quinta-feira, 6 de julho de 2023

“As elites liberais devem refletir sobre sua contribuição para o atual descontentamento democrático”, alerta filósofo

Em 1996, Michael Sandel publicou Descontentamento democrático. Poucos anos após a queda do Muro de Berlim e o posterior colapso da União Soviética, quando ainda ressoava O fim da história, de Francis Fukuyama, e a democracia liberal parecia viver seus anos de glória, poucos realmente prestaram atenção nas advertências do filósofo político estadunidense e professor da Harvard University.

Hoje, no entanto, 27 anos depois, praticamente ninguém duvida que as democracias liberais estejam atravessando uma crise e que há um crescente descontentamento. Por isso, Sandel decidiu desempoeirar suas anotações e atualizar sua já clássica obra, cujo título ressoa de forma diferente hoje.

“Há 30 anos, estávamos em meados dos anos 1990, a Guerra Fria havia acabado e parecia que a paz, a prosperidade e o crescimento econômico reinavam”, lembra, hoje, o autor estadunidense, que se tornou uma espécie de rock star da filosofia, conforme foi descrito em um artigo recente no jornal espanhol El País, ao analisar as razões pelas quais decidiu republicar o livro.

“No entanto, sob a superfície, pareceu-me que havia duas fontes de crescente descontentamento, uma era o sentimento de muitas pessoas de que não eram ouvidas e, segundo, a sensação de que o tecido social estava se desfiando”, diz nesta entrevista ao La Tercera, de sua casa em Boston.

>>>> Eis a entrevista.

·         E essas são as mesmas razões que explicam a situação atual?

O descontentamento democrático se tornou mais agudo e mais evidente. A perda do autogoverno, aquela sensação de não ter nada a dizer na tomada de decisões, aprofundou-se. As pessoas estão frustradas com a política e duvidam de suas possibilidades de participar na tomada de decisões. Por isso, acredito que as duas tendências que escrevi, há três décadas, simplesmente, agravaram-se.

·         Por que os governos não deram atenção a esses problemas?

Os governos não escutaram esses problemas, nem os responderam. Ao contrário, as elites no poder, nas últimas três décadas, abraçaram a versão da globalização neoliberal, guiada pelas finanças e o mercado, o que fez aprofundar as desigualdades. Essa versão da globalização, é verdade, produziu crescimento em muitos países, mas os ganhos desse crescimento não foram distribuídos corretamente, chegaram principalmente aos 10 ou 20% do topo da população, enquanto os trabalhadores comuns e as classes médias perderam terreno.

Não sei os números no Chile, mas nos Estados Unidos, por quase cinco décadas, a renda dos trabalhadores caiu ou não avançou em termos reais. A renda real ficou estagnada por quase cinco décadas, e isso porque houve enormes ganhos obtidos pelas pessoas no topo da população.

Isso gerou um ressentimento e não só pela desigualdade econômica, mas também pela crescente desigualdade em termos de estima social e reconhecimento. Ao mesmo tempo, as elites assumiram uma orientação tecnocrática para a política, apresentando a nova economia e os novos arranjos econômicos não como um assunto debatível, mas como dados da natureza. Não debatemos esses temas, apenas nos adaptamos.

·         Você fala em estima e reconhecimento, mas por que a democracia deveria favorecer a autoestima das pessoas? Isso é uma responsabilidade da democracia ou é algo que cada um deve buscar?

O ponto é interessante, porque se pode pensar que a autoestima é um assunto que depende da atitude de cada indivíduo. Mas eu faria uma distinção entre autoestima, que é o termo que você usou, e estima social ou reconhecimento social. Quer falemos de autoestima ou de estima social, não é possível se sentir orgulhoso e respeitado, a menos que a vida social ofereça uma base para esse respeito e essa estima.

Deixe-me dar um exemplo sobre como a autoestima está ligada ao reconhecimento e à estima social. Uma das coisas que mudou, nas últimas décadas, é o crescente papel das finanças na economia, em termos de porcentagem do PIB e porcentagem dos lucros corporativos. Contudo, nas últimas quatro décadas, a maior parte do crescimento das finanças não foi produtivo, mas, sim, especulativo, especulando sobre o valor futuro de ativos já existentes, alguns sinteticamente criados para fins de especulação.

Como isso se relaciona com a pergunta sobre o reconhecimento e a estima social? Porque uma enorme quantidade de dinheiro e estima social foi direcionada aos investidores de Wall Street, aos corretores da Bolsa ou gerentes de bancos de investimento. Foram produzidos programas de TV, filmes. Na cultura popular, suas atividades foram valorizadas, ao passo que o trabalho, no sentido tradicional: ir trabalhar todos os dias, seja nos serviços, seja em uma fábrica ou na agricultura, esse respeito ao trabalho no sentido tradicional erodiu.

