quinta-feira, 29 de junho de 2023

Longe de Stonewall, ativismo por direitos LGBTQIA+ no Brasil tem lista extensa de conquistas e ícones

Durante o Mês do Orgulho, é comum haver referências frequentes ao episódio ocorrido no bar Stonewall Inn, em Nova York, como um dos momentos mais importantes para a conquista de direitos da população LGBTQIA+ no mundo. Ainda que a relevância dos acontecimentos seja incontestável, a narrativa do progresso da comunidade no Brasil é igualmente expressiva e repleta de histórias de resistência.

Com a ajuda de três especialistas no assunto, e que também são importantes nomes para o movimento, o Terra elenca alguns dos momentos mais importantes para a população LGBTQIA+ e traz alguns dos principais nomes que contribuíram para que a comunidade alcançasse mais direitos no País.

•        O que foi Stonewall e sua importância

Antes, é importante estabelecer o que foi a revolta ocorrida em Stonewall e por que ela é tão importante. Em 1969, o bar Stonewall Inn, em Nova York, era um dos locais mais frequentados pela comunidade e que sempre sofria com ações da polícia. No entanto, no dia 28 de junho, cansadas da repressão policial, pessoas LGBTQIA+ se revoltaram e fizeram um motim.

A partir daí, a data começou a ser considerada um marco da liberação da população LGBTQIA+ e inspirou o ativismo pelos direitos da comunidade em outras localidades. Por conta da data, cidades ao redor do mundo realizam paradas com multidões nas ruas trazendo reinvindicações e celebrando o orgulho de pertencer à comunidade.

•        Por que precisamos falar do movimento brasileiro

Embora a luta LGBTQIA+ tenha um pouco de relação com eventos internacionais, o movimento brasileiro teve suas particularidades, desafios e vozes que se ergueram para combater a discriminação e buscar igualdade de direitos.

Segundo o autor do livro Stonewall 40 + o que no Brasil? e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Leandro Colling, o Brasil precisou de mais dez anos depois de Stonewall para assistir à criação de um grupo homossexual organizado. "Trata-se do grupo Somos, que funcionou de 1978 a 1983. As travestis passaram a ter um grupo próprio apenas em 1992, com a fundação da Associação de Travestis e Liberados - ASTRAL, no Rio de Janeiro". O motivo para essa demora era a grande repressão sofrida pela comunidade LGBTQIA+ durante a Ditadura Militar (1964 - 1985).

Colling, que é professor no curso de Especialização em Gênero e Sexualidade na Educação da UFBA, conta ainda que um episódio no Brasil parecido com o ocorrido em Stonewall "é atribuído ao que aconteceu no dia 19 de agosto de 1983, no Ferro’s Bar, em São Paulo, protagonizado por lésbicas. Elas frequentavam o bar e queriam distribuir o jornal Chana com Chana no local e o proprietário não queria permitir. Elas resistiram e fizeram uma manifestação que gerou um pedido de desculpas do dono do bar".

Com a organização de um movimento por direitos da comunidade LGBTQIA+, uma série de conquistas foram alcançadas por aqui. Entre ela, é possível destacar:

•        A descriminalização da homossexualidade em 1830;

•        o direito à adoção por casais do mesmo gênero em 2010;

•        a legalização do casamento igualitário em 2013;

•        a criminalização da homofobia pelo Supremo Tribunal Federal em 2019; e

•        a possibilidade de pessoas trans retificarem seu nome sem decisão judicial em 2018.

"Avançamos sim, mas ainda falta muito a melhorar, em especial no tocante às políticas públicas. Avançamos em uma imensa expansão da visibilidade e representatividade de nossa comunidade em vários espaços, em especial na mídia e nas ruas, através das Paradas e vários outros eventos. Avançamos também nas três grandes vitórias através das ações que geraram decisões históricas do STF, como a união civil, que depois foi convertida em casamento civil igualitário, equiparação da homofobia ao crime de racismo e a mudança de nome e gênero nos documentos das pessoas trans sem a necessidade de laudo ou ação judicial", pontua Colling, que também aponta alguns entraves. 

"Ainda faltam políticas públicas efetivas e com recursos em todas as esferas administrativas para o respeito à diversidade sexual e de gênero. Cadê o Escola sem homo-lesbo-transfobia, por exemplo? Estamos esperando! Cadê políticas específicas de segurança para acabar com a matança de pessoas LGBT, em especial trans, no Brasil? Temos muito a melhorar também na representação de pessoas LGBT nos parlamentos, que precisam aprovar leis pelos direitos das pessoas LGBT", completa Colling.

O doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília, Cleyton Feitosa, também entende que houve avanços, mas vê obstáculos para aumentar essas conquistas. Entre eles, está o cenário de grande representatividade nos Poderes Executivo e Legislativo por parte de setores mais conservadores e que muitas vezes barram pautas progressistas.

