A Saúde e a
“re-redemocratização” do Brasil
A
17ª Conferência Nacional de Saúde é o grande fato político da Saúde no mês de
julho, e a reunião dos milhares de delegados nomeados nas
etapas municipais e estaduais é um rico retrato de toda a diversidade de
demandas que pairam sobre o governo Lula. Uma miríade de reivindicações ficará
sob a guarda do ministério da Saúde, que deverá traduzi-las no Plano
Plurianual, a ser entregue no fim de agosto, a fim de definir parâmetros
orçamentários para as políticas públicas essenciais ao país nos próximos quatro
anos. Haverá espaço para o seu florescimento, no período pós-governo Bolsonaro
de destruição do Estado, que além de tudo fortaleceu o fisiologismo na
política? Haverá espaço, com tantos ataques vindos da saúde de mercado?
Nesse
sentido, o Centro Internacional de Convenções do Brasil retrata um clima de
euforia, percebido dentro do próprio Estado brasileiro, que coloca peso sobre o
evento, repleto de autoridades que vão além do campo da saúde. Enquanto isso, o
ministério da Saúde segue a apresentar iniciativas que concretizam o fortalecimento
do SUS, como foi o caso das duas portarias assinadas nesta segunda pela
ministra Nísia Trindade, que recuperam orçamentos destinados à saúde mental nos
CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e Serviços Residenciais Terapêuticos
(SRT). Somados, receberão pouco mais de R$ 400 milhões para operarem seus
serviços até o fim de 2023.
Como
resumiu a ministra em coletiva na manhã desta segunda, 3/7, “vemos aqui o
espírito da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que colocou o país no caminho da
democracia e fez do SUS uma de suas contribuições”. A referência ao encontro
realizado em 1986 não é vã. Ao falar em retomada, Nísia mencionou a “ruptura
democrática de 2016”, com todos os reflexos visíveis no desmonte do Estado
brasileiro, contexto que foi amplamente dramatizado com a eleição de Bolsonaro
e o advento da pandemia.
Conhecedora
dos caminhos e atores que levaram à construção do SUS, Nísia saudou o avanço da
democracia no país, o que se reflete na própria Conferência, muito mais plural
do que em suas edições anteriores. “No início, só participava a alta cúpula do
ministério. Essa ideia de uma participação social ativa, como é hoje, muito
maior e mais diversa, vem do processo de redemocratização do Brasil em 88.
Realmente é retomar esse espírito, que é o espírito do SUS e da democracia, com
muita participação social”.
“Como
ensinou Sergio Arouca, saúde não é só o contexto de ausência de doença. É todo
o ambiente no qual se está inserido. É o bem estar completo da pessoa. Para dar
um exemplo, como vamos tratar da violência nas escolas, como se vê agora, sem
entrar no tema da saúde mental?”, indagou Fernando Pigatto, presidente do
Conselho Nacional de Saúde, também presente na coletiva, que ainda reuniu
Helvécio Magalhães (secretário de atenção especializada) e Sonia Barros
(diretora de saúde mental do ministério).
Em
sua visão, o traumático processo político vivido no Brasil dos últimos anos
aprofundou tal visão até naqueles que já estavam inseridos na luta pelo direito
à saúde.
“Mesmo
o Conselho Nacional de Saúde não é o mesmo depois de 2016. Ampliamos a
compreensão do nosso papel e da necessidade de radicalizar a democracia.
Políticas econômicas, de acesso ao trabalho, entre outras, produzem saúde. Como
vamos chegar a investimentos públicos de 6% do PIB ainda neste governo sem
falar de reforma tributária? Como falar de direito à saúde sem resolver a
questão da fome?”, completou Pigatto.
Ao
assinar as portarias que recuperam orçamentos da saúde mental, Nísia seguiu a
linha de Pigatto e evidenciou que o direito à saúde só poderá ser contemplado
com a construção de uma sociedade de bem estar social.
“A pauta de saúde mental é hoje discutida em
todo o mundo. Não está referida só ao efeito da pandemia. Tem muito a ver com a
solidão com que as pessoas vivem hoje, com o individualismo crescente que se
manifesta na dificuldade de ter relações sociais, nisso que hoje se chama de
efeito tóxico da comunicação só pelas redes sociais”, explicou a ministra.
