Os Brics e a
“Desdolarização”. O ocaso do Dólar?
Desde
que o dólar assumiu a posição de principal moeda internacional no pós-Guerra,
foram inúmeras as especulações de que “em breve” a moeda estadunidense perderia
esta posição ou passaria a dividi-la com outras moedas.
Nos
anos 1960, o economista canadense Robert Triffin apontava para as fragilidades
da relação entre o dólar e o ouro. Nos anos 1970, com a ruptura do regime de
câmbio fixo derivado do Acordo de Bretton Woods, especulava-se que o dólar
perderia a sua força global, percepção que foi reforçada com a
internacionalização do marco alemão e do iene japonês nos anos 1980, e com o
lançamento do euro no final dos anos 1990.
Após
a Crise Financeira Global de 2008 (CFG), as apostas eram não apenas de um
declínio do dólar, mas, também, de uma ascensão generalizadas de potências
emergentes, em geral simbolizada pelo agrupamento dos Brics, e que agora se
concentram no caso chinês.
·
Revolução digital
Analistas
estadunidenses flertam com a possibilidade de que desta vez a decadência do
dólar pode ser mais do que uma mera ameaça retórica. Think tanks influentes
junto ao empresariado dizem que a “desdolarização” já começou. O uso do dólar
como arma e as inovações da revolução digital são apontadas como fatores que
podem acelerar este movimento.
O
domínio do dólar tem-se mantido desde os anos 1950, a despeito das oscilações
conjunturais e do avanço de outras economias na geração de renda e comércio
internacional. Ele reflete o poder do seu estado emissor em múltiplas
dimensões. A ascensão de novos poderes, particularmente a China, é percebida
pelo establishment estadunidense como uma ameaça ao status quo.
Ainda
assim, o dólar segue como referência de 80% da dívida pública externa, 2/3 do
ativos totais emitidos nos mercados globais, 55% dos empréstimos bancários, e
algo entre 40% e 45% dos pagamentos globais e do giro diário do mercado
cambial. Sua proeminência é ampla e em muito excede a participação dos EUA no
comércio e no PIB global, cujas dimensões atuais oscilam entre 15% e 20%.
·
Interesses
O
elevado apetite global, de investidores e governos, pela dívida pública
estadunidense, cria uma fonte extremamente elástica de financiamento para as
políticas doméstica e externa do hegemon global, a custos muito baixos. No
início de 2023, havia um estoque de US$ 7,4 trilhões (ou 30% do PIB dos EUA) em
treasuries na carteira de instituições fora da jurisdição emissora. No final de
2007, aquele montante era de US$ 2,4 trilhões (ou 15% do PIB).
Da
mesma forma, o total da dívida pública estadunidense como proporção do PIB
dobrou nos anos que se seguiram à crise de 2007-2009, o que permitiu o país
socorrer seus bancos e empresas, dinamizar seu mercado acionário e realizar
políticas anticíclicas robustas, tudo isso sem abrir mão da presença militar no
exterior. Em dezembro de 2022, tal indicador chegou a 123% do PIB.
Não
à toa há a clara percepção da elite estadunidense quanto à importância de
manter a hegemonia do dólar e, com isso, preservar o poder global dos EUA. Lawrence
Summers rejeita a ideia de decadência do dólar e critica o que ele entende como
uma superestimação do poder chinês. In verbis: “… qualquer pessoa que esteja em
busca de estabilidade política, de previsibilidade, de uma adjudicação
imparcial e objetiva de suas reivindicações realmente vão manter grandes
quantidades de ativos em RMB? … Eu duvido.”
Tyler
Cowen, da Universidade de Manson e colunista da Bloomberg, reafirma que é do
interesse dos EUA manter a posição do dólar como instrumento hierarquicamente
superior nos mercados monetários e financeiros globais. Admite, portanto, as
vantagens criticadas pela China, Rússia, Brasil e outros países emergentes e em
desenvolvimento. Para Carla Norrlöf, exatamente porque há uma disputa entre
poderes estabelecidos e em expansão, os EUA deverão insistir em manter o
predomínio do dólar.
Atualmente,
lideranças de países emergentes e em desenvolvimento têm sido mais vocais em
suas críticas ao papel internacional do dólar. Uma convergência de fatores
parece explicar a nova onda de previsões acerca da decadência iminente do
dólar. Com a guerra na Ucrânia, aprofundou-se o uso de constrangimentos
financeiros sobre a Rússia, com o bloqueio parcial das suas reservas oficiais e
de ativos de propriedade de pessoas físicas depositados em bancos
internacionais, exclusão de bancos russos da plataforma Swift que viabiliza
transferências e pagamentos internacionais, suspensão de transações de
operadoras de cartão de crédito ocidentais, dentre outras medidas e sanções
econômicas.
