Em
governo Lula, área ambiental corre o risco de ser dominada por modelo
bolsonarista
De uma forma parecida com o que aconteceu no
primeiro governo do petista, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente,
sofre desgastes e não conta com o apoio explícito do presidente Lula. Ela
corre o risco de perder poder, assim como o Ministério dos Povos
Indígenas, liderado por Sonia Guajajara.
Os desgastes de pautas ambientais e indígenas
no Congresso Nacional, com aparente desarticulação do governo
Lula (PT) para defendê-las, leva lideranças dos dois segmentos a acreditar
que há o risco de o modelo bolsonarista de governar ser retomado no país, mesmo
após o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ter perdido a eleição e
ainda não ter se consolidado como líder da oposição.
O desgaste foi agravado esta semana com o avanço,
no Congresso, de uma Medida Provisória que reestrutura
a Esplanada dos Ministérios. Aprovada por comissão mista formada por
deputados e senadores, a MP que reorganiza o governo Lula recebeu emendas
parlamentares e, na versão votada, tira funções do Ministério do Meio
Ambiente, comandado por Marina Silva, e diminui as atribuições do recém
criado Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sonia Guajajara.
A situação atual de Marina remete à sua
primeira passagem como ministra de Lula, entre 2003 e 2008. A ministra
deixou o cargo em maio de 2008 após disputa com a ala desenvolvimentista do
governo – na ocasião, não contou com o apoio do presidente e ficou sem
condições de continuar o trabalho ambiental.
Sob o comando do presidente
da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o Congresso toma as rédeas de
importantes pautas ambientais e indígenas e tenta dominar inclusive a atribuição
da demarcação das terras indígenas, a partir da tese do marco temporal.
A bancada ruralista da Câmara dos
Deputados aprovou a urgência para a tramitação do projeto de lei 490/2007, que
define a data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988)
como marco temporal para o direito às terras indígenas. O projeto estabelece
que, para serem consideradas terras indígena, as áreas reivindicadas teriam que
estar ocupadas na data em que a Constituição foi promulgada,
ignorando direitos históricos, além dos massacres a que foram submetidos os
povos ancestrais.
A aprovação do regime de urgência ignora que a tese
do marco temporal está na pauta de votação do Supremo Tribunal
Federal (STF). A votação foi marcada para o dia 7 de junho pela presidente
do STF, Rosa Weber.
Apesar da aposta de parlamentares no desgaste
de Marina Silva, a ministra apareceu nesta quinta-feira (25) calma na
cerimônia de posse do novo presidente do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMbio), Mauro Pires.
“Não houve votação final no plenário”, disse,
referindo-se a decisões tomadas por parlamentares no dia anterior. “Ainda temos
até terça-feira para dar continuidade aos diálogos. E é claro que temos
dificuldade, já que a oposição é maioria”.
Um dos pontos fundamentais nas articulações da
bancada ruralista é a retirada do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e
da Agência Nacional de Águas (ANA)
do Meio Ambiente, além da flexibilização do licenciamento ambiental em
obras.
A Medida Provisória 1.154/2023, em que o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reorganiza a estrutura dos
ministérios e de outros órgãos do Executivo, recebeu 15 votos favoráveis e três
contra na comissão mista no Congresso. As mudanças ainda precisam passar pelos
plenários da Câmara e do Senado.
Em uma quarta-feira considerada complicada para
o governo Lula, as redes sociais foram inundadas por críticas de aliados e
informações sobre as frustrações de Marina Silva e Sonia
Guajajara em relação ao posicionamento do presidente.
A ministra dos Povos Indígenas chegou a
declarar, em entrevista, estar frustrada devido ao pouco empenho
de Lula nas articulações em torno da Medida Provisória.
