A sexualidade no
Antigo Testamento
A sexualidade é, sem sombra
de dúvida, uma dimensão pervasiva da existência humana. Diz respeito a todos os
âmbitos da vida do homem e da mulher, de todas as idades e condições sociais.
Marca o pensamento, os afetos, o corpo, as mais diversas ações realizadas ao
longo da vida humana.
Irmtraud Fischer, professora
de Antigo Testamento da Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Graz – já atuante
em Viena, Bamberg e Bonn – examina com precisão e com
crivo apaixonado e contundente as várias manifestações que a sexualidade encontra no
interior do Antigo Testamento, tanto nos textos jurídicos quanto nos
narrativos.
Como
mulher empenhada no ensino, mas também no campo eclesial, ela lamenta várias
vezes como o tema da sexualidade foi
tratado (ou ignorado) no ensino dado aos discípulos de Jesus, favorecendo muitas vezes a submissão da
mulher e uma visão machista das relações sexuais e afetivas.
Muitas
vezes, deixamo-nos guiar pelas afirmações bíblicas marcadas pelo estado pós-lapsário (depois do
pecado das origens), reafirmadas em alguns textos do Novo Testamento, que não favoreceram
uma visão serena e
positiva da sexualidade da relação paritária homem-mulher e do prazer que
o exercício da sexualidade em suas várias expressões pode oferecer para uma
vida feliz e equilibrada.
Em
dez capítulos, a estudiosa aborda os vários aspectos da expressão da sexualidade humana tal como está presente
no Antigo Testamento, chegando a
avaliações que, em um caso ou outro, às vezes podem até não ser totalmente
compartilhadas, mas que pretendem abrir uma janela de diálogo também no que diz
respeito às relações entre pessoas do mesmo sexo. Um texto realmente
interessante, muito documentado, raciocinado com a mente e com o coração, sem
se deixar restringir por pré-compreensões consolidados ao longo dos séculos.
Condições socioculturais, normas jurídicas e
conceitos antropológicos
O
primeiro capítulo (pp. 9-20) trata das áreas lexicais e problemáticas que
descrevem a sexualidade humana, as representações iconográficas dos atos
sexuais no Antigo Oriente Próximo (AVO)
– inexistentes no Antigo Testamento – e da
possibilidade e da necessidade de resgatar a mensagem bíblica no mundo de hoje,
atualizando os textos canônicos. O segundo capítulo se concentra nas condições
socioculturais e nas normas jurídicas relativas à sexualidade (pp. 21-44). Estudam-se a celebração do casamento
e as suas formas, as relações sexuais legítimas, as proibições de casamento, o
incesto, as relações e os atos sexuais tabus e o fenômeno da violência sexual e
sexualizada no contexto jurídico. Não há textos jurídicos sobre a coerção
sexual, mas as narrativas a mencionam (Betsabeia, Susana etc.).
Recorda-se
a denúncia sexual (a acusação de uma jovem
recém-casada de ter tido relações sexuais antes do casamento), o estupro, com os vários
casos relativos a virgens prometidas ou não em casamento, violências cometidas
na cidade ou no campo etc., o estupro
de guerra (cf. Dt 20,5-8; 20,14; Jz 5,28-30 com as reflexões feitas
pelas princesas sobre a legítima
violência praticada contra as mulheres na guerra; cf. também Jz 4,12;
7,27; 9,2).
O
terceiro capítulo foca os conceitos antropológicos, estudando a sexualidade como conditio
humana nos relatos da criação (pp. 45-58). Em Gn 1-2, a sexualidade é
vivida de modo igualitário como ordem divina da criação. Em Gn 3, ao contrário,
delineia-se a sexualidade hierárquica como ordem da natureza humana da criação decaída.
Muitas legislações posteriores no âmbito eclesial se referiram a essa última
condição, esquecendo a beleza e a ordem igualitária da relação homem-mulher
desejada por Deus não só no que diz respeito à procriação, mas também à vida afetiva de
comunhão paritária no casal humano.
