segunda-feira, 31 de julho de 2023

‘O chamado da floresta’: médica relata experiência e rotina de cuidado com povo Yanomami

Quando, nos idos de 2016, a médica Carla Rodrigues concluiu a graduação no interior de São Paulo, já suspeitava que seu destino não estaria em um consultório tradicional, com os pacientes vindo à procura de atendimento de saúde. Devota da Medicina de Família e Comunidade, ela adotou a ideia de peregrinar, se fosse preciso, até lugares mais longínquos para garantir esse acompanhamento a pessoas em situação de maior vulnerabilidade. Algum tempo depois, resolveu, então, candidatar-se a uma vaga no programa Mais Médicos.

Em 2021, em plena pandemia, Carla aportou pela primeira vez na Terra Indígena (TI) Yanomami, a maior reserva indígena do país, e por ali chegou com uma mochila-consultório nas costas, peito aberto e coração pulsante, à espera da mais nova jornada profissional. Nascida em Rondônia e filha de um ex-garimpeiro que atuou no estado na década de 1980, a médica se deparou com algo de valor subjetivo que, sem perceber, trouxe-lhe de volta até o Norte do país. “Quando eu fui fazer terapia, eu falei ‘caramba, tinha um ponto aí do qual eu nem estava consciente’”, narra.

Em uma primeira temporada, Carla ficou 11 meses na TI, de onde decidiu sair depois por conta do conjunto das dificuldades. Em fevereiro deste ano, a médica acabou retornando para atuar pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, e viver, então, outros desafios. “Tem um chamado, o chamado da floresta. Para mim, era o único caminho a seguir e não existia outro. Fui seguir o meu chamado, e as portas foram se abrindo”, afirma, ao revelar o tom místico que a narrativa foi ganhando.

E foi a partir disso que a missão com a população Yanomami frutificou. A jornada foi lhe rendendo um rosário de vivências, provocações, aprendizados que vão desde o choque cultural, a lida com a cosmovisão indígena diante de seus processos de doença e morte até o desafio de administrar os atendimentos de saúde em meio às complexidades da situação local.

Atualmente, passados seis meses do decreto do governo federal que formalizou a emergência sanitária na TI Yanomami, a tarefa cotidiana de Carla Rodrigues e outros profissionais de saúde inclui a tentativa de libertar a comunidade de doenças já familiares para a medicina, mas que têm ciclos longos de tratamento e por isso desafiam os serviços de saúde.

“Às vezes demora seis meses, 12 meses para a gente conseguir tirar uma pessoa da desnutrição. Você tira [da situação] grave com complicação, mas aí depois ela continua grave, fica [em uma situação] moderada, depois não mais grave, mas ainda assim precisando de uma manutenção para que não retorne ao estágio inicial. Então, é algo de longo prazo”, explica a médica.

Mais que isso, trata-se também de enfermidades que são velhas conhecidas dos profissionais de saúde, mas para as quais os grandes laboratórios não deram muita audiência ao longo da história. “São doenças negligenciadas, que a ciência não tem interesse em estudar porque não dão retorno financeiro, como malária, tuberculose, desnutrição. A ciência não chegou aqui dentro”, desabafa Carla Rodrigues, a médica que aprendeu ainda a se encantar com a experiência na TI Yanomami.

E eis que o feitiço da experiência engrandece a bagagem que a profissional carrega hoje consigo. “Aprendi a dar risadas. Eles dão muita risada. Os olhos das crianças são brilhantes. Fico hipnotizada. No meio urbano, as crianças parecem que estão anestesiadas, pálidas, mas lá dentro as pessoas são muito vivas”, conta. Foi com essa leveza que a médica atendeu o Brasil de Fato, em uma brecha da agenda de folgas, e conversou sobre esses e outros pontos que cercam sua atuação no local. >>>>> Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

·         A emergência sanitária na TI Yanomami está completando seis meses agora. O secretário de Saúde Indígena, Weibe Tapeba, afirmou na sexta-feira (21) que a situação está melhor, mas ainda não está resolvida. Na sua experiência como médica ali na comunidade, de que forma percebe na prática que de fato a problemática da saúde Yanomami ainda tem desafios pela frente?

Carla Rodrigues: A gente pode pontuar a situação da malária, uma doença que não pode ser controlada rapidamente porque tem os fatores ambientais (do mosquito, dos reservatórios, dos locais onde os mosquitos se reproduzem, os criadouros), tem que se ter um trabalho contínuo de atendimento, de busca ativa dos casos junto aos pacientes e do controle do tratamento. Isso só pra ilustrar um dos casos. Às vezes demora meses ou anos para se conseguir controlar uma doença como a malária. Então, em seis meses numa área onde, por segurança, a gente ainda não conseguiu adentrar todas as comunidades do território Yanomami, que é muito grande, a malária é o nosso “top one” de problema dentro da terra.

