terça-feira, 30 de maio de 2023

SIMULADOR DE ESCRAVIDÃO ESCANCARA OS PROBLEMAS DO GOOGLE: DINHEIRO E FALTA DE CONTROLE

A escravidão do Brasil é o tema do jogo ‘Simulador de Escravidão’ desenvolvido para aparelhos de celular e disponível para download no Google Play – loja de aplicativos da plataforma que abastece os dispositivos Android. Nele, o jogador age como um senhor de engenho e negocia a compra e venda de negros escravizados, precisando cumprir tarefas como treiná-los, alimentá-los e desenvolver tecnologia para que evoluam em até três níveis  – isto é, gerem mais lucro para o usuário.

O desenvolvimento foi da Magnus Games e ficou disponível na Google Play em 20 de abril deste ano. A empresa é um estúdio russo que possui outros 14 jogos publicados na loja do Google. Todos eles são classificados como “estratégia” ou “simulação”.

No Simulador de Escravidão, o jogo é ambientado no ano 1600, quando o Brasil ainda era uma colônia de Portugal e tinha no tráfico negreiro uma das suas principais atividades econômicas. Lá, o jogador é orientado a contratar guardas para fiscalizar os escravizados. O próprio jogo alerta que eles podem fugir ou começar uma rebelião. Logo no começo uma mensagem avisa: “se os escravos iniciarem uma rebelião, os guardas tentarão suprimi-la. Parte dos que querem fugir também se juntará aos rebeldes. Se os guardas conseguirem suprimir a rebelião, alguns dos escravos morrerão. Se os rebeldes vencerem, muitos de seus escravos escaparão”.

O dinheiro ganho pelo senhor de engenho também deve ser usado, segundo o próprio  tutorial ensina, para subornar “funcionários” para frear o progresso da abolição da escravatura. O jogador perde a partida se a escravidão for abolida. No Brasil, isso aconteceu só em 1888 – fomos o último país das Américas a abolir a prática.

Antes de iniciar o jogo, o estúdio que desenvolveu a simulação inseriu uma notificação dizendo que o jogo foi criado “exclusivamente para fins de entretenimento”. “Nosso estúdio condena a escravidão em qualquer forma. Todo o conteúdo do jogo é fictício e não está vinculado a eventos históricos específicos. Todas as coincidências são acidentais”, diz recado.

Apesar de desenvolvido por russos, o jogo recria o cenário da escravidão que devastou por séculos países da costa africana. São colocados três tipos de escravizados: os trabalhadores, representados por homens negros acorrentados pelas mãos, pés e pescoço; os gladiadores, homens negros de pele mais clara com espada na mão; e as cortesãs, com mulheres hiperssexualizadas em trajes curtos – há ainda uma fase do jogo que as indica em locais como bordeis, danças exóticas e clube de elite. Cada tipo de escravizado tem um valor específico no mercado virtual e “seus preços mudam constantemente”, avisa o desenvolvedor.

•        Dinheiro real para os desenvolvedores

A escravidão como “entretenimento” rende dinheiro real aos criadores da plataforma. O jogo é recheado de anúncios, mediados pelo Google, que repassa parte do valor aos criadores.

A anuência do Google não fere apenas o artigo 287 do Código Penal, que qualifica o crime de apologia, mas suas próprias políticas de publicação – como é praxe na empresa. É proibido, segundo a companhia, a publicação de jogos ou aplicativos que “promovam a violência ou incitem ódio contra indivíduos ou grupos com base em raça ou origem étnica” ou “outras características associadas à discriminação sistêmica ou à marginalização”.

As políticas da plataforma também proíbem jogos que “retratem ou promovam violência gratuita ou outras atividades perigosas” ou “apps que lucrem com ou sejam insensíveis a um evento sensível com impacto social, cultural ou político significativo”. Nada disso foi levado em consideração ao manter disponível ao público um jogo que retrata, inclusive com violência física, o horror da escravidão.

O Google ainda aponta em suas políticas de “conteúdo prejudicial à crianças” que não são permitidos “apps com violência e sangue excessivos” ou “apps que retratam ou incentivam atividades nocivas e perigosas”. O jogo, que possui mais de mil downloads, é de classificação livre.

Questionado no Twitter sobre a manutenção do jogo em sua plataforma, o perfil do Google Play respondeu que “entende a preocupação” do usuário que fez a publicação e que “trata as denúncias muito seriamente”. O tuíte deixa um link para que pessoas denunciem o jogo – “assim”, o Google diz, “nosso time poderá investigar”.

