POLÊMICA: Shein e
as reflexões sobre o desenvolvimento
Recentemente,
um episódio levou ao debate público o problema da arrecadação. O cenário deixado
por gestões anteriores apresenta diversas empresas gozando de generosas
desonerações fiscais e outras fraudando papelada para escapar dos impostos que
deveriam estar pagando aos cofres públicos. No meio desses casos, destacou-se o
da Shein, empresa varejista chinesa que conquistou o consumidor brasileiro com
preços muito competitivos no mercado nacional. Ocorre que a empresa alcançou
tanta competitividade, impactando na arrecadação, ponto nodal do novo arcabouço
fiscal do governo.
O
ministro Fernando Haddad anunciou o fim da “farra” e gerou diversas reações
entre o público, que não hesitou em reclamar diante da iminente perda de suas
vantajosas compras. Um sentimento compreensível vindo de extratos sociais
(médios e baixos) que passam por dificuldades econômicas nos últimos anos, com
deterioração de sua condição social e perda de poder de compra.
Não
obstante a inquestionável importância do interesse material imediato do
consumidor brasileiro, o problema central que habita essa celeuma, e que está
no cerne da argumentação do governo, consiste num problema ainda mais
relevante, de interesse público: a intrínseca relação entre mercado interno e
desenvolvimento nacional.
Historicamente,
não é nada difícil demonstrar o quanto as duas coisas caminham juntas. Além da
importância da questão da arrecadação, o ponto central é mais crítico: o
desenvolvimento do Brasil em direção ao país que todos (ou quase todos)
queremos passa necessariamente pela proteção à indústria nacional.
Para
dar conta de demonstrar isso, revisitemos alguns dos mais notórios formuladores
do tema, todos associados a bem-sucedidos projetos de desenvolvimento nacional.
·
“A Defesa é mais importante que a opulência”
A
frase acima foi escrita por Adam Smith no seu clássico “A riqueza das
nações” (2017). O autor (um dos fundadores do liberalismo econômico),
em que pese ter tido notórias reservas com o mercantilismo, foi capaz de
reconhecer as virtudes das engrenagens protecionistas na promoção do
desenvolvimento britânico. O primeiro ato desse processo foi a constituição de
um mercado interno capaz de atender às demandas da indústria, o que Smith
analisa na relação entre a expansão das marinhas mercante e de guerra: “Nosso
comércio é a mãe e ama-seca de nossos marinheiros; eles são a alma de nossa
Armada; e nossa Armada é a Segurança e a proteção de nosso comércio: e os dois
juntos são a riqueza, a força, a segurança e a proteção e a glória da
Inglaterra.” (SMITH, 2017, p. 472)
Era
crucial que a Inglaterra mantivesse o controle das rotas de comércio. Toda a
estrutura da indústria, finanças e comércio do Império estava nos mercados e
fontes de matérias-primas ultramarinos – uma vez que a ilha carece de alguns
recursos necessários à indústria. A marinha mercante era tanto um ativo
econômico quanto um elemento indispensável de segurança. Enquanto ativo
econômico, gerava demanda para a indústria naval, primeiro eixo da expansão da
economia.
Essa
história nos interessa para pensarmos do que é feita uma grande potência. O
desenvolvimento de forças produtivas não está circunscrito à prosperidade: é
parte de um plano maior voltado para promover um Estado capaz de resistir às
fricções do sistema internacional, afinal, o primeiro dever do soberano é a
defesa nacional. Sendo assim, de que adiantaria ter prosperidade e não ter
meios de defendê-la?
·
“A liberdade deve subordinar-se aos interesses da
Segurança Nacional”
Ato
contínuo, lembremos de Alexander Hamilton, autor da frase acima e um dos “pais
fundadores” dos EUA, que considerava o problema da “ameaça externa” uma
dimensão fundamental do desenvolvimento econômico de uma nação. Afinal, nenhum
país paira no éter: todas as sociedades estão sujeitas às
contingências do processo histórico, marcado por conflitos. Daí a necessidade
de pensar a política nacional (e, indissociável dela, a economia) dentro do
âmbito de uma estratégia.
