domingo, 9 de julho de 2023

Cacau orgânico muda a vida de assentados no sul da Bahia

De bandidos aos olhos de quem não entendia a luta pela reforma agrária a exemplo de produção sustentável de cacau. Agricultores do assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga, no sul da Bahia, produzem amêndoas orgânicas cujo valor de mercado ultrapassa duas vezes e meia a média do cacau convencional.

Na década de 1990, a queda dos preços do cacau devido à entrada da África no mercado internacional e o surto de vassoura-de-bruxa, doença causada pelo fungo Moniliophthora perniciosa, geraram uma grave crise na Bahia. A produção do Estado caiu de 400 mil para 100 mil toneladas.

A situação levou muitos produtores e meeiros — agricultores que trabalhavam em terras de outros em troca de uma parte da colheita — a migrar para centros urbanos, deixando para trás cacaueiros infectados e pastagens. No entanto, alguns trabalhadores foram para os acampamentos de lona preta, ligados a movimentos sociais.

“As pessoas nos chamavam de vagabundos e perigosos”, afirma Luciano Ferreira, que se juntou a um desses acampamentos, às margens da BA-652, em 2001.

·         Títulos de terras

O caminho não foi fácil. Passaram-se cerca de 17 anos até as famílias conquistarem os títulos das terras, em 2018. Nesse ínterim, além da batalha jurídica, Luciano e alguns vizinhos travaram uma luta para melhorar a produção de cacau e descobriram um caminho na agroecologia. A virada de chave, no entanto, não foi tão simples.

"Houve um conflito de gerações, mas a gente trabalhou com a pedagogia do exemplo, em áreas experimentais. Precisávamos mostrar que era possível produzir sem veneno [agrotóxicos] e sem queimar a terra"

— Luciano Ferreira, agricultor

Hoje, o estatuto do Dois Riachões proíbe o uso de produtos químicos no assentamento. Das 40 famílias do assentamento, 34 são certificadas como produtoras de orgânicos pela Rede de Agroecologia Povos da Mata, o segundo maior Organismo Participativo da Avaliação da Conformidade Orgânica (Opac) do país, atrás apenas da Ecovida.

·         Produção orgânica

Nesse modelo de certificação, pelo menos três produtores associados à rede e que não fazem parte do assentamento visitam as propriedades a cada seis meses ou um ano para verificar as condições dos cacaueiros. A vantagem é a redução dos custos em relação a auditores tradicionais.

Atualmente, toda a produção de cacau do assentamento ocorre em sistemas agroflorestais, sendo que o modelo cabruca é 70% do total. Nele, os cacaueiros crescem à sombra das árvores nativas da Mata Atlântica, com incidência de luz suficiente para produzir.

Nos sistemas agroflorestais que não são no modelo cabruca, os produtores do assentamento plantam pelo menos cinco culturas de ciclo curto para agregar valor à área enquanto o cacau não está dando lucro.

O piar dos pássaros é sinal de uma produção em consonância com o ambiente. Luciano mostra uma caixa d’água usada para guardar a biocalda — uma mistura de esterco, melaço de cana, micro-organismos e outros produtos — que tem ajudado a garantir a sanidade das plantas sem uso de químicos.

·         Manejo para conter o fungo

De acordo com o agricultor, a maior parte do cacau do assentamento é das variedades Pará e Parazinho, propícias ao desenvolvimento da doença. Porém, o manejo constante das árvores diminui a proliferação do fungo.

Além do manejo diferenciado, os produtores do assentamento buscaram obter um retorno melhor com a amêndoa a partir da construção de uma estrutura de beneficiamento do cacau, que ocorreu em 2018. Luciano e outros três agricultores tomaram um empréstimo com prazo de três anos para construir uma casa de fermentação, uma estufa solar e um armazém de cacau.

“Era dinheiro para caramba naquele momento, e topamos fazer o que ninguém queria”, conta, com um sorriso largo no rosto, reforçando que todos os assentados do Dois Riachões utilizam a estrutura. Um ano depois, implantaram uma pequena fábrica de chocolate artesanal.

O crédito para a estrutura de beneficiamento veio da organização não-governamental (ONG) Tabôa, braço de fortalecimento de comunidades do Instituto Arapyaú, criado por Guilherme Leal, sócio-fundador da Natura. Nas próximas semanas, os assentados vão solicitar um novo financiamento para transformar a fábrica de chocolate artesanal em um negócio com mais escala.

“Fizemos ovos de Páscoa e vendemos para pessoas em Salvador e também no Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. A demanda é muito grande, precisamos de recursos para comprar todos os insumos. É investimento que em menos de um ano deve se pagar”, estima.

·         Chocolate Dengo

O trabalho dos produtores do Dois Riachões só teria sentido se houvesse alguém que o valorizasse. Por isso, ao mesmo tempo, Guilherme Leal criou a empresa de chocolates Dengo, que paga um adicional pelas amêndoas com base na qualidade.

“Nós nos propomos a ser um negócio com impacto social, com meta de dobrar a renda de 3 mil agricultores que preservam a floresta”, afirma Roberto Teles, co-líder do hub de inovação que fica dentro da Fazenda Conduru, em Ilhéus. Na propriedade, a Dengo estuda o manejo do cacau e recebe turistas que querem conhecer os processos por trás do chocolate de qualidade.

Enquanto uma arroba (15 quilos) de cacau commodity é vendida a R$ 210, a Dengo paga R$ 450 a R$ 525 pela arroba da amêndoa produzida no Dois Riachões.

 

Fonte:Globo rural

 

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