sexta-feira, 2 de junho de 2023

Nos anos 50, Estadão denunciava grilagem e desmatamento no Pontal do Paranapanema

O Pontal do Paranapanema, em São Paulo, é uma terra em disputa. Símbolo da grilagem e da luta pela reforma agrária, a região já esteve na mira do jornal O Estado de S. Paulo, o Estadão, por causa das invasões e desmatamento que sofreu no século passado. Hoje a área é alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Integrantes da CPI visitaram no dia 29 a região e tentaram humilhar camponesas.

A cena política atual ignora a origem pública da região e sua devastação pelo setor privado: o Pontal inspirou um projeto do ex-governador de São Paulo, João Dória (PSDB), encampado pelo atual governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que pretende vender as terras públicas, a toque de caixa, com até 90% de desconto

Fundado em 1875, o Estadão denunciou, em pelo menos 102 reportagens e artigos da década de 50, a conivência dos poderes Executivo e Legislativo com os desmatamentos e as invasões da área que compreende 32 municípios do estado. A pesquisa do De Olho nos Ruralistas foi feita no acervo online do próprio veículo. Na época, o Estadão — que hoje fala em sagrado direito à propriedade privada — defendeu a criação de uma reserva de matas no Pontal e a expulsão de grileiros.

‘CLAREIRAS AMPLAS ABREM-SE COMO FERIDAS NA VEGETAÇÃO’, DIZIA O JORNAL

Em reportagem de 28 de junho de 1955, o Estadão pontuou a transformação de áreas verdes em campos de pastagem, a falta de espaço para que árvores se desenvolvessem, além dos efeitos nos flora e na fauna. “Não são ouvidos pios, não são percebidos voos”, escrevia o jornal, em editorial.

— Em certos trechos nota-se a ação devastadora do homem. Áreas marginais surgem com suas matas completamente destruídas. Clareiras amplas, de forma mais ou menos circular, abrem-se como feridas no verde compacto da vegetação […]. Até muito longe percebe-se o cinzento triste das queimadas, de onde sobressaem tocos transformados em carvão e algumas árvores maiores, já sem vida, que erguem para o céu os troncos negros e os galhos nus, como se desejassem lançar depois de mortas o derradeiro apelo de uma natureza condenada”.

Essas invasões, há mais de 70 anos, eram consideradas totalmente ilegais. Em 1942, no governo Fernando Costa, a Procuradoria do Patrimônio Imobiliário do Estado identificou 247 hectares da região invadidos e exigiu a expropriação dos posseiros que ali estavam. Porém, segundo o Estadão, nada foi feito, e o Pontal continuou a ser invadido e derrubado.

O jornal explicou que o Pontal foi “saqueado por Ademar (sic), por seus parentes, amigos e correligionários, que puseram, nos postos administrativos de onde deveria partir a repressão, alguns testas de ferro do pessepismo”. Trata-se de Adhemar de Barros (1901 – 1969), governador entre 1947 e 1951, e 1963 e 1966, pelo Partido Social Progressista (PSP) e outras siglas. O PSP era uma união entre partidos, entre eles o Partido Agrário Nacional.

“Aquelas terras, por devolutas, pertencem ao Estado, cabendo, ao próprio Estado resguardá-las dos delitos que lá, em detrimento do patrimônio e da incolumidade públicos, têm lugar”, dizia a nota de 23 de outubro.

Integrantes da CPI do MST estiveram no Pontal da Paranapanema acusando famílias da Frente Nacional de Lutas de ocuparem fazendas privadas: “Fazenda onde Salles humilhou camponesas está em penhora e tem histórico de desmatamento“.

Somente em agosto de 1955 o jornal publicou cinco artigos que relatavam os problemas sofridos nas reservas florestais da Alta Sorocabana e quais seriam as medidas necessárias para que estas fossem resguardadas. Segue trecho de um dos textos:

— Incendeiam-se matas, cortam-se florestas, […] entretanto, nada se faz. O Estado, através de seus órgãos competentes, pode exercitar a sua autoridade de proprietário das famosas glebas, e, numa ação conjunta, ao mesmo tempo preventiva e repressiva, manter as magníficas reservas que até agora não soubemos conservar.

HÁ 70 ANOS, LOBBY DA GRILAGEM DIMINUÍA A EXTENSÃO DAS TERRAS DEVOLUTAS 

Mesmo enquanto o assunto estava em discussão na Assembleia Legislativa, os invasores, de acordo com o Estadão, “manobravam no sentido de impedir a aprovação de uma lei de terras, articulavam-se com funcionários e políticos, visando com isso conseguir títulos de propriedade para legitimação de glebas que haviam usurpado”.

Uma das tentativas veio por meio do Projeto Camarinha, do deputado Leônidas Camarinha, que visava manter 88 mil hectares como terras devolutas. No entanto, desde a década anterior, 159 mil hectares já eram considerados terras públicas. O parlamentar argumentava que a área restante não tinha mais florestas e que o solo estava sob posse de fazendeiros.

O pleito foi atendido em 17 de janeiro de 1956, quando o governador Jânio Quadros (1917 – 1992) assinou três decretos de desapropriação da área. Um dos documentos tornou terra pública apenas os 88 mil hectares já defendidos na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Os demais decretos reiteraram que os demais hectares eram terras devolutas, mas autorizaram a desapropriação.

 

Ø  Fazenda onde Salles humilhou camponesas está em penhora e tem histórico de desmatamento

 

Na última segunda-feira (29), os moradores do acampamento Nelson Mandela, no município de Rosana (SP), foram surpreendidos pela chegada de uma comitiva de deputados federais, membros da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Liderado pelo relator Ricardo Salles (PL-SP), o grupo viajou à região do Pontal do Paranapanema para realizar diligências em ocupações da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL), um dos alvos do projeto de criminalização pretendida pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).