Celebramos tanto os ganhos das pessoas na indústria financeira que isso teve um efeito desmoralizador na dignidade do trabalho e no respeito por aqueles que não têm um diploma profissional ou grandes credenciais e ações, mas que, não obstante, dão grandes contribuições, dia a dia, à economia e ao bem comum.

·         Um economista poderia dizer que o salário recebido por esses trabalhadores corresponde ao valor econômico desse trabalho, de acordo com o consenso econômico existente. Como se muda isso?

Você usou uma frase interessante nessa pergunta: “o consenso da economia diz que essa é a forma como funciona”, e quando você fala do consenso da economia está correto, mas o que o consenso da economia realmente significa é o veredicto do mercado. E tem razão, assumimos muito facilmente que o dinheiro que as pessoas ganham é a verdadeira medida de sua contribuição para a economia e o bem comum.

Contudo, precisamos questionar essa suposição. Se isso é verdade, se o mercado de trabalho e a remuneração são a verdadeira medida de valor, então teríamos de concluir que o valor social de um gestor de fundos de investimentos é duas mil vezes maior do que o de um professor, uma enfermeira ou um médico. Mesmo os economistas do laissez-faire mais comprometidos teriam muita dificuldade em defender essa ideia.

De fato, acreditamos que, se estamos falando de valor social, os gestores de fundos de investimentos são mais valiosos? Durante a pandemia, não me lembro de ninguém dizendo que os gestores de fundos de investimentos eram trabalhadores essenciais. Devemos recuperar do mercado o juízo moral sobre o que realmente é uma contribuição valiosa para a economia e o bem comum.

·         Nesse debate sobre o descontentamento democrático, surge também o tema dos populismos e do avanço dos setores mais duros de direita. Hoje, vemos que são esses setores que melhor se conectam com a classe trabalhadora, um setor que historicamente estava associado à esquerda. Por que considera que, hoje, esse setor se conecta tão bem com as classes trabalhadoras?

É verdade, historicamente, a base de apoio do progressismo era a classe trabalhadora. Isto era verdade nos Estados Unidos, com o New Deal de Franklin Roosevelt. A classe trabalhadora votava nos Democratas e o Partido Republicano parecia ser o partido dos ricos, dos privilegiados e das corporações.

Em fins dos anos 1990 e inícios dos anos 2000, esse padrão começou a ser revertido, não só nos Estados Unidos, mas também na Europa, onde os partidos de centro-esquerda se tornaram os partidos das classes profissionais e bem formadas e o Partido Republicano, especialmente com Trump, tornou-se um partido que atraiu a classe trabalhadora.

Vimos algo semelhante na Grã-Bretanha com o voto no Brexit, que majoritariamente foi um voto daqueles sem um diploma universitário. Isso também aconteceu na França e algo semelhante aconteceu na Alemanha. Penso que há uma explicação para isso, ao menos na Europa e nos Estados Unidos.

O apoio daqueles sem uma formação universitária aos partidos populistas de direita se deve ao fato de que esses movimentos apelam à política do ressentimento e a humilhação. O ressentimento e a humilhação de trabalhadores que sentiram que não foram respeitados por elitistas formados.

Isso também tem a ver com o fato de que a resposta à desigualdade dada pelos partidos de centro-esquerda não foi enfrentar os problemas estruturais dessa desigualdade, mas oferecer aos trabalhadores um conselho valioso. Os políticos e partidos lhes diziam isto: se deseja competir e ganhar na economia globalizada, frequente a universidade; o que você ganha depende do que aprende; se tentar, você pode conseguir.

Como uma resposta à desigualdade, ofereceram-lhes a promessa de uma rápida mobilidade social por meio do ensino superior. Essas elites não viram o insulto implícito nesse conselho, e o insulto era este: se você não frequenta a universidade e acaba lutando para sobreviver na nova economia, é o culpado pelo seu fracasso.

Isso se soma ao insulto e à ferida provenientes da estagnação dos salários e da desigualdade. Penso que essa é uma razão do porquê muitas pessoas sem diploma universitário sentem raiva e ressentimento em relação aos partidos de centro-esquerda e às elites.

·         Avalia que as políticas identitárias também contribuíram para distanciar os setores populares dos partidos de esquerda?

É um fator adicional, especialmente porque distraiu as elites tradicionais e as classes profissionais de abordar as desigualdades, as desigualdades econômicas. Muitos democratas que foram golpeados pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, porque nunca pensaram que isso fosse possível, davam explicações muito simplistas. Segundo eles, isso demonstrava que as pessoas respondem quando se apela ao racismo, à misoginia, ao sexismo. Muitos dos eleitores de Trump eram, como disse Hillary Clinton, um grupo de deploráveis.