É
essa dimensão estratégica que pauta em primeiro lugar as relações entre os
Estados, obrigados a dividir/disputar entre si espaços/recursos limitados num
contexto em que contam exclusivamente com suas próprias, respectivas e
relativas capacidades. Por isso, é necessário considerar as economias nacionais
não apenas em termos de crescimento econômico, mas também como um instrumento
para a independência política, a soberania e a segurança nacional.
Com
efeito, Hamilton entendia que um país jovem como os EUA não poderia competir
com uma nação poderosa e já bem estabelecida como a Inglaterra. Foi por esse
motivo que defendeu alíquotas de importação (até a proibição, se necessário)
para produtos ingleses ou de outros mercados altamente competitivos, determinou
restrições à exportação de matérias-primas sensíveis estrategicamente, além de
subvenções e incentivos para produtores americanos. “Se o sistema de
perfeita liberdade de produção e comércio fosse prevalente entre as nações,
indubitavelmente, teriam grande relevância os argumentos que dissuadem da árdua
empresa manufatureira um país com as condições dos Estados Unidos… Entretanto,
o Sistema que acabo de mencionar está muito distante de caracterizar a política
geral das nações.” (HAMILTON, 1995, pp. 57-58)
Outro
ponto discutido por Hamilton (e presente na argumentação de Haddad, no caso em
tela) é a prática de subsídios ao setor manufatureiro. Apesar de eficiente,
este tipo de medida pode gerar penosas perdas fiscais ao Estado. Hamilton julga
mais adequada a adoção de subsídios indiretos através de uma política
tributária sobre bens concorrentes provenientes do exterior, e que utilizem
matéria-prima nacional como forma de conciliar os interesses dos setores
público e privado (similar ao que propõe Haddad, que já conseguiu da Shein o
anúncio da transferência de parte de sua produção para o Brasil). “A
verdadeira forma de conciliar esses dois interesses é impor uma tarifa sobre as
manufaturas estrangeiras feitas com as matérias primas cuja exploração
deseja-se fomentar e investir os recursos provenientes desta tarifa em
subsídios, seja para produzir a própria matéria prima ou para sua manufatura
nacional.” (HAMILTON, 1995, p. 100)
Hamilton
defendia uma economia diversificada para o fortalecimento dos EUA, e projetava
o país como grande potência mundial no futuro. Mas tudo isso teve um começo
modesto: o incentivo do Estado aos produtores americanos, tornando-os capazes
de sedimentar as fundações de uma poderosa indústria nacional. A chave desse
projeto era a constituição de uma burguesia capaz de articular seus interesses
com o desenvolvimento nacional. Esse compromisso, na prática, era com a
projeção de um Estado forte que, no limite, recompensaria (e muito!) essa mesma
burguesia.
Portanto,
ainda que fosse um liberal, Hamilton entendia, assim como Smith, que “a defesa
é mais importante que a opulência”, pois: “De outra forma, estaremos
colocando nossas propriedades e liberdade à mercê de invasores
estrangeiros.” (HAMILTON, 1995, p. 87)
Em
outro trecho do seu “Relatório sobre as manufaturas”, Hamilton
defendia que: “[…] não apenas a riqueza, mas a independência e a
segurança de um país estavam materialmente conectadas à prosperidade das
manufaturas. Qualquer nação, com vistas a esses grandes objetivos, tem que se
esforçar para encontrar dentro de si mesma tudo o que for essencial ao
suprimento nacional. E isso abarca os meios de subsistência, habitação,
vestuário e defesa. A posse de tais meios é necessária para o aperfeiçoamento
do corpo político, para a segurança e também bem-estar da sociedade.” (HAMILTON,
1995, p. 98)
Outro
importante autor correlato à discussão, Friedrich List, um dos mentores do
desenvolvimento alemão e admirador de Hamilton, defendia que: “Os indivíduos
podem ser muito ricos, mas se a nação não possuir poder para defendê-los, tanto
eles como ela poderão perder, em um só dia, toda a riqueza amealhada por eras,
como também seus direitos, liberdade e independência.” (LIST, 1983, p.