"A gente vem conquistando diversas importantes iniciativas nessas últimas décadas, mas, ao mesmo tempo, a gente ainda tem muito a melhorar nas políticias públicas. O que eu acredito que a gente tem a melhorar tem relação com o fato da população LGBTQIA+ verem essas políticas chegarem no cotidiano, em suas vidas. Muitas dessas iniciativas também precisam ser efetivadas", diz Feitosa, que também é mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco e autor do livro Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil.

"A gente tem um problema no Brasil que é uma ausência de dados. Seria muito importante dados oficiais, dados governamentais, para observar números de violência, por exemplo", conclui Feitosa.

O fundador do Grupo Gay da Bahia, Luiz Mott, afirma perceber que a sociedade brasileira aceita melhor a população LGBTQIA+ atualmente. Porém, "o Brasil é um País contraditório em muitos aspectos. Melhoramos em muitos níveis: a mídia não usa termos preconceituosos e xulos para se referir (à população LGBTQIA+). Há uma maior visibilidade na TV. Políticos e personalidades se assumem com mais frequência. Ao mesmo tempo, famílias ainda discriminam, expulsam de casa. Os assassinatos continuam", explica.

•        Alguns dos nomes mais importantes no ativismo

O ativismo LGBTQIA+ no Brasil contou com pessoas que se tornaram ícones na luta pelos direitos da comunidade. Entre esses nomes estão:

# João Antonio Mascarenhas: fundador do Movimento Homossexual Brasileiro e do jornal O Lampião, que circulou durante a repressão da Ditadura Militar e abordava desde questões políticas a culturais;

# João Silvério Trevisan: escritor e ativista, é autor de obras importantes que abordam a temática LGBTQIA+, como Devassos no Paraíso (1986);

# Luiz Mott: antropólogo, historiador e pesquisador, fundou em 1980 o Grupo Gay da Bahia, a organização não governamental mais antiga de defesa dos direitos da população gay ainda em atividade no Brasil;

# Cassandra Rios: escritora e ativista lésbica, deixou um legado para a visibilidade das mulheres lésbicas no País e, mesmo perseguida e ameaçada pela ditadura militar, seguiu escrevendo;

# Dzi Croquettes: grupo de teatro que revolucionou a cena artística brasileira, usando o humor e a irreverência para abordar questões LGBTQIA+;

# Keila Simpson: ativista trans e presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), tem uma voz atuante na luta pelos direitos trans no Brasil;

# Paulo Iotti: advogado que atuou nas ações no STF pelas uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, pela criminalização da homofobia e pela mudança de nome e gênero nos documentos das pessoas trans;

# Toni Reis: presidente da Alianca Nacional LGBTI+ e diretor executivo do Grupo Dignidade, que atuam na promoção e defesa dos direitos e cidadania da comunidade LGBTQIA+;

# Miriam Martinho: mulher lésbica e ativista, luta pelos direitos das mulheres lésbicas e produziu o boletim Chanacomchana, cuja proibição de sua distribuição em um bar paulistano gerou revolta e protestos em 1983;

# Katia Tapety: ativista travesti, em 1992 foi a primeira travesti eleita na política no município de Colônia do Piauí;

# Brenda Lee: considerada "o anjo da guarda das travestis", a cantora e ativista trans é fundadora da primeira casa de apoio para pessoas portadoras de HIV;

# Jorge Lafond: ator e drag queen, destacou-se por sua atuação artística e visibilidade;

# Jean Wyllys: gay, ex-deputado federal e ativista, luta pelos direitos da comunidade e é uma voz importante no cenário político brasileiro;

# Erika Hilton: primeira vereadora trans da cidade de São Paulo e atualmente Deputada Federal, atua na defesa dos direitos LGBTQIA+ e na promoção da igualdade racial.

Os especialistas ouvidos pelo Terra apontam ainda uma importante participação de grupos de teatro, como o pernambucado Vivencial Diversiones e o Teatro Oficina, de São Paulo e artistas como Rogéria, Daniela Mercury, Cássia Eller, Renato Russo, Cazuza, Pabllo Vittar, Linn da Quebrada e Gloria Groove, por terem se destacado no mundo artístico e alcançado as massas.

 

       61% dos profissionais LGBT+ não se assumem no trabalho com medo de perder emprego

 

Luiz* tem 29 anos e, desde os 13, se entende como homossexual. Sua orientação sexual, que há muito tempo é uma “situação resolvida” para si mesmo, parece não ser para quem divide o expediente com ele.

Morador de uma cidadezinha de 23 mil habitantes do interior do Espírito Santo, Luiz é um funcionário público do primeiro escalão que precisa se esconder atrás de uma norma que não lhe pertence para garantir sua sobrevivência profissional. “É uma situação muito séria, acabo não falando da minha orientação sexual em nenhum espaço e em nenhum momento”, conta em entrevista ao Terra.

Ele fica atento ao que fala, como se veste e até como gesticula. O receio de ter sua vida íntima exposta e, consequentemente, até perder o emprego mina suas chances de ser feliz na cidade onde nasceu e foi criado.

“Acho isso pavoroso, mas é muito dual. Por mais que eu ache a coisa mais pavorosa, asquerosa e ilógica possível dentro da sociedade, na realidade a gente acaba vivendo isso para poder ter uma oportunidade profissional”, desabafa.