“Eu
sou gestor ambiental”, completou Pigatto, “estou no Conselho Nacional de Saúde
como representante da Confederação Nacional de Associação dos Moradores, que
reúne moradores de bairros, comunidades e vilas do país. Porque o que acontece
nesses lugares, um problema de saneamento ou na escola local, vai afetar a
saúde de pessoas que moram ali. A discussão de saúde só pode ser integrada a
outros temas”
O
direito à saúde se tornou um eixo mobilizador da política brasileira. O
encontro em Brasília não é uma morosa série de debates técnicos sobre a
prestação de serviços a um cidadão-cliente. A 17ª Conferência Nacional de Saúde
consagra o tema como parte de todo um amplo debate sobre os dilemas
civilizatórios do Brasil e do mundo contemporâneos.
Ø
“O
Brasil voltou”, diz a 17ª Conferência de Saúde. Por Gabriela Leite
Sob
os cantos de apoio de cerca de 3 mil pessoas, Nísia Trindade foi recebida com
calor na cerimônia de abertura da 17ª Conferência Nacional de Saúde, na noite
de domingo (2/7), em Brasília. “Olê, olê, olê, olá, Nísia, Nísia”, entoaram
ainda os presentes, adaptando o jingle clássico ao seu nome. A ministra da
Saúde pareceu entender o que significava o carinho: estava de frente para os
milhares de delegados que representam os milhões de usuários, trabalhadores e
gestores da saúde, em um evento que reúne as principais demandas da sociedade
para o Sistema Único de Saúde. “Me sinto apenas como a representante dessa
força coletiva do SUS, de defesa da democracia”, declarou ela, que também é
presidente da Conferência.
Se
não bastasse a força dos movimentos sociais e de luta pela saúde, sempre
ignorada nos debates da imprensa comercial quando trata dos interesses de políticos fisiológicos
e do mercado em
torno da pasta, outro elemento confirmou a importância de Nísia e do evento. Ao
lado dela, sentaram-se figuras muito simbólicas: os ministros Marina Silva, do
Meio Ambiente e Mudança do Clima; Sônia Guajajara, dos Povos Indígenas; Luiz
Marinho, do Trabalho e Emprego; e Cida Gonçalves, da Mulher. Jarbas Barbosa,
diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). As deputadas Jandira
Feghali (PCdoB) e Erika Kokay (PT) e o senador e ex-ministro Humberto Costa
(PT), além de Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS),
que organiza a 17ª Conferência.
As
saudações de todos em apoio a Nísia refletiam não apenas a importância de sua
figura – inclusive como presidente da Fiocruz durante o período da pandemia –
mas o reconhecimento de que ela encarna o projeto original do SUS e as demandas
de hoje de seus usuários e trabalhadores. Celebrá-la significava reconhecer o
trabalho também dos milhares de delegados presentes, eleitos durante as
Conferências Municipais, as Estaduais e as Livres, que aconteceram em todo o
Brasil no primeiro semestre de 2023. Ao final do seu trabalho, pelos cinco dias
de conferência, será fechado um documento com as principais propostas para o
Plano Plurianual (PPA) de 2024 a 2027, principal instrumento de planejamento
orçamentário de médio prazo do governo federal, e para o Plano Nacional de
Saúde (PNS), balizador para as políticas e programas do ministério da
Saúde.
“Fazer
a defesa do SUS é defender essa organização. Nós é quem sabemos decidir,
deliberar e sustentar o maior sistema universal de saúde do mundo”, conclamou Jandira Feghali aos
presentes. Ela afirmou emocionar-se com esta, que é a primeira Conferência após
a pandemia de covid, e prestou uma homenagem a todos os profissionais de saúde,
que estiveram na linha de frente em momentos tão tenebrosos. Jandira ainda fez
uma forte defesa, apoiada por sua colega de Congresso, Erika Kokay, do Piso
Nacional da Enfermagem, sancionado por Lula mas que corre o risco de ser desmontado
pelo STF. “A Conferência deveria tirar uma carta especial em homenagem à luta
dessa categoria de profissionais brasileiros”, sugeriu.
Jarbas
Barbosa, da Opas, também mostrou preocupação com o que
presenciou durante a pandemia. “O que nós vivemos foi a falta de
solidariedade”, denunciou, “quando países ricos compravam vacinas para imunizar
três ou quatro vezes o tamanho de sua população, enquanto em países da América
Latina houve falta.” Jarbas falou a favor de uma parceria entre países da
região para a produção de vacinas, equipamentos e insumos, para não depender
mais tão fortemente da importação. Sua fala foi ecoada no discurso de Nísia, que reforçou a
defesa do Complexo Industrial-Econômico da Saúde, para reduzir a dependência
brasileira e incentivar a tecnologia no país.
