quinta-feira, 1 de junho de 2023

Conheça a idosa de Seabra de 96 anos que é louca por São João e famosa por fazer festão

Todos os anos, ela faz simpatia para garantir que estará viva na próxima festa

Quem chegar na noite de 23 de junho na casa de Amélia Barreto Cunha e estiver atento aos detalhes, vai encontrar uma bacia de louça cheia de água em algum canto do quintal. Nada acontece por acaso na residência da matriarca da família em Seabra, no centro-sul baiano. Na manhã seguinte, no dia de São João, é tradição que parentes e agregados tentem ver seus rostos refletidos no espelho d’água. Para quem acredita na simpatia, não enxergar o reflexo é sinal de que não estará vivo no próximo ano. Esse é um dos costumes que dona Amélia, de 96 anos, repassa para as novas gerações da família que não seria a mesma se não fossem as tradições juninas.

Não importa a época do ano, se dona Amélia conversa por telefone com os netos que estão distantes, lança a pergunta: “E no São João, vai vir para cá?”. A paixão da senhora pela festa junina remete a época em que seus pais, devotos de São João Batista, decoravam a casa e recebiam os parentes na casa da família em Ipupiara, no centro-sul do estado.

 “Na minha terra, quando eu era pequena, meu irmão fazia as flores de tecido e eu aprendi. A gente enfeitava a cidade toda porque ele era muito religioso. Aqui na minha casa até hoje é um festão. É a festa mais bonita que existe”, conta dona Amélia emocionada. O encantamento pela festa é nítido no olhar da senhora, que se enche de lágrimas quando relembra os momentos do passado.

•        Aos 96 anos, a matriarca segue ativa nos festejos

O tempo fez com que a vida de dona Amélia tomasse outro rumo e ela se mudou para Seabra, na década de 60. Na bagagem, ela levou as tradições e o amor pelo São João. O mês de junho marca uma espécie de êxodo urbano da família Barreto. É neste período que filhos, sobrinhos e netos retornam a casa da avó e se reúnem para dançar forró e comer pratos típicos da festa. Ao redor da fogueira que fica acesa do dia 24 até a celebração de São Pedro (29) na frente da casa, os familiares contam as novidades e relembram os velhos tempos.

A música também é garantida, com os acordes das sanfonas dos netos Adriane, 26, e André Barreto, 34, ecoando pela vizinhança. “A família sempre chamou um trio de forró para se apresentar no São João e, nesse contexto, eu fui pegando os instrumentos e toquei sanfona pela primeira vez. Fui aprendendo tocando na casa de vó e fazemos todo ano o forró”, conta Adriane. A médica levou a tradição para o trabalho na UTI, onde toca o instrumento para os pacientes internados em estado grave.

Mas, antes da casa ficar aberta para receber os convidados, uma longa preparação é colocada em prática. Pela idade avançada e restrições de mobilidade da matriarca, quem toma à frente da decoração e da cozinha é a filha, Míriam Barreto, de 55 anos. Um mês antes do São João, ela começa a fazer os licores, pendurar as bandeirolas e costurar as flores de tecido. Tudo isso, é claro, com a supervisão atenta de dona Amélia. A ansiedade da senhora é tamanha, que nesses dias, acorda mais cedo, se senta na sala e opina em todos os detalhes.

•        Festa

A tradição fez a casa da família ser referência na cidade de 40 mil habitantes. Quem passar por lá durante a novena junina, certamente vai encontrar as chamas ardentes da fogueira e muita comida. “Aqui tem mesa posta todo o dia. A casa da cidade que estiver com a mesa posta recebe todo mundo que chegar. Nossa celebração compete com a festa da praça, tem um monte de gente que prefere vir para cá”, brinca Míriam. A religiosidade também não é deixada de lado e a família faz orações para São João Batista, santo de devoção dos pais de Amélia.

•        A decoração da casa chama a atenção de quem passa pelas ruas de Seabra

Entre os costumes, além da fartura, está a simpatia da bacia de água para comprovar se, quem enxergar seu reflexo, vai estar vivo no ano seguinte. Aos 96 anos, dona Amélia não se intimida e é a primeira da fila a observar seu rosto refletido no espelho d’água. “Tem uns que não olham, por medo, mas eu olho todo ano. Sou a primeira”, conta a senhora.

Durante as restrições da pandemia, a matriarca sofreu sem a presença dos convidados no período junino. O filho Marialvo Barreto, de 69 anos, conta que dona Amélia sempre gostou da casa cheia e de agregar pessoas ao seu redor. “Ela parece que fica com 60 anos quando tem gente dentro de casa. É só alegria e, se deixar, passar a noite acordada vendo a festa”, revela.

•        Músicas de forró e danças são garantidas na festa

Além da festa, dona Amélia é figurinha conhecida na cidade pela história de vida. Numa época em que ser mulher era ainda mais difícil do que atualmente, ela se separou do marido, com quem teve seis filhos. Para sustentar a família, comprou uma máquina de costura e se tornou comerciante conhecida em Seabra.  Amélia ainda se desdobrava nos cuidados de três filhas que, devido à uma doença rara, tinham paralisia nas pernas e não estão mais vivas.

Se quem está em Seabra, sede da festança, conta os dias para o São João, os parentes que estão distantes também não vêem a hora do reencontro regado a muito forró e licor. Para o neto André, de 34 anos, o momento é de voltar à infância e adolescência, quando levava os amigos de Brasília, onde morou, para conhecer a festa familiar. “A gente relembra o período das bombinhas, quando nos encontrávamos nas férias. Até hoje tem esse sentimento e é muito bom estar junto com a avó e contar as histórias”, diz.

