segunda-feira, 29 de maio de 2023

Pacientes relatam cobranças indevidas após ceder senha do plano de saúde

Incerteza acerca de exames solicitados, falta de informações sobre o valor dos procedimentos e a entrega da senha e do login do plano de saúde. Os episódios foram citados por diferentes mulheres, que hoje dizem sofrer cobranças após ceder seus dados a clínicas que se encarregariam de pedir o reembolso pelos procedimentos, o que é ilegal.

As clínicas, por sua vez, afirmam que realizam consultas e exames de forma transparente e detalhada. Além disso, negam que tenham solicitado reembolsos em nome de clientes, uma prática que se tornou alvo da Justiça.

A analista financeira Éricka Toni, 41, diz se sentir preocupada desde que a filha de 19 anos foi a uma clínica na região de Moema, zona sul da capital paulista, à procura de uma consulta com nutricionista.

Em julho do ano passado, a estudante foi à iHealthy, por indicação de uma amiga, para se tratar usando o convênio da mãe, titular do plano. Lá, de acordo com a mãe, foi orientada a assinar um termo cedendo à clínica o direito ao valor do reembolso do plano de saúde.

O local, ainda segundo a analista, solicitou o reembolso ao convênio com os seus dados. Ao saber do ocorrido, ela trocou a senha de conta do plano, que negou os pedidos. Depois, ela diz ter recebido uma cobrança de R$ 4.000 por exames de sangue e outra de R$ 600 pela consulta.

"Precisei pagar a consulta porque colocaram minha filha no Serasa", afirma Éricka. Segundo ela, a filha realizou exames antes mesmo de passar por uma avaliação médica e recebeu indicação de uma dieta inadequada. "A dieta tinha glúten e minha filha é celíaca [doença causada pela intolerância ao glúten]."

A filha, acrescenta ela, nunca havia ido sozinha a uma consulta médica e, na época, não suspeitou de possíveis irregularidades.

A iHealthy dispõe de oito unidades no estado de São Paulo, sendo uma delas em São Caetano do Sul. Esta da cidade do ABC motivou a queixa de outra outra consumidora, que preferiu não se identificar.

A jovem diz ter ido até o local em outubro do ano passado, depois de ver boas avaliações da clínica na internet. A oferta do reembolso assistido, segundo ela, ocorreu em uma sala separada, onde afirma ter se sentido pressionada a assinar os documentos de cessão de crédito.

Desconfiada, ela decidiu trocar a senha de sua conta do plano de saúde. Porém não foi rápida o suficiente para evitar problemas. A jovem afirma que ainda hoje é cobrada pelos procedimentos.

À Folha a iHealthy diz que "não há reembolso auxiliado/inteligente, pois é o próprio paciente que solicita o reembolso do seu aplicativo" e também que "os pacientes pagam os procedimentos, na maioria das vezes".

O CEO da empresa, Rodolpho Paiva, afirma que, em alguns casos, pacientes são apresentados à opção de pagamento via empréstimo, feito em parceria com um correspondente bancário, o Healthban.

Esse empréstimo, segundo ele, é utilizado para quitar o serviço da clínica, que é corresponsável pela transação. A quantia reembolsada pelo convênio, acrescenta Paiva, é usada para pagar a instituição financeira.

Segundo o Helthban, aberto em janeiro deste ano, a relação "com seus parceiros é meramente comercial". A empresa também presta serviços à clínica Be Free, localizada na Vila Leopoldina, zona oeste da capital paulista.

Lá, a analista de recursos humanos Carolina Magnabosco, 39, diz ter sido atendida em novembro de 2022. O objetivo dela era implantar o chip da beleza, um dispositivo hormonal, colocado embaixo da pele por meio de uma pequena incisão.

"Ao procurar na internet, vi várias coisas falando que ajuda a emagrecer e que tinha vários benefícios. E lá [na clínica] era totalmente coberto pelo convênio." No local, ela diz ter sido apresentada ao procedimento de cessão de créditos. "Eles iam receber o valor do reembolso por mim e depois me avisariam para eu alterar a senha [do app do plano de saúde]".