“É um momento difícil para o nosso governo. Uma
parte do Congresso, que é maioria, quer impor ao governo eleito o modelo
de gestão do governo Bolsonaro. Respeitamos a autonomia dos poderes, mas o
governo tem o direito constitucional de se organizar na melhor forma de fazer
sua gestão recuperando competências perdidas e competências dos ministérios
recentemente criados como dos Povos Indígenas”, destacou Marina.
As frustrações das duas ministras, especialmente
de Marina, ocorreu em um contexto em que a ministra do Meio Ambiente trava
uma disputa com o senador Randolfe Rodrigues, do Amapá, que
desfiliou-se da Rede Sustentabilidade, em “caráter irrevogável”, em meio a
um embate sobre a posição de Marina contra a exploração de petróleo na foz do Amazonas nos moldes propostos pela Petrobras. Também neste caso, a
ministra não contou com o apoio declarado do presidente.
Para esta sexta-feira (26) está prevista uma reunião
entre Lula, Marina, Sonia e a articulação política do
governo.
·
Desafios
A chegada das “bombas” ambientais já estava
prevista, como alertou o deputado Nilto Tatto (PT-AM) à Amazônia Real em 28 de
março, quando o governo completaria 100 dias. “Precisamos ficar atentos, porque
a oposição, especialmente a extrema direita, a todo o momento tenta impedir que
o governo tenha sucesso”.
Ele já alertava, por exemplo, para o risco da
retirada do CAR (Cadastro Ambiental Rural) do Ministério do Meio
Ambiente. O instrumento é importante para o controle de terras privadas e
conflitos em áreas de preservação. A MP aprovada na comissão mista
transfere o CAR para o Ministério da Gestão e Inovação em
Serviços Públicos, chefiado pela economista Esther Dweck.
“Isso é um risco porque pode fazer com que o governo
brasileiro não venha cumprir com as expectativas que todos têm de diminuir
drasticamente o desmatamento e conservar a biodiversidade”,
disse Tato na ocasião, quando havia o temor de o CAR ser
transferido para o Ministério da Agricultura.
O deputado disse que a vontade
de Lula estava expressa na nomeação de Marina Silva como
ministra e que os parlamentares da base trabalhariam para garantir o texto
original da MP. Afirmou também que não acreditava no sucesso das emendas
ruralistas na Câmara e no Senado, por colocar em risco a
execução do projeto de governo petista.
A falta de articulação da base governista, no
entanto, chamou a atenção em uma quarta-feira em que ficou óbvia a crise
entre Marina Silva e o Centrão.
O presidente da Associação dos Servidores
Ambientais (Ascema), Denis Rivas, disse nesta quinta-feira (25)
à Amazônia Real que ainda não tem a dimensão total dos efeitos das
mudanças na MP. Mas a instituição que representa servidores do Ministério
do Meio Ambiente, Ibama e ICMBio publicou nota pública em
que enfatiza que mais uma vez as agendas ambientais e dos povos originários são
direcionadas a projetos de destruição.
O documento enfatiza a continuidade das investidas
para o desmonte do ministério e do Sistema Nacional de Meio
Ambiente (Sisnama), iniciadas em 2019, no primeiro ano do
governo Bolsonaro.
“O sopro de suavização da resistência com a nova
gestão que ocupa o Palácio do Planalto, visto que hoje há um diálogo
democrático e os servidores não são marcados como inimigos, foi a publicação
da Medida Provisória (MPV) 1154/2023, que
reestabeleceu e reforçou competências do Ministério do Meio Ambiente e
Mudança do Clima, saqueadas no último desgoverno”, ressaltou a nota, chegando a
avaliar uma possível “ingerência” do Legislativo sobre o Executivo.
·
Política nas ruas
“A solução é
fazer política e os servidores se manifestarem nas ruas”, afirma o
professor José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor
da Universidade de Brasília (UnB) e professor titular
da Faculdade de Direito desde 1985. Ele também é um dos fundadores do
projeto Direito Achado na Rua, surgido em 1986 na atuação
em dos direitos civis e mediação de conflitos.