São doenças que não são de fácil resolução. Não é em uma ação pontual que a gente consegue resolver tudo, como se fosse uma catástrofe em que a gente vai lá, vai atrás das pessoas que estão soterradas e leva para o hospital. Malária, desnutrição, tuberculose são coisas que demandam um tempo para se controlar, por isso que a gente ainda não conseguiu sair da emergência. E são pessoas que estão há muitos anos debilitadas por essas e outras doenças. Por exemplo, às vezes demora seis meses, 12 meses para a gente conseguir tirar as pessoas da desnutrição. Às vezes você tira ela [da situação] grave com complicação, mas aí depois ela continua grave, fica [em uma situação] moderada, depois não mais grave, mas ainda assim precisando de uma manutenção para que não retorne ao estágio inicial. Então, é algo de longo prazo.

·         A senhora se graduou em 2016. Já tinha essa vontade de atuar junto à população indígena naquela época?

Eu sempre quis não trabalhar dentro de um consultório. Nunca gostei de ficar entre quatro paredes esperando que o paciente viesse até mim. Quando eu fui descobrindo que existia a saúde indígena, que era uma política pública, que eu teria essa chance, fui me apaixonado e [pensei] “nossa, existem outros modos de se fazer medicina que não numa cidade”. E acho que pela minha história de vida também: eu vim do Norte, meu pai foi garimpeiro na década de 1980, eu tive contatos com a população indígena em Rondônia e aquilo ficou no meu imaginário. Agora, quando eu fui fazer terapia, eu falei: “Caramba, tinha um ponto aí do qual eu nem estava consciente!”.

·         Essa experiência profissional lhe leva para o seu passado?

Com certeza.

·         A senhora chegou à TI Yanomami em 2021, em plena pandemia. Como foram os seus primeiros momentos no local?

Como muitas pessoas que estão no contexto urbano, eu não conhecia muito a saúde indígena. No meu imaginário, eu achava que não teria estrutura nenhuma, que dormiria ao relento. Então, eu vim extremamente preparada [para o caso de] ter que dormir em acampamento. Fiz uma mochila-consultório e lembro que meu pai me ensinou muito sobre acampamento – eu acampava muito com ele quando era criança. Então, eu já tinha um pouco essa habilidade de sobrevivência nesses contextos. Quando eu cheguei, queria ir para os lugares que precisavam mesmo.

Não importava para onde me levassem, e aí os meus primeiros lugares tinham estrutura, apesar do alto grau de complexidade, tinham o mínimo. Eu fiquei meio frustrada e pensei “nossa, mas eu não quero trabalhar nisso” porque eu continuava dentro de um consultório, apesar de ele ser adaptado.

·         Isso era dentro do território?

Isso, só que era para o lado do Amazonas, em Maturacá, que é próximo a São Gabriel da Cachoeira. Era um outro molde, porque dentro do território Yanomami existem diferentes moldes. Tem onde não tem nada, tem onde não tem estrutura, onde tem o mínimo de estrutura. Eu falei que queria ir para o outro extremo, onde fico mais hoje.

·         Quando chegou lá de início, no meio da crise sanitária da covid, como foram as primeiras ocorrências de saúde que lhe apareceram?

Lá onde eu estava tinha muito a questão obstétrica. Era um lugar aonde as indígenas iam para ganhar bebê e eu me preocupava mais com isso. Tinha a parte respiratória também, mas a gente costuma dizer que a população indígena vive uma endemia há muito tempo, então, a covid foi só mais uma entre as tantas outras que eles vivem. Claro que complicou um pouco, teve um pouco mais de [demanda] respiratória, mas eles têm muitas doenças respiratórias também. Não que eles não tenham sentido – eles sentiram muito [a covid] –, mas já estavam acostumados a viver nessas situações, infelizmente.

·         O imaginário social tem uma certa impressão do que seria a Terra Indígena Yanomami. Quando a senhora chegou lá, aquilo lhe pareceu diferente do que se vê nos noticiários, por exemplo?

Sempre há os choques culturais, mas, como a minha formação – eu fiz residência em Medicina de Família e Comunidade –, uma das coisas que a gente estuda é a interculturalidade, é como lidar com culturas diferentes das nossas. O primeiro passo era observar, era o quase não agir, ir observando como era a relação saúde-doença para essas pessoas, a relação com a alimentação, como elas lidam com a morte. Eu entrei numa posição mais de observadora e só agia quando era inevitável.