Perguntamos ao Google quais de suas políticas de publicação de aplicativos os jogos violavam, quais eram os recursos de detecção de discurso de ódio ou violência que a plataforma possui, se a empresa concorda com a retratação dada ao tema da escravidão e se a empresa está de acordo com a classificação etária livre aplicada aos títulos. Os títulos foram retirados do Google Play, mas nossos questionamentos não foram respondidos até a publicação da reportagem.

O desenvolvedor parece não ter sofrido nenhum tipo de penalidade pela empresa. Os outros jogos da Magnus Games continuam ativos normalmente na plataforma.

O jogo, além de violar as políticas da própria plataforma (não é autorregulação que elas querem?), também viola a lei – e pode ser considerado apologia à escravidão. Ficou mais de um mês no ar, foi baixado mais de mil vezes, tinha classificação livre – ou seja, poderia ser jogado por crianças de seis anos – e era liberado para rodar anúncios. Ou seja: gerar dinheiro para o Google e para o desenvolvedor, que, aliás, continua com outros jogos na plataforma.

Que tipo de punição um desenvolvedor racista deve enfrentar? E uma plataforma que foi conivente com esse tipo de aplicativo? E se ninguém tivesse chamado a atenção para o jogo? Por quanto tempo ele continuaria rendendo cliques, downloads e resenhas positivas de outros racistas na plataforma? Não à toa, o caso foi usado pelos defensores do PL 2630, o PL das fake news, para chamar a atenção para a necessidade de regulação das redes. “A própria existência de algo tão bizarro à disposição nas plataformas mostra a urgência de regulação do ambiente digital”, disse o deputado Orlando Silva, do PC do B, relator do projeto. Ele também afirmou que entrará com uma representação no Ministério Público por crime de racismo, prometendo levar o caso “até as últimas consequências”, de preferência “a prisão dos responsáveis”.

 

       Discurso de ódio: MP investiga usuários do 'Simulador de Escravidão' por racismo

 

O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) investiga, além do Google e do desenvolvedor do jogo de celular "Simulador de Escravidão", os usuários que baixaram o aplicativo na loja virtual Play Store e deixaram comentários racistas e discriminatórios, com discurso de ódio, nas avaliações do app.

O programa simulava que pessoas negras poderiam ser castigadas ao longo das partidas. No jogo, a proposta era que o usuário se passasse por um proprietário de escravos, podendo escolher duas modalidades: tirana ou libertadora. Na primeira, o objetivo era fazer lucro e impedir fugas e rebeliões. Na segunda, lutar pela liberdade e chegar à abolição.

Entre as opções da dinâmica do jogo estão agredir e torturar o ‘escravo’.

O aplicativo foi desenvolvido pela Magnus Games e tinha pouco mais de mil downloads, além de 70 avaliações. Nos comentários, algumas pessoas reclamavam de poucas possibilidades de agressão. Segundo a promotora Maria Fernanda Pinto, responsável pelo caso, existem ferramentas que possibilitam a identificação dos usuários para que eles possam ser responsabilizados criminalmente.

"O que chama atenção são as pessoas que baixaram e comentaram [o jogo], com aspectos muito reprováveis de um racismo muito escancarado e comentários indefiníveis em termos de gravidade e horror, que ferem qualquer parâmetro de civilização. Esse tipo de coisa travestido de entretenimento é ainda pior", avaliou a promotora.

Na última passada, o Grupo Especial de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância (Gecradi) do MP abriu um procedimento preliminar para verificar as circunstâncias da disponilização do aplicativo na loja virtual e quais os termos definidos pelo Google quando o desenvolvedor submete uma aplicação para download. O Ministério Público investiga se houve ou não análise humana no processo.

Disponível na Google Play Store desde abril de 2023, o jogo foi retirado da loja do Google somente no dia 24 de maio, após repercussão em redes sociais e na imprensa. O MP-SP também recebeu cerca de 10 representações com pedidos de apuração.

O Google tem até esta semana para prestar esclarecimentos à Promotoria do caso. Depois, o MP decidirá se irá instaurar um Procedimento Investigatório Criminal (PIC).

Para a promotora Maria Fernanda Pinto, no entanto, não há dúvidas de que houve falha por parte do Google. "A falha da plataforma evidentemente teve porque o aplicativo foi para o ar", disse à GloboNews.

Entre os possíveis crimes a serem investigados estão o crime de ódio e racismo, que são identificados, por exemplo, quando há segregação, discriminação e imposição de hierarquia com fundamento na raça.

O desenvolvedor do aplicativo também será investigado. Uma equipe especializada do MP-SP está apurando se a empresa da Malasia também tem escritório no Brasil, já que o jogo estava em português, e quem é o responsável pela criação e disponibilização na loja virtual. Caso esteja sediada no exterior, será necessário avaliar as relações diplomáticas entre Brasil e o outro país. O Gecradi quer ter acesso ao e-mail que foi cadastrado pelo responsável.