·
Instrução dos pais e relações sexuais bem-sucedidas
Alguns
textos relatam a instrução dos pais como educação sexual e doutrina do
matrimônio (capítulo quatro, pp. 59-66). Encontramos o eterno clichê das
mulheres libidinosas que seduzem homens inocentes (cf. Pr 7 e a mulher
estrangeira), mas também educação ao prazer erótico (cf. Pr 5,15-20) e educação
para a esposa ideal (cf. Pr 19,14; 27,17; Eclo 42,12; Pr 31,10-31 com a
apresentação da mulher não apenas como uma esposa terna, mas também como uma
mulher completamente independente e com propriedades e autoridade legal).
Vários
textos refletem, como sempre, uma sociedade
patrilinear e androcêntrica, recomendando a
expectativa da rigorosa fidelidade de uma mulher, a vigilância sobre a integridade e a virgindade das
filhas, sobre sua educação à fidelidade e à maternidade. Alguns textos
mostram mulheres que não são
passivas no campo da sexualidade (cf. Raquel em Gn 30,1 e Lia em Gn 30,16).
A
beleza identifica a esposa ideal (cf. Gn 12,11.14; 24,16; 29,17), mas pode
representar um perigo se não for a da própria esposa. O Cântico dos Cânticos mostra que a
beleza não se baseia apenas em critérios externos, mas também surge por meio da
relação com a pessoa amada. O quinto capítulo analisa as relações sexuais
bem-sucedidas (pp. 67-78), mesmo que o Antigo Testamento muitas vezes fale apenas de coisas trágicas
ou ruins sobre os casamentos (infertilidade, abandonos, divórcios, incestos etc.).
Às
vezes, narra-se apenas um amor unilateral. O Antigo Testamento também narra a vida feliz do escravo que
prefere viver com o senhor mesmo depois de ter sido liberto. Às vezes, apenas
uma das partes é feliz no casamento. Por exemplo. Jacó ama,
mas Raquel não
corresponde; Micol ama Davi unilateralmente,
e não é evidente que Séfora ame Moisés (cf. Ex 18,2,
“mandou de volta” pode aludir ao divórcio ou a uma longa separação).
Quanto
às relações amorosas homossexuais satisfatórias, a estudiosa lembra os casos
de Rute com Noemi e Jônatas com Davi. Diz-se de Rute que ela se “colou” a Noemi (verbo usado para a união sexual em Gn 2,24), e
sobre Davi se afirma
que o amor por Jônatas era para
ele mais precioso do que o das mulheres. A estudiosa assume como
evidente nos dois casos uma relação homossexual. Sobre Davi e
Jônatas, discutiu-se muito, mas sobre Rute e Noemi a questão me parece nova e
questionável (e baseada em um verbo...).
·
Expectativas frustradas, esforços, irregularidades e
casos particulares
O
capítulo sexto fala sobre a expectativa frustrada, o desejo que desaparece e a
vida conjugal cansativa (pp. 79-100). Uma grande expectativa pode suceder a uma
grande desilusão. A autora analisa Gn 24 (Rebeca e Isaac)
e Jz 14 (a mulher de Tamna em
relação a Sansão). Ela estuda
também as palavras pregnantes e a frustração matrimonial como lembrada no livro
dos Provérbios. Fala-se de
situações e de relações frustrantes, marcados pelas brigas e pela
incompreensão, com uma avaliação muitas vezes negativa da mulher.
A
visão positiva de Pr 31,10-31 pode ser contrabalançada por algumas afirmações
misóginas do Eclesiastes,
mas que podem ser ambíguas, como as citações tiradas de outros e com as quais
ele se confronta em citações não identificadas (cf. Ec 7,26-29). Detalhes
narrativos de uma vida conjugal problemática estão presentes em textos que, no
entanto, têm como principal interesse a realização e a transmissão das promessas divinas (cf. os
patriarcas) e as problemáticas dinástico-políticas (histórias
sobre os inícios do reino que insistem nisso, mais do que na vida sexual satisfatória dos
primeiros governantes).