O professor afirma que não existe ingerência, mas
sim a legítima atuação de bancadas, que devem ser combatidas com pressões
políticas contrárias. “Ingerência não há. São competências distintas”. Ele
considera que esteja na essência das emendas apresentadas à MP da
reestruturação do governo não apenas defender os interesses de grupos
econômicos nos territórios indígenas, mas propositalmente criar tensões entre
os poderes.
O jurista cita a coincidência da urgência para a
tramitação do projeto do marco temporal, com a retomada da pauta no STF.
“Uma impertinência submeter essa tese esdrúxula quando há uma pendência de
julgamento”, opina.
Na opinião dele, a demora nas decisões dos ministros
do STF sobre o tema se devem aos cuidados, pois estão sob a
responsabilidade de “apenas 11”, que sofrem pressão de toda a sociedade. Ele
enfatiza em especial o voto do ministro Edson Fachin, ao reconhecer que a
posse da terra indígena deve ser definida por tradicionalista e não por um
marco temporal. “Brilhante, politicamente, filosoficamente, juridicamente. Ele
reconhece que direitos pós-coloniais não extinguem direitos anteriores”,
ressalta.
Ø Lula e Marina. Por Marina Amaral
Indígenas, ambientalistas e todos os que se
preocupam com questões essenciais para a emergência climática e para
a proteção dos direitos humanos dos brasileiros - principalmente os de povos
originários, tradicionais e agricultores familiares, diretamente afetados pelo
desmatamento e grilagem - ficaram boquiabertos com a liberação da bancada do
PT para aprovar a MP dos Ministérios, apesar das emendas que
deslocam órgãos essenciais da política indígena e ambiental para ministérios
com outras competências (alguns com titulares próximos aos ruralistas).
Confesso que também tomei um susto, sobretudo pelas
comemorações de ministros e parlamentares nas redes sociais depois da aprovação
da MP.
Os pontos mais graves são a retirada do CAR (Cadastro Ambiental Rural) do Ministério
do Meio Ambiente e a Funai do Ministério dos Povos Indígenas, o que
sem dúvida enfraquece os ministérios condutores
da política ambiental e indígena do país.
Mas a situação ainda é turva demais para cravar a
saída de Marina Silva do MMA, como especula a
imprensa. Marina e Lula sabem perfeitamente o impacto internacional
desastroso que teria uma eventual queda da ministra. Ex-parlamentar, Marina
também conhece as táticas de negociação com o Congresso, especialmente quando temos a Câmara de Deputados
mais conservadora desde a redemocratização.
Em discurso informal na posse de Mauro Pires, novo
presidente do ICMBio, na manhã de ontem, a própria ministra, que anteriormente
já havia criticado a MP, voltou a reforçar a necessidade de defender o
sistema nacional de proteção ambiental, mas fez questão de destacar o legado desastroso do governo Bolsonaro e de
agradecer a Lula “por estarmos todos aqui”. Além de cumprimentar o
presidente do Ibama, que também discursou com serenidade apesar de ser o
aparente estopim da crise (com a decisão técnica de barrar a exploração de petróleo na Foz
do Amazonas), Marina dirigiu saudações nominais a diversos representantes da
sociedade civil presentes no evento, assim como à delegada adjunta da União
Europeia e ao embaixador da Noruega, maior financiador do Fundo Amazônia.
Mesmo que Lula tenha se sentido traído por Marina
por não ter sido avisado previamente sobre a questão da Foz do Amazonas, ou que
uma ala do PT queira de fato enfraquecê-la, o que sempre é complicado
avaliar tendo como base reportagens com interlocutores do presidente falando em
off, Lula sabe melhor do que ninguém o que o mundo espera do Brasil e as
vantagens que traria o avanço da agenda ambiental para o país. Como disse a ex-presidente do Ibama, Suely
Araújo à nossa editora Giovana Girardi no domingo passado (antes, portanto,
da votação da MP): “Em relação à narrativa que o presidente Lula tinha nos
mandatos anteriores, a questão ambiental ganhou uma robustez que ela nunca
teve. Eu acho que as posições da Marina e do Ibama estão coerentes com a
narrativa do presidente da República.”