Por
falar em independência, a fala de Nísia trazia o frescor das celebrações em
ocasião do dia 2 de julho em Salvador, de onde a ministra acabava de chegar. A
data, coincidente com o bicentenário da Independência do Brasil na Bahia,
serviu também de reflexão para a socióloga. Ela entoou a parte do hino do
estado em que se canta “Com tiranos não combinam brasileiros, brasileiros
corações”, e celebrou: “o amanhã já chegou”. Era referência à canção de Chico
Buarque que inspirou o tema da 17ª Conferência, Amanhã vai ser outro
dia. “Temos que fazer a democracia vitoriosa a cada dia”, convocou.
Na
fala da ministra, também expressou-se com força a preocupação com a
desigualdade: “Não há saúde quando há fome, quando não há acesso à educação, à
cultura, quando o meio ambiente é ameaçado, quando mulheres, crianças e idosos
sofrem violência”. Ela também destacou alguns dos desafios agravados com a
pandemia, como o aumento da fila de cirurgias do SUS e a disparada da
mortalidade materna. “Nossa sociedade não pode mais conviver com problemas
históricos como a violência de gênero, o genocídio dos povos indígenas e a
morte dos jovens negros nas periferias”.
O
reconhecimento, por Nísia, da necessidade de pensar os impactos do meio
ambiente na saúde teve um reforço de duas de suas colegas. Marina Silva,
em uma fala emocionante, celebrou o fato
de o Brasil ter uma mulher comandando a Saúde depois de 70 anos de ministério.
Ela lembrou que as mudanças climáticas farão com que as doenças se alastrem,
além de aumentar os casos de enchentes, alagamentos e soterramentos, pondo a
vida das pessoas em insegurança. Mas anunciou que as mudanças iniciadas com o
governo Lula já começam a surtir efeito: “Nós já conseguimos, nos primeiros
seis meses, reduzir o desmatamento em 31%”.
Ao
fim do discurso de Marina, ouviu-se um rufar de maracás. Eram os representantes
de povos indígenas brasileiros, anunciando a fala de Sônia Guajajara. O palco encheu-se
de cocares, como o da própria ministra, e por alguns instantes os presentes
ouviram em silêncio seu canto. Guajajara apontou o caráter transversal do
ministério de Lula, em especial quando agiu para conter a crise no território
Yanomami. Foi Nísia quem assinou o decreto declarando crise sanitária na Terra
Indígena, lembrou. “Conjuntamente [entre os oito ministérios envolvidos]
decidimos retirar todos os invasores do território Yanomami, e devolvê-lo a seu
povo – junto de sua dignidade.”
Os
indígenas não eram os únicos a colorir com diversidade aquele auditório.
Durante o dia todo, ouviram-se as vozes de mulheres e homens negros, pessoas
com deficiência, travestis e transexuais, mães de autistas, ativistas pelo uso
da maconha medicinal, educadores, enfermeiras e todos que compõem a vastidão de
usuários e trabalhadores do SUS. “Foi a luta social que nos permitiu construir
a Constituição de 1988”, lembrou Fernando Pigatto, “e também a lei
8080”, que definiu que a Saúde é direito fundamental e dever do Estado, dando
as bases para a construção do SUS. Pigatto recordou os tempos difíceis da 16ª
Conferência, no primeiro ano do governo Bolsonaro. Naquele momento, segundo
ele, “nós fizemos uma pergunta: qual é nosso papel social no Brasil?” Agora,
conta, a resposta veio: “Nosso papel foi de sermos agentes reais de formação e
resistência”.
Como
ato final da cerimônia, Pigatto assinou uma resolução que criou os Conselhos
Locais de Saúde – para cada uma das mais de 42 mil Unidades Básicas de Saúde
existentes no país. Mais um passo na construção coletiva do SUS.
Até
quarta-feira, os 4.048 delegados convocados a Brasília debaterão as diretrizes
que o sistema precisa assumir, nos próximos quatro anos. Está agendado, além da
programação interna, um ato público em defesa da Saúde na manhã de terça-feira,
4/7, a partir das 8h no Museu da República. Na quarta-feira, no encerramento da
Conferência, Lula deverá estar presente para fechar esse grande ciclo de
participação social, ponto chave para que seu governo realize as mudanças de
que o Brasil precisa.
Fonte:
Por Gabriel Brito, em Outra Saúde
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