Cenas
de um casamento difícil sob a promessa são aquelas oferecidas por Abrão e Sara em Gn 11,29ss e Gn 20 (Abrão
nega que Sara seja sua esposa). Gn 16,1ss recorda o grave problema da
esterilidade de Sara e a condução de Agar a Abrão para
que tenha um filho dela. Se Abraão tinha
resolvido seu problema, agora Sara resolve o dela...
Um
exemplo de amor não correspondido é o de Jacó por Raquel (cf.
Gn 29,9-30) e o de Micol por Davi (cf. 1Sm 18,20). A autora
afirma que Davi, no fundo, amava apenas Jônatas. Nos textos sobre Davi, a sexualidade legitima o poder e não a função reprodutiva,
como, em vez disso, enfatiza-se nos relatos sobre os patriarcas. Davi tem
inúmeras esposas e concubinas, mas, no fim da relação com Micol, os dois não têm mais nada a
dizer um ao outro. Micol não terá filhos: não por ser estéril, mas porque Davi
não se une a ela (cf. 2Sm 6,23).
Uma
atenção apagada entre casais é representada por Abigail e seu marido “estúpido” Nabal (cf. 1Sm 25). Fria, embora menos conflituosa, é também
a relação conjugal entre a mulher de Suném (cf. 2 Re 4,8-37) e seu marido, sobre o qual muito
pouco se fala, em comparação com tudo o que é narrado sobre a relação da mulher
com o profeta Eliseu. O
homem parece apático e participa apenas marginalmente da vida. A relação –
segundo a autora – é provavelmente mais uma adaptação do que um verdadeiro
matrimônio.
O
capítulo sétimo analisa dificuldades, irregularidades e casos particulares (pp.
102-126). Nessas páginas, fala-se da esterilidade e da impotência (Sara e Abraão; Manué e sua esposa em Jz 13; Ana em 1Sam 1,2). A única menção à esterilidade masculina é
feita para Abimelec em
Gn 20,17s. Também são estéreis Maalon e Quelion, maridos de Rute e Orpa. Davi torna-se estéril na velhice (cf. 1Re 1,1-4).
Considerando-se
a construção potencialmente
poligínica do matrimônio, no Antigo Testamento pode-se falar de infidelidade sexual
apenas quando uma mulher casada dorme com um homem que não seja seu marido. A infidelidade é
sempre qualificada como adultério. A única narração detalhada de um adultério é
a de Davi com Betsabeia (cf. 2Sm
11,1-27). Tamar é
acusada disso, embora não tenha desfrutado da lei do levirato por parte de Judá (cf. Gn 38,6-11).
A
autora estuda a formação do harém, devido a uniões régias
interessadas em tecer relações políticas (cf. Davi e Salomão). As mulheres
do harém podem desempenhar papéis políticos importantes
(cf. Betsabeia). Salomão viola os ditames da Torá referentes ao
rei, exibindo poder e pompa excessivos. Et 1 e 2 mostram o rígido cerimonial
que rege a vida do harém e o processo de recrutamento das
meninas: o único critério é a beleza.
Irmtraud estuda os textos sobre amor pago
ou prostituição. Recorda-se
a proibição aos sacerdotes de se casarem com uma prostituta. Os textos
jurídicos tratam de situações especiais que regulam a prostituição e seus
proventos, enquanto os textos narrativos falam de frequentações de prostitutas
por parte de homens (famosos). Nos textos proféticos, o tema é frequentemente
incluído tanto nas metáforas quanto na ameaça de punição (cf. Am 7,17). 1Re
3,16-28 narra o julgamento salomônico entre duas prostitutas que lutam por um
filho.