Há algo de verdade nisso. Trump apelou ao racismo e suas políticas anti-imigrantes tinham um componente xenófobo. Não estou menosprezando isso, mas para o Partido Democrata, para as elites liberais, ao dizer que se deve só ao racismo e à xenofobia, estão evitando sua própria reflexão autocrítica e, em particular, seu compromisso com a desregulamentação financeira, que fez parte das políticas neoliberais. Elas contribuíram para a desigualdade que levou a gerar a raiva a que Trump e outros populistas apelam.

É muito fácil como explicação e faz as elites liberais serem autocomplacentes e não refletirem de maneira crítica se suas próprias políticas têm algo a ver com a condição em que estamos agora. Uma das razões para escrever essa nova edição de Descontentamento democrático é motivar essas elites liberais a refletir criticamente sobre sua contribuição para o atual descontentamento.

Como observa a democracia nos Estados Unidos e o que poderá acontecer nas eleições do próximo ano? Você é pessimista ou otimista?

Infelizmente, acredito que o futuro da democracia nos Estados Unidos está sob suspeita, não diria que está em risco, mas, sim, diria que está em questão pelas seguintes razões. Se Trump, apesar das acusações contra ele, apesar de ter promovido um ataque ao Capitólio, em 06-01-2021, apesar de tudo isso, vencer a próxima eleição, penso que a democracia estará em risco, porque demonstrou que não tem nenhum respeito aos limites constitucionais e normas democráticas.

Hoje, é muito difícil prever inclusive se ele irá obter a indicação republicana ou se será eleito, se ganhar essa indicação, mas eu diria que há dúvidas sobre o futuro da democracia dos Estados Unidos.

 

Ø  Direita e esquerda precisam se reorganizar para o enfrentamento. Por Vera Magalhães

 

O rápido isolamento de Jair Bolsonaro, tornado inelegível seis meses depois de deixar o poder, é nítido para quem conversa com seus principais aliados e não se atém a olhar seus posts condoídos de solidariedade. Entre os que posam de inconformados há desde antigos colaboradores que, no processo, trataram de se afastar do ex-chefe dizendo não ter tido nada a ver com a fatídica reunião com embaixadores em julho do ano passado, até candidatos a herdeiros de seu espólio eleitoral que já esfregam as mãos.

Mas ninguém pode correr o risco de denotar algum alívio ou ansiedade em público, porque o moedor de carne bolsonarista que já triturou tantos antigos aliados ainda é forte nos submundos do Telegram e nas redes sociais.

Na esquerda, também, a análise do efeito da inelegibilidade de Bolsonaro precisa ir além do óbvio. Memes e comemorações pululam, mas, no coração do poder federal, pesquisas que mostram a ascensão rápida de Tarcísio de Freitas como liderança autônoma, inclusive superando o criador em várias regiões do estado de São Paulo e em estados do Sul e Sudeste, isso é motivo de grande preocupação.

Tanto que a próxima prioridade do governo Lula serão as obras de infraestrutura. A ideia é desmontar a aura de “asfaltador” do ex-ministro e atual governador de São Paulo, com dados que mostrariam que, na verdade, ele entregou pouco enquanto esteve no posto.

Isso já começou a ser ensaiado em entrevistas, como a que o ministro Alexandre Padilha concedeu a mim e a Carlos Andreazza nesta semana.

Outra linha será a de que Tarcísio mal conhece São Paulo e nem começou efetivamente a governar para pensar em ser candidato a presidente. A razão para isso é um temor quanto à decisão rápida do TSE: PT e partidos aliados acham que o sucessor do capitão terá muito tempo para se cacifar junto a uma parcela do eleitorado órfão.

A ordem, então, é avançar em cidadelas não extremistas,  evangélicos e agronegócio, como já escrevi aqui, eleitores de baixa renda que começarão cada vez mais a se beneficiar de programas sociais turbinados, endividados que serão socorridos por programas de crédito e empresários conquistados por agendas como a briga pela queda dos juros e a reforma tributária.

Na direita, haverá uma briga pelo passe de Tarcísio entre seu partido, o Republicanos, e o PL. E deverá se acentuar a pressão da ala bolsonarista mais radical, com os filhos do agora inelegível ex-presidente à frente, para dar as cartas em seu governo, algo que, até aqui, o governador paulista vem evitando.

 

Fonte: Entrevista com Michael Sandel para Juan Paulo Iglesias, em La Tercera -  tradução do Cepat, para IHU

 

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