Mais do que a chantagem dos ruralistas no Congresso, que ainda
poderia ser revertida no STF como sugere o post do
ministro Flávio Dino no Twitter, o que realmente me assusta é a
possibilidade de Lula, por convicção, trocar os projetos
de desenvolvimento do século 21 que, junto com Marina e Sônia, ele parecia abraçar, pela economia suja do
pré-sal, do agronegócio e da mineração. Nem tudo é possível conciliar.
Ter duas ministras mulheres
ambientalistas - uma negra, filha de seringueiros da Amazônia, e uma
grande liderança indígena - enfraquecidas sob aplausos do PT não é uma boa
mensagem. Ainda dá tempo do governo reagir.
A nós, jornalistas, cabe publicar informações
checadas, com a maior transparência possível para a sociedade poder filtrar os
interesses e o grau de certeza de quem fala, alertando, sem alimentar o diz que
diz, para os riscos reais que corre a política socioambiental prometida por Lula, venham eles do Congresso, das empresas ou de dentro de governo.
É essa informação de qualidade que faz avançar
o debate democrático, ainda tão incipiente no país.
Ø País levou menos de cinco meses para tentar nos calar novamente, diz
Sônia Guajajara
A ministra dos Povos Indígenas, Sônia
Guajajara, criticou o Congresso Nacional por ter aprovado, na tarde
de quarta-feira (24), o regime de urgência na tramitação do Projeto de Lei
490/07, que libera Terras Indígenas para exploração de recursos naturais e muda regras para demarcações de territórios.
“Todo mundo lembra da campanha do presidente Lula que trouxe a pauta
indígena para o centro de sua campanha eleitoral, assumindo o compromisso de
retomar os processos de demarcação das terras indígenas. Foi nesta
perspectiva que foi criado o Ministério dos Povos Indígenas. E agora nós
vemos este Congresso promovendo um verdadeiro ataque a este ministério, num
país que levou 523 anos para reconhecer a importância dos povos indígenas e
menos de cinco meses para tentar nos calar e tutelar novamente”,
declarou Sônia Guajajara.
A urgência da tramitação do projeto foi aprovada por
324 votos a favor e 131 contra. Apesar de a orientação da bancada do governo
ter sido pela liberação dos votos, Partido dos
Trabalhadores (PT), Partido Socialismo e
Liberdade (PSOL), Partido Verde (PV) e Rede votaram
“Não” por unanimidade.
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Movimento
Democrático Brasileiro (MDB), Partido Democrático
Trabalhista (PDT), Partido Liberal (PL), Podemos, Partido
Social Democrático (PSD) e Republicanos votaram majoritariamente
pelo “Sim”.
Em tramitação desde 2007, o Projeto de Lei
490 é considerado uma ameaça aos direitos dos povos indígenas. Além de
abrir os territórios para exploração hídrica, energética e mineral – sem
consentimento prévio dos povos que as ocupam – o projeto também fixa a tese
do marco temporal, que define com terras indígenas apenas aquelas ocupadas
quando da promulgação da Constituição, em 5 de Outubro de 1988.
“Os povos indígenas já estavam aqui bem antes da
Constituição. A história dos povos indígenas não começa em 1988”,
disse o Ministério dos Povos Indígenas, em sua conta no Twitter.
Segundo o presidente da Câmara, Arthur Lira, o projeto será colocado em votação já na próxima
semana. “Esta proposta tramitou em todas as comissões, e a gente já poderia
estar votando o mérito. Com a votação da urgência, damos a oportunidade para
mais um momento de discussão. Portanto, não falem em açodamento porque a urgência
não era necessária”, disse.
Fonte: Amazônia Real/Agencia Pública/(o))eco
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