quarta-feira, 28 de junho de 2023

A FARSA DO DÉFICIT: O dreno financeiro que paralisa o país

O básico é o seguinte: quando rende mais o rentismo financeiro, ou seja, a aplicação em títulos e diversos “produtos” financeiros, do que abrir uma empresa e realizar um investimento produtivo, o dinheiro flui para onde rende mais: para ganhos improdutivos. Um exemplo: quando o governo eleva a taxa básica de juros (Selic) para 13,75%, este valor será pago pelo governo, aos detentores privados dos títulos da dívida pública, basicamente os 10% mais ricos da sociedade, usando os impostos que pagamos. Ou seja, esses impostos, em vez de financiarem educação, saúde ou infraestruturas, vão para os grandes grupos financeiros, que aqui chamamos de “mercados”. O Estado não se endividou para construir escolas, por exemplo, ou no Bolsa Família: 82% do aumento da dívida pública resultam de juros acumulados. Sem nenhuma contribuição produtiva, esses grupos drenam anualmente, só nesta modalidade, cerca de 700 bilhões de reais, ou seja, o equivalente a cerca de 7% do PIB. Esses 7% do PIB podiam se transformar em investimentos produtivos, mas para que um dono de um capital vai arriscar na economia real, se pode ganhar 13,75% sem risco e sem esforço? Descontando a inflação, um ganho líquido de 8,5%. 

O endividamento público poderia se justificar se, por exemplo, financiasse um programa de apoio tecnológico à agricultura familiar: resultaria uma produtividade mais elevada, mais produto, cujo consumo por sua vez permitiria o retorno para os produtores, os empresários da cadeia alimentar, e o próprio Estado no imposto sobre o consumo e diversos pontos do ciclo produtivo dinamizado. No nosso caso, o fato de 82% do aumento da dívida resultar de juros acumulados, significa que estamos simplesmente alimentando especuladores financeiros. Segundo pesquisa de Carlos Luque (et al.), “desde 1995 o governo pagou aos detentores da dívida pública o equivalente a 5-7% do PIB ao ano, muito mais do que o déficit das aposentadorias ou outros itens de gastos objeto de muita discussão no Congresso e na mídia”. 

Um dreno improdutivo desse porte necessita de uma narrativa: se trataria de proteger a população da inflação. É uma farsa evidentemente, pois só numa economia sobreaquecida, que precisa ser esfriada, e, portanto, com inflação por excesso de demanda, elevar a taxa sobre a dívida pública seria eficiente. O último ano de crescimento significativo no Brasil foi em 2013, 3%. Numa economia estagnada, transferir mais recursos públicos para grupos financeiros que reaplicam para obter mais juros, em vez de financiar infraestruturas, por exemplo, o que dinamizaria a economia, constitui uma apropriação indébita de recursos públicos. Em 2022 teriam sido entre 600 e 700 bilhões drenados. Para termos uma ordem de grandeza do que esse montante significa, lembremos da batalha parlamentar que foi, em dezembro de 2022, obter no Congresso a autorização de 145 bilhões, com a PEC da Transição, para enfrentar situações mais críticas da população. Esse montante representa aproximadamente 1,5% do PIB, próximo do custo do Bolsa Família, que financia 21 milhões de famílias. A previsão de Fernando Haddad para 2023 é um dreno de 740 bilhões de reais, dreno líquido da capacidade de financiamento do Estado, e principal fator do desequilíbrio fiscal.   

Este desequilíbrio é agravado pelo crédito privado. Os juros praticados no Brasil, para pessoa física e pessoa jurídica, constituem um dreno mais amplo. Pesquisa apresentada em manchete do Estado de S. Paulo, apontava que os juros tiravam 1 trilhão de reais da economia real, em 2016, o que representava na época 16% do PIB. O relatório Estatísticas monetárias e de crédito do Banco Central, de janeiro de 2023, apresenta os dados do volume de crédito privado concedido a pessoas físicas e jurídicas, com um total de 5,3 trilhões, distribuídos em 1,4 trilhão para pessoa jurídica no crédito livre, pagando juros de 23,1% (seriam da ordem de 3% na Europa); 1,8 trilhão concedido a pessoas físicas, com juros de 55,8% (da ordem de 4 a 6% na Europa); e 2,2 trilhões em crédito direcionado. “A taxa média de juros das contratações finalizou o ano de 2022 em 29,9% a.a.” Essa média sobre os 5,3 trilhões concedidos em 2022 daria um dreno da mesma ordem que o de 2016, cerca de 1,5 trilhão, 15% do PIB.   