•        Outras investigações

Além do aspecto criminal, o Google também pode ser responsabilizado pelo dano social que causou. A Educafro Brasil — Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes — associação civil sediada em São Paulo, pede indenização no valor de R$ 100 milhões em uma ação civil pública contra o Google registrada no sábado (27), no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

A equipe jurídica da Educafro defende que o dano consiste em racismo estrutural, bem como ofensa à honra.

O Ministério da Igualdade Racial deve se reunir nos próximos dias com representantes do Google. A pasta propôs que seja feita uma ação conjunta com a empresa para a criação de um filtro eficiente para que discursos de ódio, intolerância e racismo não sejam disseminados com tanta facilidade e sem moderação em espaços virtuais.

O Ministério Público Federal (MPF) do Rio Grande do Sul também instaurou um procedimento para acompanhar o caso. Uma representação feita pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) foi protocolada no MPF do Distrito Federal, mas deve ser remetida ao Rio Grande do Sul. No âmbito federal, será analisado se alguém no exterior desenvolveu e/ou baixou o jogo.

A GloboNews procurou o Google, mas até esta publicação ele não havia retornado.

 

       Brasileiros que vivem na Espanha falam sobre episódios de racismo no país em semana de reações aos ataques contra Vini Jr.

 

Os episódios recentes de racismo contra o jogador brasileiro Vini Jr na Espanha não são casos isolados de estrangeiros no país.

O Fantástico conversou com brasileiros que vivem e trabalham em Madri, e os relatos deles revelam um sofrimento em comum, em situações cotidianas como uma simples compra no supermercado. (Veja no vídeo acima).

Maria Santos, historiadora e professora, afirma que não se sente tranquila. Ela relata um episódio em que estava num supermercado e foi abordada por um segurança, quando nenhuma outra pessoa da fila passou pela situação da mesma maneira:

"O segurança se aproximou de mim e me disse 'abre a sua bolsa, por favor?' Eu disse 'como?'... 'Não vou abrir.' Ele falou 'não, mas todos tem que abrir. E é norma do estabelecimento.' Eu falei 'olha, quantas pessoas estão atrás de mim e quantas pessoas passaram na minha frente. Em nenhum momento eu vi você se dirigindo a elas, para que abrissem a bolsa'.

Maria sofreu racismo em outras situações: em uma delas, uma mulher ofereceu lanche na rua para ela e para a filha, mas quando a amiga delas, que é branca, aceitou o lanche, a pessoa não quis entregar, alegando que a doação era só para pessoas necessitadas. Em outro caso de constrangimento, um taxista pediu para tocar no cabelo dela pois estava curioso sobre a textura.

Felipe Domingos, bailarino, conta que na maior parte das vezes percebe o racismo nos olhares. Ele também diz que se sente observado quando faz compras no supermercado e percebe o segurança o observando "de um jeito estranho" e o seguindo.

•        Ausência de lei antirracista

Um estudo de 2020 do governo espanhol indica que o primeiro lugar onde as pessoas de diferentes origens e etnias se sentem mais excluídas é quando se trata de acesso à moradia, em seguida vêm dificuldades para frequentar estabelecimentos abertos como lojas e supermercados.

No entanto, só 20% das pessoas que dizem ter sofrido discriminação formalizaram alguma queixa. Isso porque na legislação da Espanha não tem uma lei específica para combater a discriminação racial.

Antumi Toasijé, historiador presidente do conselho de questões raciais e étnicas do Ministério da Igualdade da Espanha, explica que "o racismo na Espanha tem uma história muito concreta. Podemos dizer que foi a Espanha que, provavelmente, inventou o racismo contemporâneo, o racismo como o conhecemos hoje, por meio dos estatutos de limpeza do sangue".

Na Espanha e em algumas de suas colônias, a partir do século XV, o sistema dos estatutos excluía os não-brancos da sociedade, de profissões consideradas nobres, como no campo da educação e da administração pública.

•        Espanha e Vini Jr.

Para a jornalista espanhola Virtudes Sanchez, o espanhol não tem consciência do que significa o racismo. A jornalista que mora no Brasil há 7 anos conta que não tinha noção de que ela própria tinha atitudes racistas e que só aprendeu sobre racismo convivendo com pessoas pretas. Correspondente de um jornal esportivo no Brasil, ela aponta que o que mais incomoda os espanhóis no caso de Vini Jr. é o fato de o jogador não se calar.

 

Fonte: The Intercept/g1

 

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