Muitas
vezes, a paternidade não
pode ser determinada com precisão. Jefté é
filho de uma prostituta e foi abandonado por seus familiares (Jz 11,1). Js 2
fala de Raab e de sua
integração social, tornando-se depois mãe de Boaz e entrando na genealogia de Jesus (cf. Mt 1,5). Existia uma prostituição cultual, com
prostitutas sagradas também (cf. 1Re 15,12ss, em que se narra que o rei Asa as elimina; 2Re 23,7 menciona
uma casa no templo dedicada aos qedešim – diz-se assim cinco
vezes nas pp. 120-121 –, prostitutas sagradas de ambos os sexos). Sobre os
homens lascivos, falam Jr 5; Os 4,11-14; Am 2,7.
Sansão encontra uma mulher “justa” em Tamna – Jz 14,3: é assim que a
autora traduz, e não com “que eu gosto” – para provocar um conflito militar, e
essa intervenção vem também de YHWH (v. 4). Sansão vai também ao encontro de
uma prostituta em Gaza (Jz
16,1) e depois de Dalila (cf.
Jz 16,4). Sansão representa para Irmtraud o
homem que vive sua sexualidade de forma a não se deixar vincular: “Um
clássico playboy, sexualmente, mas também politicamente, mas cuja
predileção pelas mulheres venais acaba por se tornar fatal” (p. 124).
Por
fim, a autora recorda o abuso do álcool e sua relação
com a sexualidade. O álcool pode favorecer um ambiente
agradável para viver o sexo, mas pode tornar a pessoa agressiva, licenciosa,
induzir à promiscuidade (Os 4,11-14), produzir a perda do autocontrole e a
incapacidade de realizar o ato sexual. Seu abuso arruína as famílias e leva a
comportamentos antissociais (1Sm 25,36: Nabal).
·
Sexualidade e festa
O
capítulo oitavo fala da relação entre sexualidade e festa,
afirmando que sexualidade é festa (pp. 127-136). O prazer inebriante de uma
união sexual é bem ilustrado pelo Cântico dos Cânticos. Elogia-se o amor
novo e inebriante de dois jovens, dos quais nenhum vínculo matrimonial é
mencionado.
A união sexual não é apenas genitalidade, mas também abrange todo o mundo das pessoas,
implicando uma festa para todos os
sentidos. No livro, fala-se do tato, da audição, do olfato (com toda uma
série de referências a perfumes e bálsamos), da visão. Não se deseja apenas
“provar repetidamente o prazer sexual, mas sim o desejo de permanecer
constantemente no clima de felicidade com a pessoa amada e de experimentar
sua unicidade (2,3,
6,9)” (p. 131).
A
autora se debruça para descrever a figura dos amantes do Cântico dos Cânticos, descritos entre o
desejo ardente e a satisfação. Trata-se de textos de alto teor erótico,
exaltando o amor sexual e a intimidade pessoal. É fonte de espanto – nascido
sobretudo apenas a partir do século passado – que um livro da Bíblia seja inteiramente dedicado
à sexualidade realizada sem um contexto conjugal. Hoje, aprecia-se sem falsos
pudores esse elogio da sexualidade
humana, depois de séculos de interpretações marcadas pela alegorização
(amor entre Deus e a alma, a Igreja etc.). Os cânticos são postos na boca tanto do homem quanto da mulher, que se descrevem com admiração
mútua e sem sentir nenhuma vergonha pela nudez assumida.
·
Violência sexual e sexualizada
O
capítulo nono é dedicado à análise da violência sexual e sexualizada nos textos narrativos
(pp. 137-162). Irmtraud distingue
sobretudo o assédio sexual da denúncia sexual. Com o primeiro, “entendem-se
ações importunas cujo objetivo principal não é extorquir atos sexuais com a
violência, mas podem servir tanto para iniciá-los – embora de modo inadequado –
quanto para degradar o gênero de uma pessoa. A denúncia sexual, por outro lado,
refere-se à difamação de uma pessoa, acusando-a de atos sexuais que não
cometeu” (pp. 137-138).