Esta é a realidade não só de Luiz, mas de muitos outros brasileiros. Aproximadamente 61% dos profissionais LGBTQIA+ no Brasil optam por não declarar a própria orientação sexual no trabalho para colegas e gestores, segundo o levantamento Out in the World: Securing LGBT Rights in the Global Marketplace (No mundo: garantindo os direitos LGBT no mercado global, em tradução livre), produzido pela Center for Talent Innovation.

O estudo também mostrou que 49% dizem que encobrem ou minimizam sua identidade LGBT+ no ambiente profissional.

•        Homofobia no trabalho

O especialista em liderança e facilitador de treinamento Bruno Moura, de 35 anos, foi vítima de homofobia dentro do ambiente corporativo em duas empresas. Em uma delas, ouviu de seu diretor, após uma apresentação, que o sócio pediu para ele não “desmunhecar muito a mão” na próxima. “De todos os feedbacks, ele poderia ter falado outras coisas, ou ter poderado”.

Na segunda, o caso virou denúncia e ocorreu dentro de uma multinacional da indústria de cigarros onde atuou em 2015. Quatro pessoas estavam envolvidas e acabaram demitidas: o head do centro de serviços compartilhados; a secretária dele; um subordinado de Bruno; e uma gerente.

“Nos primeiros momentos, de forma alguma consegui identificar que se tratava de homofobia, primeiro que desde criança eu sofria isso e se tornou rotineiro. Acho que a minha régua era muito comprida para isso”, explica.

Durante a sua jornada, passava por descredibilização de seu trabalho, era desautorizado, tinha reuniões desmarcadas com o head minutos antes delas acontecerem e projetos que eram da sua área sendo passados para outras. Por vezes, ouviu ‘piadas’ que transformavam em ‘humor’ aquilo que jamais deveria ser motivo de risada.

“Em alguns momentos, ele [head] falava coisas do tipo: ‘eu aceito pessoas gays, mas a minha família não’. Ele nunca chegou a falar abertamente, que não gostava de mim porque eu era gay”, afirma.

Durante o período que esteve na empresa, seu corpo começou a avisar que algo estava errado. Passou por episódios de insônia, depressão e precisou tomar remédios para se tratar. Só quando foi desligado foi que percebeu as microviolências que havia sofrido durante meses.

“Eu fiquei uns dias ruminando, tentando entender o que eu fiz de errado. Foi aí que decidi denunciar no canal da empresa. Fiz uma carta de seis páginas, mas sempre com muito medo. Como se prova uma coisa dessa? [...] Não tive qualquer amparo”, relembra.

Sua denúncia deu início a uma investigação dentro da empresa. Nesse meio tempo, ele descobriu que até seu computador foi acessado indevidamente, sob autorização do head, para verificar se ele havia vazado dados sigilosos.

Após a conclusão do caso, as pessoas envolvidas no caso foram demitidas. Ele optou por não processar a multinacional e seguiu a vida.

•        Ações trabalhistas

A maioria dos casos, porém, não encontra resolução dentro das companhias. Só em 2022, foram ajuizadas 28,3 mil ações trabalhistas envolvendo reparação por atos discriminatórios por questões de racismo e demais violências como homofobia e transfobia, conforme apontam dados disponibilizados pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Essa busca pelo amparo na Justiça deve ser a última alternativa, segundo a advogada Gabriela Augusto, que lidera a Transcendemos, empresa que auxilia outras empresas a adotarem ações de diversidade e inclusão.

“Eu sempre ressalto a importância dos canais de denúncia. Geralmente, as empresas possuem um canal onde você pode colocar a sua situação, o seu descontentamento, as violências que você sofre para, de alguma maneira, a organização endereçar esse problema”, afirma Gabriela, que é uma mulher trans negra.

Caso o trabalhador tenha condições de deixar o emprego onde se sente desconfortável, a sugestão da advogada é que isso seja feito. Se não, depois de tentar resolver o caso internamente e ainda assim houver problemas de cunho discriminatório, então o conselho da especialista é que o empregado busque os meios jurídicos para resolver a questão.

•        Cuidado com microagressões

Nem sempre o preconceito é explícito. Ele pode surgir em pequenas falas e atitudes, por meio das chamadas microagressões, segundo explica Gabriela. “Muitas dessas violências são proferidas de uma maneira tão contínua, é tão normalizado, que a maior parte das pessoas não percebe. Acham que é só uma brincadeira ou uma piada”, diz.

Uma dica de como o profissional pode analisar se aquelas “brincadeiras” estão passando do limite é notar o seu próprio comportamento com relação a elas. A advogada alerta que essas violências podem causar algo muito mais profundo a quem as ouve.

“Presta atenção em si mesmo, se você anda mal, anda triste, anda ansioso. Será que isso não tem a ver com a cultura do lugar onde você está? Se você está com medo de falar sobre o assunto, de se colocar numa reunião ou num evento, será que isso não tem a ver com a falta da sua empresa?”, questiona.

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.

 

Fonte: Terra

 

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