Luiz Carlos Azedo:
Reforma sedimenta a aliança entre Lula-Lira
Apesar
do forte simbolismo da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do vice,
Geraldo Alckmin, eternizado na foto de subida da rampa do Palácio do Planalto
em companhia do cacique Raoni e outros representantes de minorias, o marco
inaugural do novo governo foi 8 de janeiro. Enquanto bolsonaristas de extrema
direita invadiram, e depredaram, as sedes dos poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, com claro objetivo de provocar uma intervenção militar, o
ex-presidente da República e alguns auxiliares mais próximos, como ex-ministro
da Justiça Anderson Torres, acompanhavam as cenas pela tevê, em Miami, nos
Estados Unidos.
A
tentativa de golpe virou caso de polícia, a ser julgado pelo Supremo Tribunal
Federal. Nesses seis meses, a agenda do país mudou radicalmente. A pauta
identitária, que estava dando o tom do governo, ao lado da agenda ambiental e
da diplomacia presidencial, ficou em segundo plano. A centralidade política
passou a ser a defesa da democracia, compartilhada com os demais poderes,
principalmente o STF.
Naquele
momento, embora dono de 58.206.322 votos (49,1%), 400 mil a mais do que em
2018, Bolsonaro iniciava o processo de isolamento que culminou na sexta-feira
passada, com a fragorosa derrota que sofreu na Câmara. A reforma tributária foi
aprovada em primeiro turno por 382 deputados a favor e 118 contrários (três se
abstiveram). Na segunda votação, foram 375 votos a favor e 113 contrários à
PEC.
Que
ninguém se iluda. A vitória na votação se deve a uma aliança entre Lula e o
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que teve muita fricção nesses seis
meses, mas de fato vem sendo decisiva para os rumos do país. Foi iniciada antes
mesmo da posse, com aprovação da PEC da Transição. Eleito com 60.345.825 votos
(50,9%), apenas 1,8% de vantagem em relação ao ex-presidente da República,
graças a esse acordo Lula pode relançar o Bolsa Família e o Minha Casa Minha
Vida nos primeiros dias de governo. A contrapartida foi a reeleição de Lira à
Presidência da Câmara, com apoio do PT.
Relembrar
essa PEC é importante para compreender a vitória do governo. Muito criticada em
razão do volume de recursos do Orçamento da União que ultrapassava o antigo
teto de gastos — R$ 145 bilhões para bancar despesas como o Bolsa Família, o
Auxílio Gás, a Farmácia Popular e outras políticas públicas —, a PEC da
Transição proporcionou o estoque de emendas parlamentares impositivas que o
governo Lula teve para negociar a aprovação do arcabouço fiscal e da reforma
tributária. Foram liberados mais de R$ 11 bilhões do Orçamento somente na
semana passada.
• Blindagem
O
fluxo de recursos que sedimenta as relações do Executivo com o Congresso
chegará, neste ano, a R$ 9,85 bilhões em emendas para políticas públicas
(50,77% dos R$ 19,4 bilhões das emendas de relator que foram consideradas
inconstitucionais pelo STF). A outra metade foi direcionada para emendas
individuais, que passaram de R$ 11,7 bilhões (R$ 19,7 milhões por parlamentar)
para cerca de R$ 21 bilhões. É muito dinheiro que passará às mãos do Congresso.
O valor global das emendas aumentou de 1,2% para 2% da receita corrente líquida
da União. A Câmara ficará com 77,5% do valor global das emendas individuais e o
Senado, com 22,5%. As emendas são impositivas, mas o fluxo de execução, até o
final do ano, depende da caneta de Lula.
O
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, merece um parágrafo à parte.
Contingenciado pelo Congresso, fez do limão uma limonada nas negociações para
aprovação do novo arcabouço fiscal, da reforma tributária e do voto de Minerva
nas decisões do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), cujas
decisões somam R$ 70 bilhões, somente neste ano, em causas milionárias. A
quantidade de processos à espera de julgamento no Carf chega a R$ 1 trilhão.
Por
uma mágica da política, a equipe econômica foi blindada com reformas
indispensáveis para o governo executar suas políticas públicas (arcabouço
fiscal), gerar expectativas positivas de investidores (reforma tributária) e
reforçar o caixa do Tesouro para despesas correntes (voto de Minerva no Carf).
O esperneio de Bolsonaro não é à toa.
O
dólar fechou o semestre com desvalorização de 9,27% frente ao real. O principal
índice da Bolsa de Valores de São Paulo (Ibovespa), a B3, acumula alta de
7,61%, com uma elevação recorde de 9% neste ano. Os preços estão sendo
reajustados em razão da inflação passada, não por causa da expectativa de
elevação futura. Resultado: não há motivo para o presidente do Banco Central
(BC), Roberto Campos Neto, manter a taxa de juros atual. A economia continua
contingenciada por juros de 13,75%. O remédio virou veneno, ainda mais depois
da aprovação da reforma.