Uma
vítima masculina de violência sexual é José pela mulher de Potifar (Gn 37). A autora afirma que José não é jogado na
prisão, mas colocado em uma casa de custódia de “prisioneiros políticos”, ou
seja, personalidades importantes que caíram em desgraça. José sofre um assédio
contínuo no local de trabalho, que no fim degenera em denúncia sexual por se
recusar a obedecer. Se fosse uma escrava, teria sido estuprada, e ninguém teria
vindo em seu auxílio.
Um adultério rejeitado seguido de
uma denúncia sexual é o narrado em Dn 13, a história deuteronômica de Susana. A versão mais antiga da
Susana é mais curta. É “uma narrativa hierárquica que retrata a comunidade
representada por Susana (chamada de ‘a judia’ em Dn 13,22) nas mãos de chefes
imorais da comunidade” (p. 141). Os dois voyeurs são juízes,
mas não necessariamente anciãos. Na versão de Susana, falta a oração de Susana, e Susana não é representada como
“uma pessoa cumpridora da lei, segura de si e incorruptível, que está disposta
a enfrentar sua morte inocentemente de olhos abertos, mas sim uma mulher
intimidada e abatida que invoca seu Deus apenas no pânico antes da execução da
sentença. No entanto – continua a autora – a narração de ambas as narrativas
leva ad absurdum a prática judicial da falta de separação das
funções individuais no tribunal e expressa uma crítica social de que as mulheres são gravemente desfavorecidas no
tribunal, especialmente quando os anciãos que devem pronunciar o juízo
são réus” (p. 144).
Nm
5,11-31 relata uma denúncia sexual de outro tipo. É o ordálio do ciúme. “Trata-se aqui de um
duplo caso legal em que um marido acusa sua mulher de adultério, que é culpada ou inocente
[...] O procedimento conclui expressamente com a observação de que, seja qual
for o resultado, o marido é irrepreensível [...] Esse ordálio do
ciúme certamente é uma das leis mais misóginas de todo o Antigo Testamento” (p. 145), afirma
indignada a autora. Basta o ciúme do homem para criar uma má imagem pública da
mulher no templo. O casamento provavelmente já fracassou, e o homem quer se
livrar da mulher sem um divórcio e acordo correspondentes.
A coerção sexual implica sempre o constrangimento físico, psicológico
ou jurídico e difere do estupro pela
ausência de força física bruta. Como exemplo de coerção sexual, a autora estuda
2Sm 11 (o episódio de Davi e Betsabeia). O estupro encontra
dispositivos legais em Dt 22,23-29. Não há estupro se ocorrer na cidade, mas o
dado narrativo diz o contrário. Gn 34,1ss fala da violência sexual contra Dina. A autora lembra como Siquém a sequestra, dorme com ela
e não tanto a “estupra”, mas a “priva dos direitos civis” (*’nh) - como
traduz a autora.
Eloquente
é o relato da violência praticada por Amnon contra sua meia-irmã Tamar, filha de Davi (2Sm
13,1-22). A conclusão é a perda dos direitos civis (Tamar rasgará a túnica
enquanto caminha pela cidade). Tamar volta para a casa de seu meio-irmão Absalão, que vai vingá-la. Amnon
também implementa uma estratégia de culpabilização da
vítima. O fato gerará a
desavença entre os irmãos, e a história se tornará uma recordação
perigosa que não permite que o infrator e seus cúmplices saiam impunes
e revela uma estratégia de encobrimento.