·
Críticas
Putin
é explícito ao dizer que os Estados Unidos (EUA) utilizam sua moeda e as
instituições financeiras que orbitam em sua esfera de influência como “armas”
para pressionar quem contesta sua hegemonia. Ele defende a necessidade de
construir alternativas, o que envolveria a ampliação na utilização do renminbi
(RMB) e da infraestrutura institucional chinesa – plataformas de pagamentos,
como a Cross-Border Interbank Payment System (CIPS), acordos de swap e de
fornecimento de liquidez, operadoras de cartão de crédito, bancos, instrumentos
digitais etc. – e a construção de novos instrumentos, como a moeda dos Brics.
Xi
Jinping e seus comandados dizem o mesmo. Tais pressões ganham força com o apoio
de outras lideranças dos Brics e de países emergentes e em desenvolvimento que
desejam entrar neste grupo. Para o governo chinês, o “privilégio ultrajante” do
dólar e do uso das instituições nele centradas como arma de disputa geopolítica
são incompatíveis com a nova distribuição do poder global.
As
lideranças chinesas enfatizam que a política monetária estadunidense é fonte
permanente de instabilidade financeira. A assimetria entre o peso efetivo em
termos de renda e de comércio dos EUA na economia global e a influência do
dólar nas finanças só aprofundaria distorções e crises.
O
influente Esward Prasad resume assim as transformações em curso e suas
consequências em potencial: “O sistema monetário internacional pode estar no
limiar de uma mudança significativa a partir de uma combinação de forças
econômicas, geopolíticas e tecnológicas. Mas é uma questão em aberto se essas
forças derrubarão o dólar estadunidense de seu pedestal como moeda
internacional dominante”.
·
Há evidências de “desdolarização”?
O
termo não é novo, porém vem ganhando impulso. Desde janeiro de 2022, o original
em inglês (de-dollarization) foi citado 202 mil vezes no Google. Isto é dobro
das citações dos anos que se seguiram à CFG, entre 2009 e 2021: 102 mil.
Há
pelo menos dois significados para o mesmo: a reversão – parcial ou integral –
do processo de “dolarização”, onde este representa o uso do dólar estadunidense
ou de ativos nele denominados fora do espaço jurisdicional que o origina, os
Estados Unidos; e/ou a redução no uso do dólar em transações internacionais.
Assim,
quando pessoas físicas, jurídicas e governos de um país cuja moeda não é
conversível internacionalmente reduzem suas dívidas (ou ativos) em instrumentos
denominados em moedas estrangeiras, particularmente o dólar, fala-se que há
“desdolarização”. O mesmo poderia ser dito com uma perda relativa de
participação do dólar nas transações internacionais e na denominação dos
ativos/passivos.
·
Indicadores
A
última pesquisa trienal do BIS 2022, revela importante estabilidade no que
tange às moedas de referências para as transações nos mercados cambiais, cujo
giro diário foi estimado em US$ 7,5 trilhões. As “big four”, dólar (44%), euro
(15%), iene (8,5%) e libra (6,5%), seguem na liderança.
Dentre
as moedas emitidas pelos emergentes, a chinesa avançou para 3,5%, ante os 2,2%
da pesquisa de 2019. Nos pagamentos internacionais que cursam pela plataforma
Swift dá-se o mesmo: em março de 2023, as big four concentraram 87% das
transações, com a clara liderança do dólar (42%). Na quinta posição aparece o
RMB, com 2,3%. Dois anos antes, a moeda chinesa tinha 2,5% e o dólar, 40%.
Perez-Saiz,
Zhang e Iyer, em estudo recente do FMI com dados da plataforma Swift, reforçam
a percepção de que há uma importante inércia no sistema monetário e financeiro
global. Todavia, sugerem que a emergência da revolução digital e as rupturas
geopolíticas podem acelerar transformações rumo a um padrão monetário
multipolar ou mais fragmentado.
Com
a mesma fonte de dados, Perez-Saiz e Zhang procuraram entender melhor os
determinantes do uso internacional do RMB para pagamentos transfronteira no
período 2010-2021, vale dizer, após a autorização oficial do governo chinês
para tanto. Tal decisão gerou uma importante ampliação na utilização do RMB
para a liquidação de contratos bilaterais com a China, particularmente em
operações de comércio internacional.
