Nos
anos 50, Estadão denunciava grilagem e desmatamento no Pontal do Paranapanema
O Pontal do Paranapanema, em São Paulo, é uma terra
em disputa. Símbolo da grilagem e da luta pela reforma agrária, a região já
esteve na mira do jornal O Estado de S. Paulo, o Estadão, por causa das
invasões e desmatamento que sofreu no século passado. Hoje a área é alvo da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST). Integrantes da CPI visitaram no dia 29 a região e tentaram humilhar camponesas.
A cena política atual ignora a origem pública da
região e sua devastação pelo setor privado: o Pontal inspirou um projeto do
ex-governador de São Paulo, João Dória (PSDB), encampado pelo atual governador
Tarcísio de Freitas (Republicanos), que pretende vender as terras públicas, a
toque de caixa, com até 90% de
desconto.
Fundado em 1875, o Estadão denunciou, em pelo menos
102 reportagens e artigos da década de 50, a conivência dos poderes Executivo e
Legislativo com os desmatamentos e as invasões da área que compreende 32
municípios do estado. A pesquisa do De Olho nos Ruralistas foi feita no acervo
online do próprio veículo. Na época, o Estadão — que hoje fala em sagrado
direito à propriedade privada — defendeu a criação de uma reserva de matas no
Pontal e a expulsão de grileiros.
‘CLAREIRAS
AMPLAS ABREM-SE COMO FERIDAS NA VEGETAÇÃO’, DIZIA O JORNAL
Em reportagem de 28 de junho de 1955, o Estadão
pontuou a transformação de áreas verdes em campos de pastagem, a falta de
espaço para que árvores se desenvolvessem, além dos efeitos nos flora e na
fauna. “Não são ouvidos pios, não são percebidos voos”, escrevia o jornal, em
editorial.
— Em certos trechos nota-se a ação devastadora do
homem. Áreas marginais surgem com suas matas completamente destruídas.
Clareiras amplas, de forma mais ou menos circular, abrem-se como feridas no
verde compacto da vegetação […]. Até muito longe percebe-se o cinzento triste
das queimadas, de onde sobressaem tocos transformados em carvão e algumas
árvores maiores, já sem vida, que erguem para o céu os troncos negros e os
galhos nus, como se desejassem lançar depois de mortas o derradeiro apelo de
uma natureza condenada”.
Essas invasões, há mais de 70 anos, eram
consideradas totalmente ilegais. Em 1942, no governo Fernando Costa, a
Procuradoria do Patrimônio Imobiliário do Estado identificou 247 hectares da
região invadidos e exigiu a expropriação dos posseiros que ali estavam. Porém,
segundo o Estadão, nada foi feito, e o Pontal continuou a ser invadido e
derrubado.
O jornal explicou que o Pontal foi “saqueado por
Ademar (sic), por seus parentes, amigos e correligionários, que puseram, nos
postos administrativos de onde deveria partir a repressão, alguns testas de
ferro do pessepismo”. Trata-se de Adhemar de Barros (1901 – 1969), governador
entre 1947 e 1951, e 1963 e 1966, pelo Partido Social Progressista (PSP) e
outras siglas. O PSP era uma união entre partidos, entre eles o Partido Agrário
Nacional.
“Aquelas terras, por devolutas, pertencem ao Estado,
cabendo, ao próprio Estado resguardá-las dos delitos que lá, em detrimento do
patrimônio e da incolumidade públicos, têm lugar”, dizia a nota de 23 de
outubro.
Integrantes da CPI do MST estiveram no Pontal da
Paranapanema acusando famílias da Frente Nacional de Lutas de ocuparem fazendas
privadas: “Fazenda
onde Salles humilhou camponesas está em penhora e tem histórico de desmatamento“.