Vários
textos jurídicos vetam o incesto e
as relações sexuais com parentes próximos por via matrimonial (cf. Lv 18; 20;
Dt 27,20-23). Em Gn 35,22, encontra-se a brevíssima nota sobre o incesto
de Rúben, que se une
a Bala, a concubina de seu
pai. Pode haver uma menção no fato de Abraão apresentar
Sara como sua irmã,
na realidade como sua meia-irmã, o que, segundo Abraão, removia o impedimento
incestuoso ao matrimônio (cf. Gn 20,12). A problemática do incesto é tematizada
em Gn 38 em relação a Judá e Tamar, a quem foi negado um marido de
acordo com a lei do levirato.
Gn
19,30-38 narra detalhadamente o incesto de Ló com suas duas filhas. A autora nota a ausência da mãe e
recorda a suspeita de que a iniciativa deva ser inequivocamente atribuível às
duas mulheres. O texto não critica de modo algum o comportamento das filhas,
que lutam para ter sua prole de forma nada convencional. Outro caso é o
do terror sexualizado, descrito em Gn 19 (Sodoma) e em Jz 19 (a
concubina do levita). A autora afirma que não se trata de episódios de homossexualidade masculina, mas sim de
atos com os quais se pretende esclarecer quem manda na cidade.
Sexo e gênero como
cenas de combate são apresentados em vários textos. A violência sexual contra as mulheres torna-se
um meio de humilhar seus maridos, pérfida técnica de
guerra, ainda muito utilizada. Jz 20,48 lembra que, para vingar a
concubina do levita, matou-se praticamente tudo o que se movia. É preciso
sequestrar as mulheres em Silo para
fornecer mulheres aos benjamitas. Am 7,10-17 recorda que o profeta anuncia que
a mulher de Amasias será
violentada e sobreviverá exercendo a prostituição. Jz 5,28-30 relata um exemplo
repugnante de violência contra as
mulheres em guerra,
quando a mais sábia das princesas consola a mãe de Sísara, lembrando que sem dúvida os homens que tardam estão se divertindo depois da vitória, estuprando as mulheres, reduzidas apenas à sua parte genital (“útero sobre
útero”).
Alguns
cantos de vitória são cantados por mulheres poupadas da violência porque seus
guerreiros venceram (cf. Jz 5; 1Sm 18,6s; Jdt 15,12-16,17; Ex 15,20s). A cidade vencida é às vezes representada como uma mulher violentada (cf. Is
47,1-3), e a vingança na mesma moeda é invocada com força nos ditos proféticos
sobre os povos (cf. Is 13,16; Lm 4,21).
·
Eros e sexo no imaginário de Deus
O
último capítulo lembra que eros e sexo fazem parte do imaginário de Deus presente no Antigo Testamento (pp. 163-174).
No Antigo Testamento, há a
metáfora do casamento que abrange uma vasta área do imaginário teológico erótico-sexual para
a relação entre o Deus imaginado como masculino e o povo representado como
feminino. A Escritura apresenta também a imagem divina do marido ciumento, que
pune a infidelidade de sua esposa às vezes por meios marciais, mas depois acusa
aqueles que realizaram essa escalada da violência e vinga os crimes com golpes
de retaliação igualmente drásticos.
Um
Deus sexualmente violento e os discursos proféticos de ameaça e julgamento
criam um problema. Em alguns textos, a divindade reage como um marido ciumento
com o divórcio (cf. Jr 3,8) ou com o abandono da esposa (cf. Is 50,1). No
entanto, desde o início, a divindade tem a intenção de recuperá-la.
Outro
grupo de textos, bem mais problemático e amplo, mostra o marido traído reagindo
violentamente à infidelidade da esposa. YHWH pune a mulher com uma vara ou manda outros a castigarem
(cf. Ez 16,23). No contexto das metáforas do casamento em Os 2, o povo e o
país, personificados como mulher, são repudiados sob a acusação de culpa,
utilizando a fórmula oficial do divórcio (cf. v. 4). Athalia Brenner falou de
“pornografia profética”.