·
Participação
Para
a mediana de países estudados, tal participação atingiu 20% em 2021, com o
quartil superior da amostra registrando 70%. Os pesquisadores do FMI detectaram
haver importantes diferenças regionais, as quais refletem proximidade
geográfica, vínculos de comércio com a China, aspectos legais e a criação de
facilidades financeiras especificamente desenhadas pelo banco central chinês
para viabilizar a internacionalização do RMB, tais como linhas de swap
bilaterais e bancos de compensação offshore. Tais mecanismos garantiram a
provisão de liquidez na moeda chinesa, facilitando o seu uso.
Em
outra dimensão desta mesma dinâmica, Barry Eichengreen e seus coautores
identificaram aumento de 5 p.p. no uso do ouro monetário na composição das
reservas internacionais desde 2009. Nas quatro décadas anteriores à CFC deu-se
o contrário, com a redução na sua importância relativa. Nos anos 1950 e 1960,
os compromissos derivados do acordo de Bretton Woods, particularmente a relação
fixa entre o dólar e o ouro, fizeram com que este metal mantivesse
participações entre 55% e 70% no total das reservas oficiais.
Com
a eliminação deste vínculo formal, tal peso relativo caiu abaixo de 10% nos
anos 2000. No final de 2021, a relíquia bárbara, para se tomar emprestada a
expressão de Keynes, correspondia a 17% das reservas oficiais das economias
avançadas, bem abaixo dos 80% verificados em 1950; e 7% nas economias
emergentes e em desenvolvimento, contra os 30% de 1950.
·
Instabilidade
O
trabalho de Eichengreen sugere que este movimento de ampliação pode ser
explicado pelos riscos associados à instabilidade financeira e geopolítica, bem
como aos efeitos das diversas sanções bilaterais ou multilaterais impostas a
determinados países, as quais foram consideradas nas análises estatísticas,
dentre as quais: Argentina (2001-2005), Bielorrússia (2006, 2010, 2020), Iraque
(2010, 2012, 2017, 2019), Hungria (2018, 2021), Cazaquistão (2011), Qatar
(2017, 2022), Rússia (2008, 2014), Turquia (2011, 2016, 2018, 2019),
Uzbequistão (2003, 2005, 2006, 2017), Bolívia (2010, 2011), Egito (2016, 2017),
Quirguistão (2010, 2013, 2014), Ilhas Maurício (2010, 2015), Mongólia (2018,
2019) e Sérvia (2000, 2001, 2003).
De
fato, tais movimentos de diversificação fizeram com que o dólar reduzisse sua
participação na composição das reservas oficiais de 70%, em 1999-2000, para
menos de 60% no período recente. Em outro trabalho de Eichengreen, sugere-se
que aquela diferença não é explicada por uma elevação significativa no peso de
ativos denominados em moedas tradicionais como euro, iene ou libra, mas em
moedas não tradicionais como o renminbi, que sozinho respondeu por ¼ destas
variações não associadas ao uso do ouro monetário, ficando os dólares canadense
e australiano e o franco suíço com os ¾ restantes.
Nos
últimos meses, o anúncio de ocaso do dólar parece ter mais a ver com cenários
do que pode vir a ocorrer em um futuro ainda incerto, do que com evidências de
um processo consistente de repúdio à moeda estadunidense. Há, de fato, um
movimento de diversificação de ativos de reserva por parte das autoridades
monetárias e a ampliação no uso de moedas emergentes, como o renminbi, em
pagamentos internacionais.
·
Impulso
Tais
processos podem ganhar impulso adicional com a inclusão de mais países no
Brics, a ampliação do escopo das parcerias entre os poderes emergentes e os
demais países do assim-chamado Sul Global, e as inovações tecnológicas e
institucionais em curso, a exemplo do e-RMB, do Cross-Border Interbank Payment
System (CIPS), dos bancos multilaterais que estão fora do controle ocidental,
como o New Development Bank, para citar alguns.
Fundamentalmente,
o futuro do sistema monetário e financeiro internacional está diretamente
atrelado aos desdobramentos das disputas pelo poder global, onde a reação dos
EUA e seus aliados não pode ser menosprezada a priori. Neste campo, o horizonte
segue em aberto.
Fonte:
Por André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari, no Jornal GGN
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