Insatisfeita com o atendimento, que não teria esclarecido suas dúvidas a respeito de efeitos colaterais do chip, ela abriu reclamações nas redes sociais e no site Reclame Aqui. Também trocou a senha do seu aplicativo do convênio médico.

De acordo com ela, a clínica entrou em contato para pedir a retirada das reclamações, mediante um acordo. A Be Free não chegou a pedir reembolso em seu nome, mas Carolina afirma temer cobranças futuras.

A Bee Free afirma à reportagem "que não realiza reembolso auxiliado" e acrescentou que "apenas oferece a possibilidade de auxílio no reembolso em caso de solicitação do cliente devido a burocracias específicas".

Vinicius Carrijo, sócio-administrador da Be Free e do Heathban, diz à reportagem, por telefone, que "preza sempre pela transparência". Questionado sobre a relação entre as duas empresas, afirma que o contato entre elas é apenas comercial e que, apesar de estar no quadro de sócios, não participa da gestão do Healthban.

 

Ø  Juízes proíbem clínicas de pedir reembolso a planos em nome de pacientes

 

Planos de saúde têm conseguido na Justiça o direito de negar o pagamento de reembolsos de consultas médicas, exames e outros procedimentos feitos por clínicas e laboratórios não credenciados que usam login e senha dos pacientes para solicitar ressarcimentos às operadoras.

De acordo com processos judiciais, os estabelecimentos fazem anúncios e prometem ao paciente o tratamento sem custo em troca de uma cessão de crédito, ou seja, é feito um contrato em que o beneficiário transfere para a clínica seus direitos pelo reembolso.

Com recibos falsos de pagamento e de posse dos dados de acesso do usuário, pedem reembolsos em nome dele. Quando o valor cai na conta do beneficiário, emitem boletos bancários ou solicitam o repasse do montante, por meio de transferência bancária.

Quando a operadora nega o reembolso, as clínicas entram, também em nome dos beneficiários, com reclamações na ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) que podem gerar multas aos planos. Por fim, se não conseguem o reembolso, exigem que o paciente faça o pagamento.

A prática, considerada fraudulenta, já ocorria antes da pandemia de Covid, mas se disseminou após a crise sanitária. Além das ações judiciais, há investigações policiais em curso e uma mobilização do setor empresarial para coibi-la, já que muitos planos são ofertados pelas empresas.

No mês passado, a CCR (Companhia de Concessões Rodoviárias) demitiu cem funcionários após detectar, em investigação interna, o uso indevido do reembolso do plano. Também em abril, o Itaú demitiu 80 empregados pela mesma razão.

"Sempre tivemos fraudes, mas, antes, eram eventuais, de oportunidade. Com a era digital e a popularização do uso de aplicativos, elas se profissionalizaram. São verdadeiras quadrilhas atuando", diz Cássio Alves, superintendente médico da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde).

Não há um levantamento sobre o volume envolvido nesses reembolsos fraudulentos. Muitos casos ainda estão sendo investigados pelas operadoras, em inquéritos policiais e pelo Ministério Público.

De acordo com dados da Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), que representa grandes grupos de seguradoras de saúde, de 2019 a 2022 o volume total gasto pelas operadoras com reembolsos saltaram de R$ 6 bilhões para R$ 11,4 bilhões, um aumento de 90%.

No mesmo período, o aumento das despesas assistenciais com pagamento de médicos, clínicas, laboratórios, hospitais, fornecedores de materiais e medicamentos foi de 20% (de R$ 171,8 bilhões para R$ 206,5 bilhões).

Na Abramge, o volume total de reembolsos passou de R$ 6 bilhões, em 2019, para R$ 10,9 bilhões em 2022. Só a título de ilustração, se no ano passado esses reembolsos tivessem acompanhado a variação geral das despesas assistenciais, os gastos teriam sido de R$ 7,2 bilhões, segundo a entidade. "São nesses R$ 3,7 bilhões que se localizam as fraudes", estima Alves.

Nas decisões, os juízes têm autorizado que as operadoras neguem os reembolsos que vierem desacompanhados do comprovante de pagamento das despesas pelos beneficiários e determinado que a a ANS suspenda eventuais punições aos planos por esse motivo.