Esse preparo que a Medicina de Família me deu me permitiu ir adentrando aos poucos, sem chegar muito como a gente tem na medicina mais comum, que é essa coisa mais intervencionista. Às vezes rolavam ate umas críticas, como se eu não quisesse fazer nada. Eu me lembro de um caso de um indígena que era um idoso, devia ter mais de 60 anos, o que é uma raridade pra um Yanomami porque a expectativa de vida deles é menor. Quando a gente acha alguém com 60 anos, é como se fosse alguém muito especial.

Ele estava no fim da vida dele e a equipe de saúde estava muito preocupada porque ele ia morrer e eu fiquei pensando que, primeiro, precisava entender o que a família esperava, se ela queria que eu ressuscitasse ou que eu só estivesse ali. Depois, fui entendendo que a família apenas queria que eu fosse lá ver os sinais vitais para ajudá-los a entender qual era o momento em que ele tinha morrido porque [na visão deles] era o momento mesmo de ele morrer e eles não queriam que eu passasse soro nem nada porque isso iria dificultar a subida do espírito. Aí fiquei só na retaguarda, então, olhando os sinais vitais.

Nisso, foi rolando o xabori, que é como uma pajelança [conjunto de práticas que evocam a religiosidade indígena], grosseiramente falando. Então, foi um momento de observação e de eu estar ali com a família. Ter estudado cuidados paliativos e essa parte cultural foi algo que me ajudou porque, talvez, em outro momento eu quisesse intervir muito, ressuscitar, etc., e isso seria mais agressivo para a família.

·         Essa experiência parece muito diferente daquilo que se vivencia em uma unidade de saúde urbana, segmento em que a senhora também já atuou. Se pudesse traçar um paralelo, o que colocaria como diferença entre esses dois universos?

Por mais que seja diferente, talvez seja uma postura que nós deveríamos ter mais, algo que a gente devesse respeitar e entender o que o paciente quer, independentemente de ele ser indígena. Na cidade, a gente tem mais dificuldade de lidar com a morte. Muitas vezes eu vi famílias dizendo “doutora, passa medicamento, passa soro, não deixa ele morrer”. A gente acaba fazendo [isso] com a família ali, mas, no paralelo, [a diferença] seria uma dificuldade de lidar com o fim.

Claro que o outro extremo que a gente tem na terra Yanomami, que são as mortes das crianças por desnutrição ou causas evitáveis, também é uma coisa que não dá para a gente ficar lá só assistindo. A gente sabe o que tem que fazer para evitar essas mortes. Mas, no caso do idoso, que era uma pessoa mais velha, de idade avançada, seria muito mais agressivo intervir dessa maneira à qual a gente está acostumado. Para eles, se o espírito não subir como tem que subir, isso vai causar um trauma psicológico enorme. Tem que se estar de coração aberto para entender todo esse contexto.

·         Na época em que se inscreveu para o Mais Médicos, a senhora tinha receio de alguma coisa? Não é muito comum os profissionais de saúde quererem ir para distritos de atendimento a indígenas…

Eu tinha um pouco de receio, mas era da violência, não dos indígenas, e sim do pessoal que entra lá, do garimpo, do narcotráfico. Não sei se é muita loucura, mas eu sempre achei – e hoje acho mais ainda – que a floresta tem um chamado, o chamado da floresta. Para mim, era o único caminho a seguir e não existia outro. Então, eu fui seguir o meu chamado e as portas foram se abrindo, às vezes fechando, me mandando para outro lugar, mas eu tinha um chamado dentro de mim.

·         Tem algo de místico nessa experiência, então, né…

Sim.

·         Por falar em medos, a senhora disse uma vez em entrevista que, na sua primeira temporada na TI Yanomami, chegava a dormir com facão em uma rede porque tinha medo de ser atacada. Como está a sua sensação de segurança hoje?

Acho que está bem melhor. Parece que nosso espírito está mais calmo. Não é que não tenha mais problemas, tem muitos. Mas agora a gente consegue adentrar o território com comunicação, a gente conseguiu uns telefones que permitem mandar mensagem e sempre tem alguém na retaguarda na logística. Se você precisar, eles vão atrás, vão dar um jeito, vão chamar o Ministério da Defesa, que está junto e pode mandar helicóptero, enfim. Parece que agora a gente tem mais segurança, ainda que tenha muitos desafios.

·         A senhora chegou lá pela primeira vez em maio de 2021. Tem alguma situação que tenha sido mais marcante de lá para cá?

