IBGE convidou o Geoafro para ir à sua sede no Rio de Janeiro apresentar seu primeiro cadastro. Apresentamos a publicação que constava uma pequena parte dos territórios quilombolas do Brasil. Então precisamos dizer que a preocupação do IBGE vem desde o ano 2000. Mas não aconteceu no Censo de 2000 e nem no de 2010. Finalmente aconteceu no Censo de 2022. É importante colocar isso porque esse dado novo que o IBGE levantou e está divulgando é resultado de um processo histórico que envolve diversos colaboradores”, pontua.

O Geoafro publicou no ano de 2020 seu mais recente cadastro de territórios quilombolas do Brasil, o qual aponta para os mais de 6.000 territórios quilombolas. Segundo Rafael, o Censo 2022 recenseou parte significativa, mas muitos ainda ficaram de fora. “Eu penso que é algo que o IBGE irá resolver dentro do seu processo de planejamento. Eu até diria que esses resultados deveriam ter um nome como primeira configuração ou como o primeiro retrato”.

De acordo com o pesquisador, um caminho para aprimorar futuros levantamentos é observar a distribuição geográfica das comunidades mapeadas e cruzar estas informações com dados históricos. “Aonde houve atividades econômicas coloniais imperiais, como mineração de ouro e diamante, ciclos de boiada, produção agrícola de cacau, café, cana-de-açúcar, algodão, enfim, onde houve essas atividades, existem comunidades quilombolas”.

•        Políticas públicas

Lideranças de comunidades quilombolas e organizações representativas têm manifestado a expectativa de que a divulgação dos resultados abra caminho para maior reconhecimento, garantia de direitos e acesso a políticas públicas. Rafael avalia que os dados levantados pela academia são dados “oficiosos”, que tem validade e credibilidade. Segundo o geógrafo, o dado oficial do IBGE tem outro tipo de penetração, devido ao seu valor dentro da governança da nação.

"É preciso olhar para essa oficialidade que o Brasil está dando aos territórios quilombolas e ver de que forma serão implementadas de fato políticas que são esperadas há muito tempo. Então, eu diria que é um momento especial nesse sentido, para que tenhamos diretrizes mais assertivas de políticas públicas”, diz.

“A educação quilombola, por exemplo, é necessária nos quilombos porque ela guarda a tradição, a cultura, a historicidade, a língua, as referências religiosas. Esse tipo de educação para um território tradicional merece uma prioridade. E aí o Ministério da Educação tem que trabalhar com isso”, conclui.

 

       Fundação Cultural Palmares reconhece mais 23 comunidades quilombolas

 

Um dia após a divulgação dos dados do Censo Demográfico 2022, que pela primeira vez no Brasil entrevistou e contabilizou a população quilombola, a Fundação Cultural Palmares (FCP) emitiu 17 certificados para comunidades que se autodeclararam remanescente de quilombo. As portarias foram publicadas na edição do Diário Oficial da União desta sexta-feira (28).

Ao todo, 23 comunidades foram reconhecidas em seis estados. Sendo 11 comunidades em Minas Gerais, sete na Bahia e outras cinco nos estados de Alagoas, Ceará, Goiás, Maranhão e Rio Grande do Norte.

Segundo informações divulgadas pela FCP, as comunidades são certificadas em um processo autodeclaratório, sem que haja conferência, conforme é definido por convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Um decreto presidencial de 2003, que regulamenta esse processo, define essas comunidades como “grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

Segundo os dados revelados pelo Censo 2022, 1.327.802 pessoas se reconhecem quilombolas, o que representa 0,65% da população brasileira, presente em 1.696 municípios. Atualmente, somadas as certificações de hoje, a fundação emitiu 2.946 certidões para 3.614 comunidades.

Com as certificações, as comunidades de Ribeirão da Cachoeira, Santos Dumont, Santa Maria de Itabira, Januária, Peçanha, Marreca, Tanque, Barreirinho, Bom Jardim, Zabelê e Cristália, estão localizadas em Minas Gerais; Pedra de Amolar, Muquém, Barra Nova, Enchu, Arrecife, Fazendão e Baixão, na Bahia; Santana do Ipanema, em Alagoas; Serrano do Maranhão, no Maranhão; São Gonçalo, no Ceará; Mata do Café, em Goiás; e Primeira Lagoa, no Rio Grande do Norte passam a ter acesso as políticas públicas e assistência técnica e jurídica da Fundação Palmares. O reconhecimento também é fundamental para o processo de titulação das terras onde essa população vive.

•        Serviço

Para o processo de emissão da certidão, a comunidade precisa fazer solicitação no site da Fundação Cultural Palmares, onde é necessário anexar a ata de reunião para tratar do tema de autodeclaração, se a comunidade não possuir associação constituída, ou a ata de assembleia, se houver associação formalizada, com assinatura da maioria dos membros. Também é preciso anexar um breve relato histórico da comunidade e preencher um requerimento de certificação disponível na página da instituição.

 

Fonte: Agencia Brasil

 

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