segunda-feira, 31 de julho de 2023

O impacto do El Niño na produção global de alimentos

A Organização Meteorológica Mundial (OMM) declarou o início do primeiro evento El Niño dos últimos sete anos. A OMM estima em 90% a probabilidade de ocorrência, ao longo de 2023, do fenômeno climático que envolve o aquecimento incomum do Oceano Pacífico, com potência moderada.

O fenômeno El Niño traz clima mais quente e seco para lugares como o Brasil, a Austrália e a Indonésia, aumentando o risco de incêndios florestais e secas. Já em outros países, como o Peru e o Equador, ele aumenta as chuvas, gerando enchentes.

Os efeitos são descritos, às vezes, como uma prévia do “novo normal” frente às mudanças climáticas geradas pela atividade humana. E suas consequências sobre a produção agrícola — e, portanto, sobre o preço dos alimentos, em especial dos grãos básicos, como trigo, milho e arroz — são particularmente preocupantes.

Os impactos globais do El Niño são complexos e diversificados. Potencialmente, ele pode influenciar a vida da maioria da população mundial, especialmente as famílias pobres e da zona rural, cujo destino é intrinsecamente relacionado ao clima e à agricultura.

É improvável que o abastecimento global e os preços da maioria dos alimentos acompanhem tantas oscilações. As evidências das dez ocorrências do El Niño nas últimas cinco décadas indicam impactos relativamente modestos e, até certo ponto, ambíguos sobre os preços globais.

Esses eventos, embora tenham reduzido a produção agrícola média, não resultaram na “tempestade perfeita” em escala que induziria “choques na produção dos cereais básicos”.

Mas os efeitos locais podem ser sérios. Até um El Niño “moderado” pode afetar significativamente produtos restritos a áreas geográficas específicas, como o óleo de palma, que provém principalmente da Indonésia e da Malásia.

Em algumas regiões, a disponibilidade e a acessibilidade dos alimentos induzidas pelo fenômeno El Niño podem gerar consequências sociais sérias, como conflitos e fome.

•        Impacto sobre preços globais dos alimentos

O gráfico a seguir exibe a correlação entre os eventos El Niño e os preços globais dos alimentos, medidos de acordo com o Índice de Preços de Alimentos das Nações Unidas.

O índice acompanha as alterações mensais dos preços internacionais de uma cesta de alimentos básicos.

Ele demonstra um padrão inflacionário geral dos alimentos, mas raramente existem grandes oscilações nos anos de ocorrência do fenômeno El Niño. Pelo contrário, o índice mostra redução de preços nos dois episódios mais fortes do El Niño das últimas três décadas.

Outros fatores causados pelos seres humanos influenciaram os preços, principalmente a crise financeira na Ásia em 1997 e a crise financeira global de 2007-2008. E, em 2015, os preços dos alimentos caíram devido à redução da demanda e à oferta maior do que a esperada, já que a ocorrência do El Niño acabou não sendo tão forte quanto se temia.

Tudo isso sugere que o El Niño, normalmente, não desempenha papel preponderante nas flutuações dos preços globais das commodities.

•        Impactos sobre a oferta de trigo

Por que isso acontece? Porque o El Niño, de fato, causa redução da produção agrícola, mas, no caso de alimentos que são cultivados em todo o mundo, essas perdas costumam ser compensadas pelo aumento da produção em outras regiões importantes.

O fenômeno pode trazer, por exemplo, condições climáticas favoráveis para o Chifre da África (Djibuti, Etiópia, Eritreia e Somália), uma região assolada por conflitos e suscetível à fome.

O trigo é um bom exemplo de produto. O El Niño vem afetando a produção de trigo na Austrália desde 1980.

Dentre nove ocorrências do El Niño com potência pelo menos moderada, a produção australiana de trigo caiu significativamente em seis deles – e, em quatro desses casos, pelo menos 30% abaixo da média.

A Austrália é um dos três maiores exportadores de trigo do mundo. Ela representa cerca de 13% das exportações mundiais. Por isso, sua produção realmente afeta os preços mundiais do produto.

Mas, em termos do total de trigo cultivado, a Austrália é menos significativa – ela representa cerca de 3,5% da produção mundial. E a redução da produção australiana causada pelo fenômeno El Niño tende a ser compensada pela produção em outras grandes regiões produtoras de trigo.

O gráfico a seguir compara as alterações da produção de trigo da Austrália com outros exportadores de trigo importantes, em anos de ocorrência do El Niño. As quedas da produção australiana tendem a ser compensadas pelas alterações em outras partes do mundo.

Em 1994, por exemplo, a produção australiana de trigo caiu cerca de 50%, mas sofreu poucas alterações em outras partes do mundo. Em 1982, quando a produção australiana caiu 30%, a safra da Argentina foi 50% mais alta.

Esses padrões de equilíbrio tendem a existir na maior parte dos anos em que ocorre o fenômeno El Niño.

•        Mas alguém pagará a conta

Dito isto, é preciso ressaltar que ainda haverá alguns efeitos negativos.

Mesmo que a queda da produção em uma região seja totalmente compensada por safras maiores em outras, algumas pessoas irão pagar os custos dos impactos diretos do El Niño.

Os agricultores australianos, por exemplo, sofrerão mais se a produção local de trigo cair e os preços globais ficarem relativamente estáveis.

Além disso, como o comércio entre a maioria dos países é conectado, o El Niño terá impactos econômicos mais abrangentes. E pode também criar questões sociais mais profundas em algumas regiões, como fome e conflitos agropecuários.

Estes efeitos também podem ser mais sutis. A redução da colheita na África, por exemplo, pode reduzir a violência sazonal relacionada à apropriação do excesso de produção agrícola.

Mas, considerando outras vulnerabilidades pelo mundo, a probabilidade é que mesmo um El Niño moderado agrave ainda mais certas condições socioeconômicas que já são desastrosas em alguns países.

A maior parte das advertências e alarmes comuns sobre as mudanças climáticas também se aplica neste caso. A diferença, é claro, é que tudo isso está acontecendo agora.

 

Fonte: Por David Ubilava, para The Conversation

 

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