As pessoas em geral têm dificuldade em “materializar” na sua cabeça o que representa 1,5 trilhão de reais. Mas dividido pela população, 220 milhões, é um custo de 7 mil reais para cada um de nós. Daria também para construir 10 milhões de casas populares. Esse volume de juros extraídos de famílias e de empresas reduz drasticamente o consumo privado e o investimento empresarial, atingindo também o emprego, e contribuindo para a desindustrialização do país. Alguma parte disso volta para a economia? Não temos esse dado para o Brasil, mas o cálculo equivalente nos Estados Unidos, do Roosevelt Institute, é de que são apenas 10%. Mariana Mazzucato, no caso da Grã-Bretanha, calcula 15%. De toda forma, trata-se de um gigantesco dreno improdutivo, que gera as fortunas impressionantes dos bilionários brasileiros que a Forbes apresenta, e também dos grandes gestores internacionais de ativos.  

Esse rentismo institucionalizado é hoje legal, já que uma emenda constitucional no início de 2003 retirou da constituição o artigo 192 que tipificava a usura como crime: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Lembrando que o princípio geral na Constituição reza que “o sistema financeiro nacional, [será] estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade”, aliás única frase, introdutória, que restou do artigo 192. Não se trata de generosidade, pois o dinheiro que o banco nos empresta é nosso, e o dinheiro da dívida pública é dos nossos impostos. As pessoas também não têm visão clara do que é usura, ou agiotagem. Na França, por exemplo, a proibição da usura está no código do consumidor, definida como cobrança de uma taxa de juros que ultrapasse em um terço a taxa média praticada pelas instituições financeiras no trimestre anterior. O exemplo é que um empréstimo entre 3 mil e 6 mil euros, em que a taxa de juros média no mercado é de 7,35% ao ano, não poderá ultrapassa 9,80%. Para um montante acima de 6 mil euros, em que a taxa média anual é de 3,70%, não poderá ultrapassar 4,93% ao ano.    

Importante referir que só no Brasil se usa apresentar as taxas de juros no setor privado como juros mensais. Isso foi herdado da fase da hiperinflação, em que chegamos a variações mensais tão elevadas que os juros também passaram a ser calculados ao mês. A hiperinflação foi derrubada em 1994, mas os bancos continuaram a apresentar a taxa de juros ao mês, o que a torna comparável ao que se cobra no resto do mundo, só que ao ano. Na Constituição, os 12% de juros reais se referiam obviamente a juros ao ano, e a taxa Selic, juros interbancários e sobre a dívida pública, também são calculados como anuais. Um exemplo prático: o Santander mandou para o meu celular essa oferta que transcrevo textualmente: “Santander: Ladislas, ótima notícia p/os momentos de sufoco! A taxa de juros do seu limite da conta caiu p/5.9% a.m., até 31/01/2023.” Não pedi esta oferta, invadem o meu celular, imagino que chegou a milhões, e que muita gente no sufoco poderia achar que é realmente uma “ótima notícia” e se enforcar num empréstimo inicial que nunca vão conseguir saldar. Juros ao mês de 5,9% equivalem a praticamente 100% ao ano (98,95%). O banco trabalha com desinformação, pouca gente saberá calcular o juro composto anual. O Santander é o banco de origem do atual presidente do Banco Central.  

Não à toa temos 79% das famílias no Brasil atoladas em dívidas, trabalhando para pagar juros, e frequentemente apenas alongando a dívida. A inadimplência atingiu 70 milhões de adultos em 2023. É bancarrota pessoal em massa. Não há controle, o Banco Central é “autônomo”, ou seja, controlado pelos grupos que deveria regular. A facilidade com a qual os grupos financeiros se apropriaram da instituição reguladora, tão importante para que os recursos financeiros sirvam à economia, e não o contrário, lembra muito a facilidade com a qual conseguiram tirar o artigo 192 da Constituição: não precisaram de Constituinte, apenas se apoiaram nos interesses financeiros dos próprios deputados e senadores, também aplicadores financeiros. Lembrando que entre 1997 e 2015, as corporações foram autorizadas a financiar as campanhas eleitorais; apenas no final de 2015 o STF se deu conta de que o artigo primeiro da Constituição, “todo poder emana do povo” tinha sido violado, e a autorização foi revogada. Mas o mal já estava feito. Nos Estados Unidos, onde autorização semelhante foi adotada em 2010, e segue em vigor, os americanos comentam que “temos o melhor congresso que o dinheiro pode comprar”. O Banco Central é hoje uma ferramenta na mão das elites financeiras.   

