Nome do Centrão
para o MS, deputado destinou 300 mil de dinheiro público para empresa amiga
Quando 2023 começou, Rafael Licurci perdeu uma de suas
fontes de renda. O advogado carioca é dono da Gávea Locações, uma empresa de
aluguel de carros sediada no Rio de Janeiro. Nos últimos quatro anos, teve um
faturamento sólido alugando sedãs e SUVs para o deputado federal Dr. Luizinho
(Progressistas-RJ), por um preço que variava entre 5 mil e 6 mil reais por mês.
Mas tudo acabou quando, convidado a assumir a Secretaria de Saúde do estado do
Rio, Luizinho se licenciou da Câmara dos Deputados em janeiro. Hoje, por
pressão de seu partido, ele é cotado para assumir o Ministério da Saúde, pasta
que entrou na mira do Centrão e atualmente é comandada pela pesquisadora Nísia
Trindade.
Num
Congresso de 594 parlamentares, cada qual com dezenas de assessores, o deputado
fluminense foi o único até hoje que contratou a Gávea Locações. Nunca procurou
outra locadora em seus quatro anos de mandato. Tinha preferência por Corollas e
pelo imponente Toyota Hilux SW SRX. Entre 2019 e 2022, destinou 328,5 mil reais
de sua cota parlamentar – que custeia as atividades do dia a dia no Congresso –
para alugar os carros oferecidos pela empresa de Licurci.
Licurci,
por coincidência, é amigo de Luizinho há anos. Trabalhou inclusive como
advogado em sua campanha a deputado federal, em 2018. Também por obra do acaso,
Licurci abriu a locadora de carros em 25 de outubro daquele ano, duas semanas
depois do primeiro turno, quando Luizinho foi eleito. Essa história foi relatada pela piauí em 2020, como um entre
tantos casos de deputados que beneficiam amigos e parentes com dinheiro da cota
parlamentar. No momento em que a reportagem foi publicada, Licurci tinha
faturado em torno de 100 mil reais alugando carros para Luizinho. Nos anos
seguintes, 233 mil reais se somariam à fatura.
Licurci
e Dr. Luizinho se conheceram em Nova Iguaçu, onde o deputado começou a
carreira. Enquanto fazia seu ganha-pão como ortopedista e dono de clínica,
Luizinho era cooperado da Unimed Nova Iguaçu, empresa para a qual Licurci
advogava. Em 2013, o médico foi convidado pelo então prefeito Nelson Bornier
para assumir a Secretaria de Saúde da cidade. Pesou a influência familiar:
Luizinho – que se chama Luiz Antônio de Souza Teixeira Júnior – é filho de Luiz
Antônio de Souza Teixeira, cidadão ilustre de Nova Iguaçu que já foi vereador e
presidiu a Câmara Municipal.
Dali
em diante, por onde Luizinho andou, carregou Licurci consigo. Em 2016, o jovem
político deu um salto na carreira: trocou a secretaria municipal, em Nova
Iguaçu, pela secretaria estadual de Saúde, nomeado pelo então governador Luiz
Fernando Pezão. Em seu primeiro mês à frente da pasta, Luizinho indicou Licurci
para um cargo comissionado, onde ele permaneceu até agosto de 2018. Depois
disso, o advogado trabalhou na campanha de Luizinho e, em seguida, resolveu que
era hora de alugar carros. O negócio prosperou nos anos seguintes – mas não foi
o único.
Não é ilegal que parlamentares contratem empresas de
amigos. Na Câmara, por exemplo, só há restrições quando se trata de familiares
ou servidores: um deputado não pode usar a cota parlamentar para contratar
empresa na qual ele próprio, ou algum de seus parentes até o terceiro grau, ou
um servidor da Casa tenha participação. Quanto aos amigos, vale tudo. Essa
brecha facilita a ocorrência de esquemas como a rachadinha, em que o
parlamentar contrata serviços fictícios ou superfaturados só para receber de
volta parte do dinheiro.
Não
por acaso, casos como o do Dr. Luizinho são muito comuns. Um de seus
conterrâneos, o deputado Juninho do Pneu (UNIÃO-RJ), é campeão na modalidade.
Gastou, em 2020, 51 mil reais alugando um Toyota Hilux na empresa de um
ex-assessor com quem trabalhou em Nova Iguaçu. Além disso, o pai e o cunhado de
Juninho têm suas próprias locadoras e faturaram 522 mil reais alugando veículos
para outros deputados federais entre 2019 e 2020.
Diante
desse descontrole do uso da cota parlamentar, a Câmara decidiu, tardiamente,
endurecer as regras: em agosto de 2020, proibiu também o nepotismo cruzado – ou
seja, deputados não poderiam mais contratar empresas de parentes de outros
deputados. Desde então, o pai e o cunhado de Juninho do Pneu não conseguiram
novos contratos. Depois da reportagem da piauí, o deputado também não voltou a contratar a empresa de seu
ex-assessor. Mas poderia. Não há, até hoje, regra ou fiscalização que impeça o
uso da cota parlamentar para favorecer empresas de amigos.