Somente em agosto de 1955 o jornal publicou cinco
artigos que relatavam os problemas sofridos nas reservas florestais da Alta
Sorocabana e quais seriam as medidas necessárias para que estas fossem
resguardadas. Segue trecho de um dos textos:
— Incendeiam-se matas, cortam-se florestas, […]
entretanto, nada se faz. O Estado, através de seus órgãos competentes, pode
exercitar a sua autoridade de proprietário das famosas glebas, e, numa ação
conjunta, ao mesmo tempo preventiva e repressiva, manter as magníficas reservas
que até agora não soubemos conservar.
HÁ
70 ANOS, LOBBY DA GRILAGEM DIMINUÍA A EXTENSÃO DAS TERRAS DEVOLUTAS
Mesmo enquanto o assunto estava em discussão na
Assembleia Legislativa, os invasores, de acordo com o Estadão, “manobravam no
sentido de impedir a aprovação de uma lei de terras, articulavam-se com
funcionários e políticos, visando com isso conseguir títulos de propriedade
para legitimação de glebas que haviam usurpado”.
Uma das tentativas veio por meio do Projeto
Camarinha, do deputado Leônidas Camarinha, que visava manter 88 mil hectares
como terras devolutas. No entanto, desde a década anterior, 159 mil hectares já
eram considerados terras públicas. O parlamentar argumentava que a área
restante não tinha mais florestas e que o solo estava sob posse de fazendeiros.
O pleito foi atendido em 17 de janeiro de 1956,
quando o governador Jânio Quadros (1917 – 1992) assinou três decretos de
desapropriação da área. Um dos documentos tornou terra pública apenas os 88 mil
hectares já defendidos na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
(Alesp). Os demais decretos reiteraram que os demais hectares eram terras devolutas,
mas autorizaram a desapropriação.
Ø Fazenda onde Salles
humilhou camponesas está em penhora e tem histórico de desmatamento
Na última segunda-feira (29), os moradores do
acampamento Nelson Mandela, no município de Rosana (SP), foram surpreendidos
pela chegada de uma comitiva de deputados federais, membros da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). Liderado pelo relator Ricardo Salles (PL-SP), o grupo viajou à
região do Pontal do Paranapanema para realizar diligências em ocupações da
Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL), um dos alvos do projeto de
criminalização pretendida pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).
O acampamento visitado por Salles foi instalado
sobre a Fazenda Santa Mônica, que é alvo de disputas judiciais, está em penhora
e tem um histórico de desmatamento sobre área de reserva. O ex-ministro do Meio
Ambiente realizou a diligência acompanhado da dita proprietária da fazenda, a
professora Maria Nancy Giuliangeli, de Sertanópolis (PR).
Um vídeo compartilhado nas redes sociais mostra o
momento em que os dois intimidam três camponesas ligadas à FNL. As três
mulheres estão trabalhando — aparentemente debulhando feijões — quando Maria e
Salles se aproximam. O parlamentar as apresenta à fazendeira. “Vocês queriam
saber quem era a proprietária, tá aqui”, disse Salles. “A terra, como a gente
comentou, tem dono”.
As camponesas afirmam nunca tê-la visto, apenas o
ex-marido dela, Valdemar Dorigon, e que tudo estava abandonado quando chegaram.
Maria, então, nega a informação e diz que não pôde mais entrar no local desde
2020, quando a área foi ocupada. Por fim, a fazendeira ameaça: “Tem dono aqui,
tá. Vai juntando a malinha que aqui vocês não vão ficar”.
Composta por 32 municípios, a região do Pontal do
Paranapanema foi alvo de intensos conflitos fundiários, tornando-se um dos
principais símbolos da reforma agrária no país. Segundo o MST, há hoje 117
assentamentos nesta zona rural, com 6.627 famílias, divididas em 147.857 hectares.
No último ano, o governador do estado de São Paulo,
Rodrigo Garcia (PSDB), sancionou um projeto de lei do ex-governador João Doria para privatizar terras públicas estaduais no Pontal por meio da
imposição compulsória da Titulação de Domínio (TD). O apoio a Doria é constante
no perfil de Giuliangeli no Facebook, também marcado por diversas críticas ao MST.