A agiotagem atinge igualmente, se bem que em menor medida, as pessoas jurídicas. A mesma nota do Banco Central, Estatísticas Monetárias e de Crédito, mostra um estoque de créditos de 1,4 trilhão de reais, com uma taxa de juros média em 2022 de 23,1%. No resto do mundo esse tipo de crédito é da ordem de 3%. Na China é de 4,6% ao ano, o que descontando a inflação de 2% significa um juro real de 2,6%. Os juros pagos pelas empresas, em particular a pequena e média empresa – as grandes corporações têm outro nível de negociação – representaram em 2022 cerca de 320 bilhões de reais, 3,2% do PIB. A empresa no Brasil tem assim um triplo desestímulo ao investimento produtivo: as famílias estão endividadas, e a demanda está travada; tomar empréstimo nos bancos é proibitivo, pela taxa de juros cobrada; e existe a alternativa de usar o seu capital para comprar títulos da dívida pública, com rendimento sólido e sem risco.  

A parte do dreno financeiro ligada aos juros apresenta assim um triplo travamento da economia: O Estado perde grande parte da sua capacidade de investimento, o que significa uma fragilização das políticas sociais e dos investimentos em infraestruturas; as famílias desviam grande parte da sua já restrita capacidade de compra para pagamento de juros, o que fragiliza o principal motor da economia, que é o consumo das famílias; e o país de desindustrializa, com o desestímulo estrutural das atividades produtivas. É importante reiterar que o último ano de crescimento significativo do Brasil foi 2013, 3%. De lá para cá, apenas tivemos uma aparência de crescimento em 2021 e 2022, simples recuperação da recessão de 2020, com a Covid-19. O dreno dos recursos públicos é da ordem de 7% do PIB, o das famílias é da ordem de 10% do PIB, o das empresas da ordem de 3%. Estamos falando de 20% do PIB, dinheiro que poderia ser investido. Faz parte do que Mariana Mazzucato chama de “extractive capitalism”, capitalismo extrativo.   

O sistema de juros extorsivos vimos acima constitui um dreno que trava o investimento do Estado, o consumo das famílias e as atividades produtivas. É dinheiro retirado do circuito econômico produtivo, do que hoje chamam de “economia real”, para favorecer corporações financeiras. Mas outra forma de travamento da economia está ligada a dinheiro que não é drenado, mas que deixa de entrar. Trata-se da evasão fiscal. O Sinprofaz, Sindicato dos Procuradores da Fazenda, estima que “no período de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2022, o prejuízo do país com a sonegação fiscal alcançará os 626,8 bilhões de reais.” O Sinprofaz lembra que são recursos que, se tivessem entrado no caixa do governo, poderiam ser revertidos em políticas públicas. São cerca de 7% do PIB. As pessoas comuns não têm como praticar a evasão, ou porque são assalariadas, e têm desconto na folha, ou porque são consumidores: a massa da população gasta o essencial com compras e paga os impostos incorporados no preço. Já temos aqui, somando o serviço da dívida pública, cerca de 7% do PIB como vimos, e a evasão, por baixo, um dreno da ordem de 14% do PIB, fragilizando o Estado. Lembremos que o Bolsa Família representa cerca de 1,5% do PIB.  

Outro recurso que deixa de entrar para o Estado resulta das renúncias fiscais. Segundo informe da Câmara dos Deputados, “as renúncias de impostos concedidos pela União a parcelas da sociedade devem chegar a R$ 456 bilhões em 2023, ou 4,29% do Produto Interno Bruto (PIB). O total é um pouco superior ao que o governo gasta anualmente com o pagamento de pessoal”. Aqui também se trata de grupos que utilizam, como todos nós, recursos públicos (universidades públicas, ruas asfaltadas etc.), mas que não pagam impostos. Não é propriamente vazamento, é dinheiro que deixa de entrar. Com uma carga tributária da ordem de 34%, o problema nosso não é de falta de recursos, e sim de para onde são canalizados, e isso inclui o não pagamento do imposto devido.  