Trocando
em miúdos, com o novo ambiente econômico e o isolamento de Bolsonaro, estão
dadas as condições para a consolidação da aliança Lula-Lira, com a entrada do
Centrão no governo.
Votação da reforma tributária mostra que
cargo não traz fidelidade
O
placar de cada partido na votação da proposta de emenda constitucional da
reforma tributária, encerrada na madrugada de sexta-feira, mostra que alguns
daqueles que compõem o governo ainda estão longe de pagar, no Congresso, a
fatura dos cargos que mantêm no primeiro escalão. Os casos mais críticos têm se
verificado na Câmara dos Deputados.
O
União Brasil, por exemplo, conta com três nomes alocados na Esplanada dos
Ministérios, mas entregou apenas 75% dos votos da bancada na aprovação da PEC.
A legenda, que surgiu da fusão do Democratas (antigo PFL) com o PSL — que
elegeu Jair Bolsonaro presidente da República, em 2018 —, segue desunida nas
votações. O próximo teste do partido é no Senado e uma voto contra o governo é
certo — o de Sergio Moro (PR). Os outros dependerão da força de Davi Alcolumbre
(AP), responsável pelos afilhados políticos que emplacou no governo.
Já
o Republicanos, partido do governador Tarcísio de Freitas (SP) e dos senadores
Hamilton Mourão (RS) e Damares Alves (DF) — todos ligados ao ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL) —, entregou 88% dos votos da bancada de 41 deputados pela
aprovação da proposta. Controlado pela Igreja Universal do Reino de Deus, do
bispo Edir Macedo, já foi aliado em outros governos petistas, mas tem sido
resistente aos convites do governo para compor a base.
Esta
situação, porém, pode mudar, como deu a entender o ministro responsável pela
articulação política do governo, Alexandre Padilha, ao anunciar, na
sexta-feira, que o Planalto segue aberto a adesões base. Além disso, Macedo tem
circulado por Brasília a fim de se reaproximar do governo.
Se
o partido do governo, o PT, segunda maior bancada na Câmara, com 68 deputados,
garantiu 96% dos votos a favor da reforma — três deputados estavam
parlamentares ausentes —, o PL de Bolsonaro colheu a maior derrota da votação.
Maior bancada da Casa, com 99 parlamentares, orientou pela rejeição do projeto,
mas não obteve a unanimidade.
Mais
de 25% da legenda descumpriram a orientação da liderança. No primeiro turno da
votação da reforma, foram 20 votos favoráveis — e ainda somou sete abstenções
na sessão. Registrou, proporcionalmente, a maior infidelidade e terminou a
semana mais fraco. Para piorar, na reunião da legenda que recebeu Tarcísio, o
governador paulista foi hostilizado, inclusive por Bolsonaro — que cobrou dele
fidelidade intransigente à causa da oposição e ainda o classificou como
"inexperiente" em política. A agressividade dos radicais seguidores
do ex-presidente prenuncia o afastamento do Republicanos, que já faz acenos ao
governo.
Um
dos sinais disso foi o comentário do presidente do partido, deputado Marcos
Pereira (SP), sobre a recepção do PL a Tarcísio. "Os episódios de hoje
(quinta-feira) não isolam Bolsonaro, porque ele já se isolou e vem se isolando
pelo seu próprio comportamento. Entregou a eleição para Lula por causa do
comportamento dele", criticou.
Hora do Centrão apresentar a fatura para
Lula
O
convite do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Arthur Lira (PP-AL) e líderes
do Centrão para uma comemoração, no Palácio da Alvorada, pelas aprovações da
reforma tributária e do projeto de lei (PL) sobre o Conselho de Administração
de Recursos Fiscais (Carf), representa mais do que um agradecimento. Junto a
Lira, a foto de Lula ao lado de velhos aliados da esquerda e de possíveis novos
companheiros do centro e da direita indicam outra correlação de forças
partidárias na Câmara e no Poder Executivo. A imagem pode ser considerada a
materialização de comentários ouvidos nos bastidores do Palácio do Planalto e
do Congresso de que o Centrão está muito próximo de ocupar espaços mais
generosos no primeiro escalão do governo federal.
A
aprovação do retorno do voto de qualidade no Conselho de Administração de Recursos
Fiscais (Carf), decidida depois da reforma, é outra evidência de que Lira está
disposto a ajudar o governo e entregar os votos necessários à governabilidade.
Juntamente com a articulação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o peso do
presidente da Câmara foi fundamental para que passasse o projeto que desempata,
em favor da União, os julgamentos de contenciosos tributários.