Tem várias, mas eu acho que [foi] a primeira vez em que vi uma criança morrer, e ela tinha 4 meses. Até hoje é difícil falar porque aqui fora parece que as nossas crianças não morrem e a gente vê elas lutarem. Os estágios pelos quais passei em pediatria atendendo criança [me mostraram que], se uma criança está desidratada, você expande e ela volta. Então, as crianças não morriam. A primeira vez, isso foi no meu segundo mês de TI Yanomami, eu presenciei uma criança morrer. Aquilo foi uma coisa que me rasga até hoje, e foi só a primeira de muitas, mas eu não me conformava.

Acho que essas experiências de morte são coisas que me marcam e que, infelizmente, são muito comuns aqui por muita coisa que acontece, seja por briga, por conflitos armados, enfim, mas ver essa primeira criança morrer foi especificamente a que mais me marcou. É que também a família já sabia que a criança estava muito debilitada e, quando eles pediram à gente [para ir], eu fiquei umas quatro horas com os indígenas fazendo xabori e era um lugar muito escuro, muito quente.

Eu tive que fazer um acordo para estar ali dentro com eles e, quando eles chegavam para fazer o xabori, eu tinha que sair. Quando eles saíam, eu entrava. Acho que foram mais de quatro horas nesse movimento quase catártico, em que eu achava que estava pisando na linha da morte e voltando e, no final, eles sabiam primeiro que eu que a criança já tinha ido. E, quando isso acontece, tem um choro dos Yanomami que é muito forte. É um grito, parece que dá para ouvir lá do espaço. E aí vem a comunidade inteira passar a mão no corpo da pessoa que faleceu e eles fazem os ritos deles.

Nisso, eu tive que sair por baixo, senão seria atropelada pela comunidade inteira. Foi uma coisa que me deixou muito tempo – ainda me deixa às vezes – sonhando à noite com esse momento. É que também você se envolve espiritualmente, você vê eles fazendo o xabori. No final, eles vieram me consolar e falaram: “doutora, é assim mesmo. Foi o espírito do urubu”. Depois aconteceram outros casos, mas esse é o que mais me marca até hoje.

·         E, para enfrentar outras situações dessa, a senhora precisou trabalhar o seu emocional? É diferente agora?

Acho que agora meu espírito está mais forte. Acho que também eu já sei os caminhos. No começo, eu era inexperiente na [área de] saúde indígena, principalmente com os Yanomami. E também agora é um momento em que a gente tem mais recursos. Eu não entro mais em uma área sem material de emergência, sem material de malária, eu não entro mais desassistida. E eu sei que [se precisar] eu consigo uma remoção [de paciente]. Às vezes a família não quer, mas aí eu vou trabalhando [isso]. Acho que agora também as próprias comunidades estão mais abertas ao verem que vão ser atendidas porque muitas vezes eles não queriam ser removidos porque sabiam que seriam mais agredidos ainda no hospital ou em outros centros. Agora acho que eles estão sentindo que podem confiar mais na Saúde.

·         Por falar em material de socorro, a senhora disse à imprensa que, na sua primeira temporada no território, chegava a separar uma parte do seu salário para comprar itens básicos de socorro. Quando a senhora percebeu que deveria fazer aquilo? O que lhe moveu naquela ocasião?

Foi no segundo mês, em 2021, quando a farmácia estava desabastecida. E não era só eu que fazia isso. Muitos outros médicos faziam. A gente falava “ir lá só com o nosso corpo não vai resolver [o problema]” porque eles sempre falavam que tinham processos de licitação atrasados e tudo mais. Eu preferia comprar que ter que brigar. Eu só queria ir lá e fazer o meu trabalho. Queria contar com o que eu tinha e foi nesse intuito de “não quero brigar com ninguém e espero ir lá fazer o meu trabalho”.

·         Como tem sido atualmente a dinâmica do seu trabalho, o seu expediente na área?

Geralmente, o médico trabalha um para folgar um, então, fica 15 dias em área e 15 dias de folga ou 30 e 30. Como são lugares de difícil acesso, é uma temporada lá e uma temporada de descanso. É mais ou menos isso. A gente tem alguns profissionais que moram em Boa Vista e outros até em outros estados. Eu geralmente prefiro ficar 15 [dias de trabalho] e 15 [dias de folga] porque, emocionalmente, acho muito intenso.

·         Mesmo que hoje haja uma situação diferente em termos de socorro, com muitas equipes mobilizadas, apoio da polícia e um clima diferente no Brasil, ainda é, em alguma medida, desolador fazer esse trabalho?