Alguns drenos são mais escandalosos que os outros. Mas de forma geral, o que chamamos de elites, uma colusão de bilionários nacionais com as grandes corporações transnacionais, usam o Estado (que criticam) para se apropriar dos seus recursos, e para que facilite a apropriação improdutiva dos recursos das famílias e das empresas. Até aqui temos, como ordens de grandeza, e com variações na composição segundo os anos, 6% a 7% do PIB drenados pela dívida pública, cerca de 6% por evasão fiscal, mais de 4% por renúncias fiscais, e cerca de 13% do PIB por juros extorsivos sobre o setor privado (10% sobre famílias e 3% sobre pessoas jurídicas). Ou seja, por dreno do que entrou, por não entrada do que é devido, e por agiotagem, o desequilíbrio é da ordem de 30% do PIB. Não à toa a economia está estagnada. Se o PIB não apresenta números ainda mais fracos, é porque lucros financeiros – rentismo sem contribuição produtiva – e exportações de bens primários aparecem como “produção”, apesar de constituírem drenos.  

Aos drenos baseados em juros, bem como na evasão e renúncias fiscais, temos de acrescentar a política tributária. Na Europa, por exemplo, a tributação permite corrigir parcialmente os desequilíbrios, cobrando mais dos que mais recebem, com política de tributação progressiva. A nossa, pelo contrário, é regressiva, cobrando proporcionalmente mais dos mais pobres, e agravando os mecanismos vistos acima. Para um país que tem a desigualdade como principal entrave ao desenvolvimento, isto é catastrófico.   

Desde 1995, lucros e dividendos distribuídos, no Brasil, não pagam impostos. Ou seja, os 290 bilionários que aparecem na Forbes de 2022 são isentos de impostos, com a justificativa de que as empresas que possuem já os pagaram. Naturalmente, a capitalização da empresa e o enriquecimento dos seus acionistas, como pessoas físicas, são coisas diferentes, mas o resultado é que os muito ricos simplesmente são isentos. Eu, como professor universitário, pago 27,5%. Com a aprovação da isenção em 1995, não pagar impostos sobre lucros e dividendos se tornou legal.  

No caso do imposto territorial, o ITR (Imposto Territorial Rural), está vigente a obrigação, mas o imposto simplesmente não é cobrado, resultado do peso político do agronegócio, tanto na sua dimensão moderna corporativa como na dos latifúndios tradicionais herdados do passado. Caberia aqui acrescentar a grilagem, totalmente ilegal, mas tolerada. A não cobrança do ITR favorece a posse improdutiva da terra, visando enriquecimento patrimonial. Isso não é lucro sobre produção, e sim rentismo imobiliário, que reforça a gigantesca subutilização do solo agrícola. Lembremos que o censo agropecuário de 2017 mostra que temos 353 milhões de hectares de estabelecimentos agrícolas, mas que somando a agricultura temporária e permanente, o uso efetivamente produtivo do solo é de somente 63 milhões de hectares. 

O mesmo peso político (nacional e internacional) das grandes corporações permitiu que a produção destinada à exportação não pague impostos. Trata-se da Lei Kandir, de 1996, que isenta de tributos a produção de bens primários e semielaborados destinados à exportação. Ou seja, com a privatização da Vale, por exemplo, colocando-a nas mãos de acionistas privados nacionais e internacionais, o dreno de minérios, que constituem uma riqueza natural do país, passa a gerar dividendos para acionistas privados, mas não receitas para o Estado. Exportações primárias, nas suas dimensões de mineração e de agronegócio, passam a ter vantagem sobre a produção para o mercado interno. São atividades que geram poucos empregos, muitos desastres ambientais, e maior dependência relativamente aos interesses dos gigantes mundiais de intermediação de commodities. A reprimarização geral da economia que vivemos nos últimos anos, bem como a desindustrialização do país, estão diretamente ligados a esse marco institucional.  