Exemplo
disso é Joel Novaes da Fonseca. Homem de confiança de Jair Bolsonaro, até o ano
passado ele era assessor especial no Palácio do Planalto. Enquanto esteve na
função, sua mulher e sua filha, proprietárias da Locar1000, fizeram uma pequena
fortuna alugando carros para deputados – a maioria deles da base bolsonarista,
como Bia Kicis (PL-DF) e Hélio Lopes (PL-RJ). Em 2021, a empresa mudou de nome
(passou a se chamar NovaCar), mas manteve a fidelidade dos clientes. Nos
últimos quatro anos, faturou 1,8 milhão de reais de cota parlamentar. Hoje, que
não tem mais cargo no governo, Fonseca passou a empresa para seu próprio nome.
Continua ganhando milhares de reais por mês.
Se deixou de faturar com o aluguel de carros, tudo
indica que Rafael Licurci, amigo de Luizinho, já encontrou outras fontes de
renda. O advogado tem um portfólio variado de investimentos: é proprietário de
quatro empresas que prestam serviços diversos, de consultoria empresarial a
aluguel de imóveis. Em 2016, ele fundou a Ralic, uma distribuidora que, segundo
a descrição apresentada à Receita Federal, faz de tudo um pouco: comercializa
roupas, água, cerveja, alimentos, remédios, equipamentos odontológicos e até
produtos de informática.
A
criação da Ralic coincide com a chegada de Dr. Luizinho – e, por tabela, do
próprio Licurci – à secretaria estadual de Saúde do Rio. Dali em diante, a
empresa prosperou. Faturou ao menos 2 milhões de reais vendendo remédios para
cidades fluminenses. Entre 2018 e 2019, por exemplo, fechou três contratos com
a prefeitura de Búzios que, juntos, somavam 1,4 milhão de reais. Com a
prefeitura de Quissamã, foram 547 mil reais no mesmo período. Em Queimados, em
2020, foram 571 mil reais.
Depois
de tanto faturar, Licurci vendeu a Ralic em janeiro de 2022. A partir
desse momento, a empresa viveu um novo boom de negócios, agora
diretamente com a Secretaria de Saúde do Rio. Firmou 106 contratos desde o ano
passado, num valor total estimado em 5,3 milhões de reais. A boa fase continuou
este ano, quando Luizinho assumiu a pasta. Desde janeiro, a Ralic abocanhou 1,2
milhão de reais em contratos com o governo.
Há
poucas semanas, uma reportagem da TV Globo revelou que a Polícia Federal está
investigando a Relic por lavagem de dinheiro. Segundo a emissora, um relatório
do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) aponta que, entre 2017
e 2018 – quando Luizinho ocupava o cargo de secretário de Saúde do Rio –,
entraram 11 milhões de reais na empresa de Licurci. No mesmo período, a empresa
repassou 2,8 milhões para a conta de Licurci, valor incompatível com a renda do
advogado, segundo o Coaf. Parte expressiva do dinheiro – quase 1 milhão de
reais – foi sacado em espécie.
Além
disso, segundo a TV Globo, Licurci teria atuado como representante do Instituto
de Medicina e Projeto (IMP), uma OS (organização social) que obteve milhões de
reais em contratos com prefeituras do Rio. Em março, o Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro anunciou a abertura de inquéritos para investigar duas
empresas contratadas pelo município de Nova Iguaçu com dispensa de licitação –
entre elas está o IMP.
Procurados
pela piauí, Dr. Luizinho e
Rafael Licurci disseram não ter conhecimento sobre as investigações. O advogado
alegou, por meio de nota, que não responde mais pela Ralic e que nunca teve
relações com o IMP. Já Dr. Luizinho, a despeito de sua evidente proximidade com
o advogado, respondeu: “posso afirmar categoricamente que nunca tive
conhecimento de que o sr. Rafael Licurci possuía uma empresa de medicamentos.”
O deputado reconheceu que Licurci é seu amigo, mas disse: “não tenho como ter
ciência sobre toda a vida comercial de um amigo”.
Licurci
não respondeu à piauí se
acha adequado receber centenas de milhares de reais de dinheiro público
alugando carros para seu amigo deputado. Dr. Luizinho, por outro lado, foi mais
claro: disse não ver “qualquer tipo de conflito de interesse” em contratar a
empresa do amigo. A Gávea Locações, segundo Licurci, tem uma frota de sete
veículos e continua apta a prestar serviços em todo o país. Até agora, porém,
nenhum outro deputado se interessou em contratá-la.
Fonte:
Revista Piaui
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