Hoje
em dia, esses textos se tornam insuportáveis, afirma Irmtraud, pois apresentam um Deus que age por meio da violência
sexualizada, um Deus cuja história começa com sua esposa infiel que
abusou de seus filhos. Segundo a autora, esses textos “não podem mais ser
mascarados como prova de uma justa punição por parte de um Deus soberano, mas
devem ser designados com os conceitos atuais, pois não se trata apenas de
textos históricos, mas também de textos
canônicos que reivindicam validade ainda hoje” (pp. 165-166).
A
autora analisa Ez 16 e 23, com os atos violentos cometidos por YHWH contra seu povo infiel e o
cálice cheio de ira mencionado em Is 51,17-23. Vários ditos dos povos,
presentes nos textos proféticos, mostram YHWH ameaçando os povos que se
excederam na violência contra Israel a
retribuírem na mesma moeda (cf. Br 4,5-5,9; em Is 13,16 anuncia-se na Babilônia que as esposas serão
estupradas). Alguns textos mencionam o descobrimento dos genitais (cf. Is
47,2s; Jr 13,22.26 e Na 3,5).
Segundo
a autora, uma imagem repugnante é representada por Is 23,15-18, um oráculo
contra Tiro no qual se
anuncia que a orgulhosa e rebelde cidade será obrigada a ganhar a vida
como prostituta durante
70 anos. “Em todos esses textos – afirma a autora – é comum a problemática
explosiva de que eles não apenas refletem as condições dos casamentos patriarcais no
antigo Israel, mas também
pode-se presumir que, em situações de separação, as mulheres – como
frequentemente ocorre ainda hoje – foram expostas à brutal violência masculina, mas também
que, ao longo dos séculos, a violência
masculina no casamento pôde ser legitimada pelo testemunho bíblico de um Deus
violento contra as mulheres” (p. 168).
A
autora aconselha a não eliminar esses textos do uso pastoral, mas a lê-los “como memoria passionis, como textos de
terror que não escondem o grito das vítimas, mas obrigam as comunidades
religiosas a refletirem até que ponto eles legitimam a
violência em geral e
a porem em movimento um permanente exame de consciência para descobrir como
eles também participam do crime de
violência contra as mulheres que se verifica em todo o mundo e até
que ponto são, portanto, cúmplices” (pp. 168-169).
A
estudiosa conclui sua obra com um parágrafo sereno sobre o Deus de Israel apresentado como esposo
ardente de desejo e o matrimônio como
repertório de imagens para a teologia da aliança. Esses textos são o outro lado
da moeda anteriormente representada e são temporalmente posteriores e um
contraponto a eles. A retomada das imagens da esposa pode ser encontrada no
primeiro Deutero-Isaías do
tempo do exílio; a da esposa e do esposo sobretudo no Trito-Isaías pós-exílico. Is
49,14-21 e 54,1-8 marcam visivelmente a passagem da imagem da esposa
(provisoriamente) abandonada e sacrificada à da noiva e da mulher acolhida no
casamento.
A
mulher estéril Sião ficará
rica em filhos. A alegria de Sião em 61,10s – e não 62,10s, na p. 170 – também
deve ser lida sob o pano de fundo da vergonha e do insulto. Is 62,1-5
apresenta Jerusalém coroada
com um diadema real, destinatária do afeto e do favor de seu Deus, não mais
abandonada e devastada, mas tornada “senhora” (assim Irmtraud traduz be‘ûlâ). YHWH se compraz de Jerusalém e se casa (b’l)
com a terra. Deus exulta por Sião como
um esposo pela esposa.