Sim, é, principalmente agora. É um tema difícil de se falar… Com a saída do garimpo, eles, de certo modo, perderam o ponto de apoio que tinham. Era ponto de alimentação, comunicação, eles tinham certa dependência e relações. Então, quando o garimpo saiu, tirou-se isso deles e alguns não conseguiram entender.

Agora, quando a gente entra em lugares de onde o garimpo acabou de sair, é muito desafiador porque a gente teria que ser mais sedutor que o garimpo para conseguir trabalhar com eles, e a gente não vai ser por questões éticas, porque, enfim, não é do nosso trabalho. Então, é mais difícil conversar com eles. E eles também estão mais doentes, têm mais malária, desnutrição. Como a gente estava dizendo, não são doenças fáceis. Não é só eu ir lá, tratar e acaba em poucos dias.

A malária, por exemplo, tem uma medicação assistida, que todo dia a gente tem que estar com eles tomando porque pode ser que uns peguem todas as medicações e tomem de uma vez e outros podem dizer que não vão tomar, e aí não acabam o tratamento. Tem que ser um trabalho bem próximo, [tem que] ficar assistindo eles e conversando. Muitas vezes, quando a gente entra, tem que fazer comida para dar a medicação. O tratamento de malária é com uma medicação muito forte, então, tem que fazer mingau, dar a comida para depois dar a medicação.

E isso num lugar onde às vezes não tem estrutura porque eles estão em migração. Eles migraram para outro lugar tentando achar mais fertilidade no solo ou uma água mais limpa. Então, está num momento de transição pra eles também, e isso é difícil.

·         É bastante comum que médicos não queiram se habilitar para fazer atendimento nesses locais. Que credenciais a senhora acha que um profissional da medicina precisa ter para atuar nesse espaço e conseguir desenvolver o seu trabalho?

Eu acho que, primeiro, tem que sair do pedestal em que nos colocam aqui fora [no meio urbano]. Acho que tem que ser um ser humano, entender que vai lidar com outro ser humano, com uma equipe. Tem que ter resiliência porque são muitos desafios, ter o espírito meio aberto, meio livre para fazer o seu trabalho independentemente da estrutura ou de onde ele estiver. Também tem que ter um poder de criatividade porque, se eu não tenho, sei lá, uma sonda, vou ter que ir atrás de outra coisa. Tem que ter criatividade para achar soluções.

Tem que ser alguém que goste de problemas e de resolver problemas. Acho que isso que é importante também. É ter uma abertura intercultural, de conseguir absorver e não julgar, de se abrir para conhecer o outro, mas eu acho que o principal é estar disposto a aprender mais do que ensinar. Eu aprendo muito mais, em vários sentidos. Eu recebo bem mais, sem falsa modéstia. As equipes me ensinaram muitas coisas que eu não teria aprendido. Aprendi sobre malária com os agentes de endemias, por exemplo. Quando cheguei, como muitos de nós [médicos], eu só tinha visto malária nos livros e quem me ensinou muito foram eles. Eu levava os casos para eles e ia discutir com a equipe, perguntando “o que vocês acham que a gente pode fazer?”.

E eles sabem muito porque lidam com malária há 20 anos, e isso às vezes falta para os profissionais que chegam. A gente chega trazendo o que aprendeu nos livros, mas muitas vezes os casos não estão nos livros. Eles estão aqui porque, como são todas doenças negligenciadas, que a ciência não tem interesse em estudar porque não dão retorno financeiro, como malária, tuberculose, desnutrição, enfim, a ciência não chegou aqui dentro. Então, não adianta você vir achando que sabe tudo, que estudou tudo porque, quando você chega aqui, a realidade é outra. Quem tem experiência clínica é quem vai, muitas vezes, conseguir fazer um [atendimento de] saúde melhor para essa população. Acho que esse é um perfil muito importante de se ter. É ter essa abertura, aprender a buscar outras soluções.

·         Além das questões médicas, que tipo de coisa a senhora tem aprendido com a população Yanomami que vai levar para a sua jornada de vida pessoal?

Olha, aprendi a dar risadas. Eles dão muita, muita, muita risada. Eu acho isso muito bonito porque eles estão passando pelo que estão passando, mas estão rindo. Os olhos das crianças são brilhantes. E eu digo isso não romantizando porque não é algo a ser romantizado, mas é algo que me encanta. Eu fico hipnotizada e às vezes acho que não consigo sair. No meio urbano, as crianças parecem que estão anestesiadas, pálidas, mas lá dentro [na TI Yanomami] as pessoas são muito vivas. Acho que é isso que eu levo, essa vivacidade que elas têm.

 

Fonte: Por Cristiane Sampaio, no Brasil de Fato

 

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