O reembolso assistido não está previsto na lei dos planos, portanto, a questão não é regulada pela ANS. Porém a agência tem discutido com o setor suplementar formas de evitar que o mecanismo legítimo de denúncia do consumidor contra um plano (a NIP, Notificação de Intermediação Preliminar) seja usado pelos fraudadores.

Nos processos judiciais, laboratórios e clínicas denunciados argumentam, em sua defesa, que os consumidores realizam uma cessão de direito ao crédito em favor deles e que esse seria um serviço que agrega valor ao atendimento, trazendo comodidade, por desburocratizar o sistema de reembolso das operadoras. Os juízes, porém, têm julgado improcedentes esses recursos.

A Folha teve acesso a quatro decisões proferidas em São Paulo neste ano. Nelas, há a determinação para que as clínicas e laboratórios se abstenham de pedir login e senha para o beneficiário ou solicitar reembolso em seu nome, sob pena de multa de até R$ 50 mil por ato de descumprimento.

"[Os estabelecimentos] engendraram verdad eira arquitetura para burlar o sistema de reembolso e daquilo que está autorizado a ser reembolsado nos contratos, prejudicando consumidores e distorcendo a liberdade de escolha e livre concorrência", diz um trecho de uma decisão de 8 de maio, da juíza Clarissa Rodrigues Alves, da 4ª Vara Cível de São Paulo.

Em outra decisão, ao deferir a tutela de urgência a uma operadora, o juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini, da 26ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital, considerou o reembolso assistido "uma nítida propaganda abusiva e enganosa".

Para ele, a prática fere o Código de Defesa do Consumidor e a boa-fé, "pois no sistema de reembolso por óbvio primeiro o consumidor faz o pagamento, para depois ele próprio se ressarcir junto à seguradora de saúde".

Em 21 de março último, a juíza Andrea de Abreu, da 10ª Vara Civil do Foro Central da Capital, também justificou a decisão favorável a uma operadora argumentando que "a solicitação de dados sigilosos dos pacientes, como login e senha, coloca os consumidores em evidente desvantagem, que acabam vulnerabilizados no sigilo necessário de seus dados médicos".

Segundo Vera Valente, diretora-executiva da Fenasaúde, além de estarem participando de uma fraude e correndo o risco de serem penalizados, beneficiários que fornecem login e senha a terceiros põem suas informações pessoais em risco. "Podem ser usadas, por exemplo, para alterar a conta bancária vinculada ao reembolso ou para solicitar reembolso de procedimentos não realizados. É um cheque em branco."

Ela diz que há vários tipos de fraudes, como clínicas e laboratórios que, antes mesmo de o paciente passar por consulta médica, solicitam o login e a senha e já realizam uma série de exames, muitos desnecessários e superfaturados, seguidos de pedidos de reembolso.

Nos processos judiciais, são mencionados pedidos de exames de PSA (antígeno prostático), usado no rastreamento do câncer de próstata, a mulheres.

Outra situação frequente, segundo Valente, é o usuário fazer um procedimento que não tem cobertura pelo plano (aplicação de botox ou cirurgia estética, por exemplo) e, em comum acordo com as clínicas, pedir reembolso com recibo de um outro tipo de serviço que é coberto. "Há muitos casos em que pessoa sabe que está errado. Vai fazer uma abdominoplastia, e o médico coloca que tem uma hérnia inguinal."

Para Cássio Alves, da Abramge, há pacientes que claramente pactuam com as fraudes e se beneficiam delas, mas há muitos que são induzidos a elas por ingenuidade ou desconhecimento.

Em março, a Fenasaúde lançou a campanha Saúde sem Fraude para conscientizar os beneficiários sobre os danos causados pelas fraudes (que, na, ponta final, encarecem as mensalidades) e mobilizar o setor no combate a elas. A campanha agora chegara às empresas.

"A gente vai distribuir um material voltado para o RH sobre como ele tem que lidar com esses benefícios e esclarecer os seus colaboradores", diz Vera Valente.

 

Fonte: FolhaPress

 

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