Jr
31,2-6 anuncia a reconstrução e a restauração da vida boa mediante uma
declaração de amor. Sf 3,14-17 anuncia a revogação da condenação contra a filha
de Sião, convidada a se
alegrar. Os 2,21ss declara novamente seu amor em uma promessa matrimonial, o
que, no entanto, ele faz igualmente após a separação de esposa amada. O Salmo 45 é um canto descritivo de
uma cerimônia nupcial, que
menciona o rei ungido por Deus, mas também teologicamente, de modo direto, o
rei divino em sua entronização, em uma profusão de joias, vestes preciosas,
perfumes exaltantes, inúmeros convidados e dons preciosos.
A
autora enfatiza que a interpretação alegórica do Cântico dos Cânticos referente ao
amor entre Deus e seu povo encontra excelentes ganchos no texto, pois vários
termos presentes podem facilmente remeter a outros textos que falam da relação
amorosa entre Deus e seu povo. O Cântico,
portanto, pode ser lido em um duplo sentido, e, desde que é canônico, também
foi lido assim. “A chave dessas imagens encontra-se nos textos que
descrevem YHWH e o
povo em uma relação de amor caracterizada por atenções e desejo de unidade” (p.
173).
A
estudiosa recorda que outro aspecto da relação de amor entre Deus e
seu povo,
“que
desconstrói a concepção do casamento patriarcal, entra em jogo metaforicamente
por meio da personificação feminina da Sabedoria. Ela é vista em relação a Deus
como cocriadora preexistente (Pr 8,22-31), corregente (Sb 9,4), amada por Deus
(8,3) e como presença real da divindade entre os seres humanos (Eclo 24,1-22;
cf. Jo 1,14). Mediante a personificação feminina da presença divina, mais
tarde, em Sb 8,2-16, é até possível inverter as relações de poder das metáforas
patriarcais do casamento: Salomão pode
desejar como esposa a mulher-Sabedoria e admirar sua beleza (v. 2), escolhê-la
como companheira (v. 9) e conselheira de governo (v. 10), que lhe dará
prestígio entre o povo, no julgamento e no cenário internacional (vv. 10-15).
Na intimidade de sua casa, o rei pode relaxar entre os braços da
mulher-Sabedoria após cansativas incumbências de governo e sentir com ela
júbilo e alegria (v.16), que lhe conferem um novo vigor para suas tarefas –
todos dons que o prazer do amor é capaz de dar. Portanto, não surpreende –
conclui Irmtraud –
quando, em Eclo 24,12-19, a mulher-Sabedoria é descrita com as metáforas
do Cântico dos Cânticos e é
apresentada com todo o tipo de plantas e árvores esplêndidas, que, com seus
frutos e suas especiarias, convidam ao prazer com todos os sentidos. Como em
uma relação sexual bem-sucedida, o prazer proporciona uma satisfação profunda,
mas a experiência, que encanta todos os sentidos e é esculpida profundamente na
memória, exige ainda mais e aumenta o desejo (vv. 20ss; cf. Ct 8,7)” (pp.
173-174).
Na
conclusão (pp. 175-176), a autora reafirma que a sexualidade determina toda a vida, pode ser vivida de forma
diferente conforme a idade e a possibilidade ou não da fertilidade, e isso
também em idade avançada. O exercício da sexualidade entre os idosos não deve
ser reprimido. De fato, os rabinos relembram: “Três coisas têm algo do mundo
vindouro: o sábado, o sol e a relação sexual” (Ber 57,b, cit. p. 176).
As
notas de rodapé são esparsas, e não está indicada uma bibliografia. O livro se
fecha com o precioso índice das passagens bíblicas (pp. 176-183). Uma obra
verdadeiramente fascinante, rica em dados e em avaliações
exegético-jurídico-sapienciais, escrita com entusiasmo e vontade de exaltar um
elemento fundamental da vida humana, com uma atenção particular para a promoção da figura feminina contra
o enorme poder
patriarcal, do qual – segundo a autora – algumas Igrejas do nosso tempo também
não estão imunes.
Fonte:
Pelo padre Roberto Mela, em Settimana News – tradução de Moisés Sbardelotto,
para IHU
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