A
partir da noite de quarta-feira, o plenário da Câmara vivia um clima de
tranquilidade e confiança que não se via em sessões anteriores, cujas pautas
decidiam questões de importância para o Palácio do Planalto — nestas, era
perceptível, entre os governistas, a tensão pela incerteza sobre os resultados
da articulação política.
Após
décadas parado na Câmara, o relatório sobre a reforma elaborado pelo deputado
Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) só avançou por causa da vontade do Centrão. Desde o
grupo de trabalho que estudou as mudanças no sistema tributário, comandado pelo
deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), esse acerto vinha sendo construído. Como
disse um parlamentar "centrista", o "pedido de casamento"
do governo Lula ao grupo de Lira finalmente foi feito na tramitação da proposta
de emenda constitucional.
Só
que houve acenos positivos dos dois lados. Na mais evidente até agora, Lula efetivou
a troca no Ministério do Turismo: sai a deputada Daniela Carneiro (RJ) e entra
Celso Sabino (PA). Ambos são do União Brasil, só que ele é próximo de Lira.
Outra
demonstração de que a combinação entre o Palácio do Planalto e Lira chegara a
bom termo foi o discurso do presidente da Câmara antes da votação da reforma,
na noite de quinta-feira. Em um gesto pouco frequente para um comandante da
Casa, ele deixou a mesa diretora dos trabalhos por alguns minutos para, do
parlatório, mandar um duro recado aos deputados "que se prendem ao
passado" e vinham se posicionando contra a PEC. A maioria deles era de
bolsonaristas, com os quais Lira se alinhara até 2022. Ele ainda fez questão de
frisar que o candidato que apoiou nas eleições presidenciais, Jair Bolsonaro,
perdera nas urnas e que as questões eleitorais tinham de ser superadas.
"Não
nos deixemos, também, levar pelo radicalismo político. O povo brasileiro já
está cansado disso. As eleições já ocorreram, os vitoriosos estão no poder —
lembro a vocês que meu candidato perdeu a eleição presidencial. Deixemos as
urnas de lado. Voltemos nossos olhos para o povo brasileiro", exortou Lira
no discurso.
• Arestas
Isso
não quer dizer, porém, que o relacionamento de Lira e o Centrão com Lula e o
governo será um mar de rosas. O presidente teve de resistir muito para manter
Nísia Trindade à frente do Ministério da Saúde. E tem pela frente uma dura
tarefa, que lhe demandará muita capacidade de negociação e convencimento:
manter as pastas do Desenvolvimento Social e do Esporte com os atuais
titulares. Nesse pacote de avanço sobre cargos-chaves do governo federal, o
grupo de Lira quer indicar novos presidentes para a Caixa Econômica Federal,
dos Correios e da Embratur.
No
caso do Desenvolvimento Social, responsável nada menos pela gestão e pelo
pagamento do Bolsa Família, está um aliado de primeira hora de Lula: Wellington
Dias. Apesar da insistência, as chances de o senador e ex-governador do Piauí
ser removido da pasta são consideradas nulas. O Ministério dos Esportes segue o
mesmo modelo — continuará com a ex-jogadora de vôlei Ana Mozer, uma das
principais interlocutoras do presidente em um setor no qual, nas eleições de
2022, Bolsonaro teve amplo apoio. Isso, apesar da amizade entre o presidente e
o deputado Silvio Costa Filho (Republicanos-PE).
Lula
também não tem qualquer disposição para remover Rita Serrano do comando da
Caixa, Marcelo Freixo da Embratur e Fabiano Silva dos Correios. No caso do
banco social, a atual diretoria é praticamente composta de mulheres e o presidente
não quer ser contraditado em seu discurso de campanha caso a substitua por um
homem — e do Centrão. Em relação à empresa de fomento ao turismo, Freixo é
considerado um dos mais fortes quadros da esquerda no Rio de Janeiro — e só
deve deixar a autarquia caso seja ungido pelo PT para a disputa do Palácio da
Cidade, na corrida pela Prefeitura da capital fluminense. E Fabiano Silva é
coordenador-adjunto do Prerrogativas, grupo que reúne advogados que apoiaram
Lula na campanha presidencial.
Os
nomes de eventuais substitutos, porém, se apresentam e tentam aumentar o
próprio cacife. Nessa lista surgiu até mesmo o do líder do PL, Altineu Côrtes
(RJ) — sobretudo depois deputados do partido, que abriga Bolsonaro e seus
seguidores mais fieis, deram votos pela aprovação da reforma tributária. No
primeiro turno de votação da PEC, foram 20 e, no segundo, 18.
Fonte:
Correio Braziliense
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