75)
Portanto,
há sinergia entre poder e riqueza. Na ausência dessa harmonia, uma nação jamais
se tornará poderosa, porque o poder produtivo é a chave para a segurança
nacional. Esse poder demanda alto investimento estatal no fomento da
industrialização, de modo a articular a iniciativa privada com a soberania
nacional. Foi esse o modelo de todas as grandes potências, capitalistas ou não.
Seja através de uma burguesia nacional ou de um partido comunista, é
fundamental que o país tenha uma inteligência política dotada de interesse
público para, entre erros e acertos comuns ao processo histórico, conduzir o
processo de desenvolvimento.
·
“Chutando a escada”
Essas
ideias resultaram em poderosas nações industriais, como Inglaterra, EUA e
Alemanha, cujas trajetórias desmentem os modelos liberais ventilados pelo
Consenso de Washington. Tais modelos estão verdadeiramente comprometidos com a
consolidação da assimetria entre as nações centrais e periféricas, onde o
“centro” é ocupado pelos países dominantes na fronteira tecnológica e
detentores de instrumentos de poder para conter o acesso das nações aspirantes
ao desenvolvimento. “É estratagema muito comum dos que atingiram o
ápice da grandeza, chutar a escada que permitiu a chegada ao ponto mais alto
para evitar que outros a utilizem para subir também. Nisso está o segredo da
doutrina cosmopolita de Adam Smith […] como também o de todos os seus
sucessores nas administrações dos governos britânicos. Uma nação que, por meio
de tarifas protetoras e de restrições à navegação, conseguiu que seu poder
manufatureiro e sua navegação atingissem um grau de desenvolvimento tal que
impede que qualquer outra nação possa sustentar uma competição com ela, não tem
nada mais inteligente a fazer do que chutar as escadas que permitiram sua
escalada ao topo, louvar os benefícios do livre comércio para as outras nações
e declarar, em tons penitentes, que, até então, vinha trilhando os caminhos do
erro e que agora, pela primeira vez, havia descoberto a verdade.” (LIST
apud PARET, 2001, p. 306)
Pelo
exposto acima, esse ardil – dos países dominantes proporem o livre comércio
como estratégia de contenção ao desenvolvimento dos demais – é antigo. A
estratégia consiste na promoção do modelo liberal como incontestável junto à
opinião pública, direcionada para buscar interesses cada vez mais privados –
mais renda, mais consumo, crescimento pessoal etc. – segundo uma lógica de
responsabilização individual total e dissonante de qualquer sentido de
solidariedade que possa nuclear um projeto de desenvolvimento nacional. Isso é
especialmente desastroso no Brasil, porque se combina a uma formação social já
pautada pelo domínio do privado sobre o público.
·
“Farinha pouca,
meu pirão primeiro”
Por
trás da polêmica aparentemente trivial da Shein há muito o que refletir sobre o
Brasil, cuja formação sujeitou o público ao privado constituindo aquilo que
alguns autores chamaram de “o problema institucional brasileiro”.
Seguindo
o fio dessa literatura (que abriga nomes como Raymundo Faoro, Oliveira Vianna e
Sérgio Buarque de Holanda), o Brasil seria marcado por uma singularidade, uma
espécie de “pecado original”: uma organização social em que a constituição de
um espaço de sociabilidade não propiciou as condições para gerar laços de
solidariedade. Temos apenas latifúndio, monocultura e escravismo como eixos
civilizatórios, que produziram uma sociedade pautada em um isolacionismo: as
unidades produtivas não dependiam umas das outras, o que dificultou a formação
dos laços de dependência social.
A
reprodução dessa vida material e a organização das instituições resultaram numa
sociabilidade que se estabelecia numa dimensão exclusivamente privada da vida e
carente das condições para a afirmação de uma individualidade socialmente
definida. Esse processo originou forças oligárquicas (centrífugas)
desinteressadas de qualquer projeto nacional, pautadas por uma organização
essencialmente privada: a família patriarcal, constituída a partir dos laços de
intimidade. Essa dinâmica produziu uma tensão, fecunda até hoje, entre a esfera
privada e a esfera pública (MORAIS, 2022).
O
Estado – esfera pública – se desenvolveu em torno dos interesses privados,
articulado pelo privatismo com a ausência de um sentido público. De acordo com
Vianna (1974, p. 127), a formação do povo brasileiro “se processou dentro do
mais extremado individualismo familiar”, sendo o indivíduo brasileiro
“fundamentalmente individualista, muito mais do que os outros povos
latino-americanos. […] No Brasil, só o indivíduo vale e, o que é pior, vale sem
precisar da sociedade – da comunidade”.