IMÓVEL
OCUPADO PELA FNL É ALVO DE BRIGA JUDICIAL
De Olho nos Ruralistas analisou os registros do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a matrícula
imobiliária da propriedade para conferir se a afirmação de Maria Nancy
Giuliangeli, de que seria a proprietária da Fazenda Santa Mônica, estava
correta. Em todos os documentos fundiários, o imóvel está registrado em nome de
Pedro Julião Freire Lemos e suas filhas Juliana, Luciana e Fernanda Grandi
Lemos.
Os 495 hectares da fazenda foram vendidos para Maria
Nancy e seu ex-marido Valdemar Dorigon em 2004 por R$ 2,4 milhões, mas a
transferência definitiva, que deveria ter sido realizada dois anos depois,
jamais foi concluída. Segundo o processo judicial, que tramita no Tribunal de
Justiça do Paraná (TJPR), ficou pendente o pagamento de R$ 469 mil. De acordo com um depoimento
dela à Polícia Civil do Paraná, em 2016, o motivo para não ter quitado a compra
foi “devido à estiagem”.
Pedro Julião entrou na Justiça e ganhou uma liminar
para reintegração de posse, voltando à fazenda onde, ainda de acordo com o
depoimento, estavam todos os pertences dela. Em 2014, foi a vez de Valdemar
ganhar uma ação de reintegração, obrigando Pedro a se retirar novamente. Foi
durante esse período de quase uma década em que o imóvel esteve desocupado que
a FNL instalou o acampamento Nelson Mandela.
No dia 02 de março deste ano, a juíza Kléia
Bortolotti, da 7ª Vara Cível da Comarca da Região Metropolitana de Londrina,
determinou a penhora da fazenda.
Mesmo sem ter a posse efetiva da terra, Maria Nancy
impetrou, em 2021, uma ação de reintegração de posse contra a FNL. A Comarca de
Rosana do Tribunal de Justiça de São Paulo (SP) chegou a determinar a
desintrusão da área, porém o mandado foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal
(STF).
DONO
DA FAZENDA DESMATA EM SÃO PAULO E NO MATO GROSSO
A Fazenda Santa Mônica foi alvo de ações civis
públicas ambientais do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) por irregularidades no registro e constatação de desmatamento em área
de proteção ambiental. Com as terras ainda no nome dos antigos donos, foi
celebrado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em 2009 para que o imóvel
fosse regularizado.
Em 2017, o órgão realizou vistorias no imóvel e
constatou que houve intervenções irregulares no entorno de nascentes para
preparo do solo para cultivo agrícola, além de desflorestamento em grande parte
de seu território. Verificou-se ainda que a inscrição da fazenda no Cadastro
Ambiental Rural (CAR) afirmava que a reserva legal abrangia somente 4,39% da
área total do imóvel, quando o mínimo legal é de 20%.
Com isso, o juiz Danniel Adriano Araldi Martins, do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), determinou a retificação da
inscrição da fazenda junto ao CAR e vetou qualquer nova intervenção na área de
preservação até que fosse apresentado um projeto de recomposição ambiental de
todas as áreas de preservação permanente, com cronogramas para a restauração e
a abstenção de exploração na área.
Prática semelhante já foi identificada em outra
propriedade de Pedro Julião, um tradicional fazendeiro da região e sócio de
empresas de engenharia e energia no Centro-Oeste. A Fazenda Lago do Marrecão,
em Araguaiana (MT), teve cerca de 411 hectares de Cerrado nativo desmatados
dentro da área de Reserva Legal entre 15 de junho e 8 de setembro de 2019.
A informação consta em relatório da ONG
estadunidense Mighty
Earth. Segundo o documento, o desflorestamento atingiu 9%
da propriedade durante esse período. Na Fazenda Lago do Marrecão, Pedro Julião
cria gado, que é fornecido para um abatedouro da JBS em Barra do Garças (MT).
Fonte: De Olho nos Ruralistas
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