•        Dona Amélia e a bisneta

Se o que faz uma tradição é a passagem de ensinamentos para as futuras gerações, o São João da família Barreto está garantido por um bom tempo. Anderson Barreto, 36, um dos netos de dona Amélia, deu à filha de 3 anos o nome da avó. No último São João, a pequena ganhou um vestido feito por Míriam, filha de Amélia e mãe de Anderson, como manda mais uma tradição da família.

“Ela nasceu na pandemia e ainda não viu a festa de verdade por causa das restrições. Agora, com a situação melhor, vai ser o primeiro São João de verdade da pequena e vamos preservar a tradição”, promete Anderson.

 

       Médica sanfoneira alegra pacientes de UTI em Salvador

 

Não fosse o horário em que os pacientes recebem visitas diárias, as poucas conversas entre a equipe médica e os bipes de equipamentos seriam os únicos a quebrarem o silêncio das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Talvez por isso, os acordes de sanfona que percorrem os corredores de um hospital público em Águas Claras, em Salvador, chamem atenção de quem passa pela unidade. Em um lugar onde a seriedade reina, a leveza da médica Adriane Barreto Cunha, 26, traz alegria para os pacientes internados em estado grave.

Quando ganhou sua primeira sanfona aos 15 anos de idade, na cidade de Seabra, na Chapada Diamantina, Adriane ainda não tinha ideia de que carregaria os 9 quilos do instrumento em um lugar tão improvável. A música e a vontade de ajudar o próximo nunca deixaram de acompanhar a jovem que veio para a capital estudar Medicina. Com o passar dos anos, ela descobriu que juntar as duas paixões seria uma forma de humanizar o tratamento de quem mais precisa.

A ideia de tocar sanfona para pacientes internados surgiu quando colegas de profissão descobriram que Adriane, mesmo morando na capital, faz questão de dar continuidade a tradição do forró, que foi herdada de berço. A avó de Adriane, dona Amélia, de 96 anos, é figurinha conhecida em Seabra. Por lá, todo mundo sabe que nos dias de festa a fogueira da casa é acesa no dia 23 de junho e só é apagada depois do dia de São Pedro.

O clima de tensão da UTI do hospital Eládio Lasserre se transforma quando a médica aparece com a sanfona envolvida no corpo e tocando os acordes de canções de Dorgival Dantas. Por alguns minutos, é como se a batalha pela vida fosse deixada de lado para que os olhos e os ouvidos se atenham apenas à trilha sonora. A proximidade do São João torna a apresentação especial, mas, além da distração, a ação tem benefícios comprovados pela ciência.

“Existem estudos que comprovam que neurotransmissores são liberados nesses momentos e o paciente se sente mais feliz. Há um retorno da sensação de autonomia. Trazer a música faz com que eles se lembrem da vida e voltem a se conectar com suas origens”, explica Adriane Barreto. No perfil do Instagram (@draadrianebarreto), a médica produz conteúdos informativos e ainda mostra seu lado de forrozeira.

A ação, que aconteceu pela segunda vez no hospital na quarta-feira (19), faz parte de um projeto do hospital, que consiste em humanizar os tratamentos. Sabe quando algum paciente passa por uma consulta e tem a sensação de que o médico não lhe deu a atenção devida? É justamente isso que os profissionais de saúde tentam evitar ao olhar para os atendidos de forma mais cuidadosa.

“Nós nos preocupamos com a recuperação física dos pacientes internados, mas muitas vezes acabamos esquecendo da importância dos outros aspectos. A humanização, dentro do contexto hospitalar, mostra que o paciente é um sujeito integral e que precisa trabalhar o lado social e subjetivo”, pontua a psicóloga Ester Maria Dias, presidente da Comissão de Humanização do hospital Eládio Lasserre.

Para além da ação encabeçada pela médica sanfoneira na UTI geral, os membros da comissão aproveitam as datas comemorativas para levar alegria aos pacientes. Na Páscoa, por exemplo, foi organizada uma caça aos ovos com as crianças internadas. "Essas ações alegram não só a UTI, mas todo o hospital. Os benefícios são para os internados e para os colaboradores também", afirma a gerente de enfermagem Katia Miranda.

O projeto segue a Política Nacional de Humanização (PNH), lançada pelo Ministério da Saúde em 2003. Um dos princípios do HumanizaSUS é envolver os pacientes e seus familiares nos processos de cuidado, através do acolhimento e escuta. Ao mesmo tempo, os trabalhadores da saúde devem ser agentes ativos das mudanças, na medida em que as hierarquias se tornam mais horizontais.

Ainda existem muitos desafios para que a humanização seja plenamente incorporada no Sistema Único de Saúde (SUS), como destinação de verbas e conhecimento dos próprios profissionais. Se o caminho é longo, há quem esteja dando passos curtos, mas precisos, para que o tratamento qualificado e humano se torne prioridade.

“A UTI é um ambiente em que tomamos tantas medidas invasivas e não há nada tão invasivo como restaurar a identidade. Queremos que essas pessoas se lembrem de momentos da vida delas em casa, com a família. Conseguimos resgatar essas lembranças ainda mais estando próximo do São João”, diz Adriane Barreto, a médica sanfoneira.

 

Fonte: Correio

 

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