A
cultura institucional é característica seminal da modernidade. A ausência dessa
cultura – que, por definição, se traduz na prevalência do público sobre o
privado – pode significar um obstáculo ao bom desempenho das instituições.
Segundo D’Araújo (2010, p. 15), “a cultura cívica […] traduz-se em um recurso
fundamental de poder para os indivíduos e para as sociedades […]”.
Comentando
as diferenças entre o Norte e o Sul da Itália, a partir de um famoso estudo de
caso de Robert Putnam (1996), D’Araújo fez as seguintes observações (2010, p.
16): “Os ditados populares são paradigmáticos para exemplificar essa
cultura individualista […]. Trazendo para similares brasileiros, no Sul
predominam ditados como: ‘Se a barba do teu vizinho pegou fogo, põe a tua de
molho’ (quer dizer, não o ajuda a apagar o fogo, cuida da tua); ‘Quem empresta
não melhora’; ‘Farinha pouca, meu pirão primeiro’, e assim por diante. São
ditos que expressam uma ‘sabedoria’ popular em ser egoísta, em não ajudar os
outros, em desconfiar […].”
A
cooperação social não se limita à racionalidade dos atores e suas relações
bilaterais. A racionalidade pode levar à dificuldade de cooperação a partir de
cálculos auto interessados (egoístas). É preciso, para garantir a cooperação
social, confiança e instrumentos que garantam o cumprimento do acordo pelas
partes. Esses instrumentos são as instituições. Na ausência de boas
instituições, “pessoas racionais não produzem espontaneamente bens coletivos.
Ou, dito de outra forma, o uso da razão não é suficiente para produzir
bem-estar” (ibidem, p. 17). É papel das instituições formatar regras e
previsibilidade para dar segurança e confiança para as relações sociais.
Segundo
Putnam (1996), é a consciência que cada ator social tem do seu papel na
comunidade que irá constituir a cultura cívica. Em uma sociedade constituída
por poucos laços de solidariedade, tende a predominar um “familismo amoral”
(D’ARAÚJO, 2010, p. 32), termo que define “uma incapacidade de cooperar, agir
conjuntamente”, situação típica de sociedades compostas por sujeitos
“prisioneiros de uma cultura que os impede de ir além dos interesses imediatos
da família nuclear”. Tais circunstâncias produzem instituições frágeis, o que
“inviabiliza não só a democracia, como também o desenvolvimento econômico”
(ibidem, p. 32).
·
Construindo a escada
No Brasil, tem sido latente
a carência de visão desenvolvimentista na classe dominante. Isso se reflete em
governos que fracassam em entregar um projeto de desenvolvimento por estarem,
em grande medida, comprometidos com a preservação do status quo. É
nesse sentido que lembramos de Darcy Ribeiro, quando disse que o problema da
educação no Brasil não era um problema, mas um projeto. É a falta de uma
“burguesia nacional” que explica a dificuldade em promover o desenvolvimento e
avançar em direção à soberania real, para além da formalidade jurídica.
É
daí que uma política econômica precisa dar conta do complexo cenário
internacional onde Estados se relacionam sob hierarquias de poder. A força das
nações mais poderosas se sustenta em mercados internos protegidos que garantem
a musculatura industrial capaz de projetar os seus interesses de forma
competitiva ou até dominante. Tudo isso demanda, sobretudo, altíssimos
investimentos no povo, o maior recurso de uma nação, questão atavicamente
ligada ao desenvolvimento de um sistema produtivo robusto.
A
industrialização é uma tarefa histórica, uma etapa imprescindível do
desenvolvimento de uma nação que aspire à soberania. Por isso, há uma
correlação também entre industrialização e estratégia, o que significa que esta
não é uma tarefa que possa ser conduzida pelas forças do mercado: requer
inteligência política determinada e longo prazo. É esse o debate que a polêmica
da Shein precisa levantar.
Fonte:
Por João Rafael Gualberto de Souza Morais, no Le Monde
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