caso do petróleo é particularmente instrutivo. O Brasil controla o ciclo completo do petróleo: a tecnologia, a extração, o refino, a distribuição, a indústria petroquímica. Mas antes de tudo o petróleo está em território nacional, é uma riqueza da nação. Países que não têm petróleo são obrigados a pagar os preços internacionais. Mas o Brasil, que controla o ciclo completo, não tem nenhuma razão para se submeter às variações de preços internacionais, que resultam de escolhas políticas de um grupo restrito de corporações. A privatização parcial da Petrobrás, ao colocar o controle da empresa nas mãos de acionistas nacionais e internacionais, equivale a uma desnacionalização. Os lucros que anteriormente financiavam reinvestimento na empresa e políticas públicas se transformaram em grande parte em dividendos, eles mesmos isentos de impostos. Trata-se de uma apropriação de bens públicos, em nome da eficiência e da luta contra a corrupção. A população que agora paga o dobro pelo botijão de gás ou para encher o tanque do carro está alimentando acionistas, essencialmente grupos financeiros.  

Seria um desafio importante calcular quanto se perde pelos impostos não pagos, somando a isenção de lucros e dividendos distribuídos, as perdas que resultam da lei Kandir, o ITR não aplicado, ou a elevação de preços de derivados do petróleo que elevam os custos de vida da população e os custos de produção das empresas – o custo da energia penetra inúmeros setores e generaliza elevações de preços – sem contribuição produtiva correspondente. Somando os drenos, pelos juros sobre a dívida pública, a evasão fiscal, a agiotagem bancária, as renúncias fiscais, a isenção de lucros e dividendos, a isenção de exportações primárias (lei Kandir), e o não pagamento do ITR, e mesmo considerando que uma parte dos ganhos financeiros volta para a economia real (os 10% a 15% mencionados acima), o fato é que o conjunto inviabiliza a economia do país. Hoje apenas funcionam o setor de exportação primária e o mercado financeiro, cujos números mascaram a paralisia econômica.

Os chamados “mercados” e a direita em geral clamam pelo equilíbrio fiscal, ou seja, limitar os ‘gastos’ com educação, saúde, infraestruturas e semelhantes, na realidade investimentos nas pessoas e na economia real, enquanto geram exatamente o déficit ao drenarem os recursos do setor público, das famílias e das empresas produtivas, em proveito de lucros sobre exportações primárias e intermediação financeira, que chamam de “investimentos”. Afirmar que uma elite improdutiva desvia 25% da economia real é hoje uma conta conservadora. Lembremos que a fase distributiva do país, de 2003 a 2013 (a ofensiva neoliberal já começou em 2014), assegurou empregos, alimentação e um crescimento médio de 3,8% ao ano, mesmo com a crise mundial de 2008. O desafio que temos pela frente, é o de reorientar os nossos recursos para a economia real, maior consumo das famílias, maior investimento produtivo das empresas, e expansão das políticas sociais e infraestruturas por parte do setor público. Quem paga por isso? É só reduzir moderadamente o dreno dos improdutivos.      

Não se trata aqui apenas dos lucros exorbitantes do 1% de improdutivos. O rentismo beneficia sem dúvida o 1% ou 0,1% que detém o grosso das aplicações financeiras (que chamam de “investimentos”), mas também gerou uma classe-média-alta que em outros tempos investiriam em empresas efetivamente produtivas, produzindo sapatos, manteiga ou bicicletas. Hoje, como rende mais fazer aplicações financeiras, com risco zero e pouco trabalho, o capital que um dia já foi produtivo migrou para o rentismo improdutivo. A desindustrialização do país está diretamente ligada ao redirecionamento das poupanças para aplicações financeiras em vez de investimentos produtivos.  

Com isso gerou-se uma forte camada social privilegiada que clama por juros altos e rendimentos financeiros os maiores possíveis, formando uma base política mais ampla que trava as reformas necessárias: uma classe média-alta rentista. Em outros tempos abririam uma empresa, gerariam produtos, empregos, lucros e impostos. Hoje são “investidores”. Grande parte dos políticos tem os seus recursos em aplicações financeiras, e se tornam interessados no sistema. Em termos de rigidez política contra a modernização do país, temos assim os interesses do 1% nacional, associados aos grandes gestores internacionais de ativos financeiros e traders de commodities, uma classe média alta que lucra com aplicações financeiras, e uma classe política no sentido amplo, envolvendo a grande mídia. Em termos de apoio popular mais amplo, temos de acrescentar o uso político da religião por igrejas pentecostais e o forte poder de disseminação de ódio e de polarização política das mídias sociais.   