O acampamento visitado por Salles foi instalado sobre a Fazenda Santa Mônica, que é alvo de disputas judiciais, está em penhora e tem um histórico de desmatamento sobre área de reserva. O ex-ministro do Meio Ambiente realizou a diligência acompanhado da dita proprietária da fazenda, a professora Maria Nancy Giuliangeli, de Sertanópolis (PR).

Um vídeo compartilhado nas redes sociais mostra o momento em que os dois intimidam três camponesas ligadas à FNL. As três mulheres estão trabalhando — aparentemente debulhando feijões — quando Maria e Salles se aproximam. O parlamentar as apresenta à fazendeira. “Vocês queriam saber quem era a proprietária, tá aqui”, disse Salles. “A terra, como a gente comentou, tem dono”.

As camponesas afirmam nunca tê-la visto, apenas o ex-marido dela, Valdemar Dorigon, e que tudo estava abandonado quando chegaram. Maria, então, nega a informação e diz que não pôde mais entrar no local desde 2020, quando a área foi ocupada. Por fim, a fazendeira ameaça: “Tem dono aqui, tá. Vai juntando a malinha que aqui vocês não vão ficar”.

Composta por 32 municípios, a região do Pontal do Paranapanema foi alvo de intensos conflitos fundiários, tornando-se um dos principais símbolos da reforma agrária no país. Segundo o MST, há hoje 117 assentamentos nesta zona rural, com 6.627 famílias, divididas em 147.857 hectares.

No último ano, o governador do estado de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB), sancionou um projeto de lei do ex-governador João Doria para privatizar terras públicas estaduais no Pontal por meio da imposição compulsória da Titulação de Domínio (TD). O apoio a Doria é constante no perfil de Giuliangeli no Facebook, também marcado por diversas críticas ao MST.

IMÓVEL OCUPADO PELA FNL É ALVO DE BRIGA JUDICIAL

De Olho nos Ruralistas analisou os registros do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a matrícula imobiliária da propriedade para conferir se a afirmação de Maria Nancy Giuliangeli, de que seria a proprietária da Fazenda Santa Mônica, estava correta. Em todos os documentos fundiários, o imóvel está registrado em nome de Pedro Julião Freire Lemos e suas filhas Juliana, Luciana e Fernanda Grandi Lemos.

Os 495 hectares da fazenda foram vendidos para Maria Nancy e seu ex-marido Valdemar Dorigon em 2004 por R$ 2,4 milhões, mas a transferência definitiva, que deveria ter sido realizada dois anos depois, jamais foi concluída. Segundo o processo judicial, que tramita no Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), ficou pendente o pagamento de R$ 469 mil. De acordo com um depoimento dela à Polícia Civil do Paraná, em 2016, o motivo para não ter quitado a compra foi “devido à estiagem”.

Pedro Julião entrou na Justiça e ganhou uma liminar para reintegração de posse, voltando à fazenda onde, ainda de acordo com o depoimento, estavam todos os pertences dela. Em 2014, foi a vez de Valdemar ganhar uma ação de reintegração, obrigando Pedro a se retirar novamente. Foi durante esse período de quase uma década em que o imóvel esteve desocupado que a FNL instalou o acampamento Nelson Mandela.

No dia 02 de março deste ano, a juíza Kléia Bortolotti, da 7ª Vara Cível da Comarca da Região Metropolitana de Londrina, determinou a penhora da fazenda.

Mesmo sem ter a posse efetiva da terra, Maria Nancy impetrou, em 2021, uma ação de reintegração de posse contra a FNL. A Comarca de Rosana do Tribunal de Justiça de São Paulo (SP) chegou a determinar a desintrusão da área, porém o mandado foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

DONO DA FAZENDA DESMATA EM SÃO PAULO E NO MATO GROSSO

A Fazenda Santa Mônica foi alvo de ações civis públicas ambientais do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) por irregularidades no registro e constatação de desmatamento em área de proteção ambiental. Com as terras ainda no nome dos antigos donos, foi celebrado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em 2009 para que o imóvel fosse regularizado.

Em 2017, o órgão realizou vistorias no imóvel e constatou que houve intervenções irregulares no entorno de nascentes para preparo do solo para cultivo agrícola, além de desflorestamento em grande parte de seu território. Verificou-se ainda que a inscrição da fazenda no Cadastro Ambiental Rural (CAR) afirmava que a reserva legal abrangia somente 4,39% da área total do imóvel, quando o mínimo legal é de 20%.

Com isso, o juiz Danniel Adriano Araldi Martins, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), determinou a retificação da inscrição da fazenda junto ao CAR e vetou qualquer nova intervenção na área de preservação até que fosse apresentado um projeto de recomposição ambiental de todas as áreas de preservação permanente, com cronogramas para a restauração e a abstenção de exploração na área.

Prática semelhante já foi identificada em outra propriedade de Pedro Julião, um tradicional fazendeiro da região e sócio de empresas de engenharia e energia no Centro-Oeste. A Fazenda Lago do Marrecão, em Araguaiana (MT), teve cerca de 411 hectares de Cerrado nativo desmatados dentro da área de Reserva Legal entre 15 de junho e 8 de setembro de 2019.

A informação consta em relatório da ONG estadunidense Mighty Earth. Segundo o documento, o desflorestamento atingiu 9% da propriedade durante esse período. Na Fazenda Lago do Marrecão, Pedro Julião cria gado, que é fornecido para um abatedouro da JBS em Barra do Garças (MT).

 

Fonte: De Olho nos Ruralistas

 

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