O quadro macroeconômico que aqui apresentamos vai muito além do “tripé” tão falado, superávit primário, câmbio flutuante e meta de inflação. Em termos gerais resume o dreno financeiro que assola o país, que provoca paralisia econômica, uma tragédia social e dramas ambientais, mas que gera também suficientes recursos no topo da pirâmide social para travar as mudanças institucionais necessárias. O fato é que a Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, foi parcialmente desativada, não porque “não cabe no orçamento”, mas porque não cabe nos interesses das corporações nacionais e internacionais associadas. A macroeconomia que interessa ao país precisa adotar um “tripé” que funcione: renda básica, políticas sociais e garantia de emprego.  

Não é jogo de palavras. Mais renda na base da sociedade gera demanda, e as empresas passam a ter para quem vender. Isso por sua vez gera mais produção e mais empregos. Tanto o consumo que aumenta como a atividade empresarial que aumenta rendem mais recursos para o governo, cobrindo o déficit, não apertando o cinto dos pobres para “reduzir gastos”, mas dinamizando a economia para aumentar as entradas. Isso permite que o governo expanda o ciclo com mais políticas sociais e ambientais, e melhores infraestruturas. E os bancos poderão ganhar mais dinheiro, com juros mais baixos e volumes maiores. É o círculo virtuoso. Não há mistérios quanto ao que fazer, mas o financiamento produtivo envolve a redução radical do dreno dos improdutivos. As empresas poderão ganhar dinheiro, mas investindo os recursos de forma útil para a sociedade. Lembrando uma vez mais que esses recursos, tanto os dos impostos que pagamos, como dos depósitos nos bancos, são nossos. Os recursos naturais também. Não basta que o seu uso seja legal, precisa ser legítimo.  

·         NOTA METODOLÓGICA 

O presente artigo, mais uma nota técnica do que um artigo, visa aproximar números normalmente apresentados separadamente, com fontes dispersas, mas que, no entanto, se referem a uma dinâmica comum, o fluxo financeiro integrado. Em outras palavras, para onde vai o dinheiro. A diversidade das fontes representa uma fragilidade, por empregarem metodologias diversificadas. E a análise deveria ser estendida: por exemplo, as perdas causadas pela não cobrança de imposto sobre lucros e dividendos distribuídos poderiam ser estimadas, tomando como referência a média cobrada nos países da OCDE. É o caso também da não cobrança do ITR, que deveria ser estimada ao confrontar alíquotas e a imensidão das terras paradas ou subutilizadas. A lei Kandir que isenta exportações primárias também gera perdas que deveriam ser quantificadas. Os desvios para paraísos fiscais, montantes canalizados pelos nossos grandes bancos, poderiam ser avaliadas. Os custos de se utilizar o dólar e não as moedas dos países parceiros, no comércio internacional, deveriam fazer parte também do que chamamos aqui de metodologia de avaliação do fluxo financeiro integrado. De certa forma, trata-se de acoplar, às contas nacionais tradicionais, formas atualizadas de avaliação, acompanhando a nova fluidez dos fluxos, que resulta do fato da moeda constituir hoje essencialmente uma notação virtual nos computadores, no quadro do high-frequency-trading, sem que os mecanismos de regulação tenham sido atualizados. De toda forma, o volume de desvios evidenciado ao se somar os diferentes drenos já comprova uma deformação sistêmica da arquitetura financeira do país, que se tornou sistemicamente disfuncional.   

Para muitos pouco familiarizados com os mecanismos financeiros que se expandiram nos últimos anos, imagino que fica a dúvida: será realmente tão simples assim, que estão se apropriando dos recursos da sociedade através da manipulação da taxa Selic, da agiotagem no sistema privado de crédito, de evasão fiscal, além de deformação do sistema tributário? A verdade é que o dreno financeiro se tornou descontrolado. E é igualmente verdade que esse sistema é simplesmente imoral. Mas é difícil fazer uma pessoa entender algo, quando os seus interesses consistem em não entender. 

 

Fonte: Por Ladislau Dowbor, no Le Monde

 

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